sábado, 30 de maio de 2015

Estantes Emprestadas [17] - "Comunicado"


A crónica deste mês é especial. Talvez seja melhor descrevê-la como peculiar, já que desafiei, nem mais nem menos, do que a malta da Imaginauta, chefiada pelo Carlos Silva e o Vítor Frazão. Por entre várias iniciativas, o objectivo deles é estimular a escrita e a leitura de ficção especulativa. Por cá tenho tentado ajudar, com divulgação em primeira mão de sinopses do livro que depois comprei e li, Comandante Serralves: Despojos de Guerra, que tem contos muito bons e cria um universo partilhado muito interessante; e com a participação na iniciativa natalícia Operação Livros no Sapatinho, que teve direito não a uma, não a duas, mas a três respostas! Isto para além da divulgação que vou fazendo das suas várias iniciativas. Eu bem tento, que se há projecto que merece, é este!

Por agora fiquem com a minha parte do desafio, que esforcei-me. A resposta há-de surgir nas proximidades.



*início de gravação*

Está a gravar? Isto está... Raios parta a gerigonça, está ou não? Onde é que eu meti as instruções... Hum... Aqui... Deixa ver. Carregar aqui, ali, já está, se estiver a luz acesa, está a gravar. Ah!

Desculpe lá isto, mas ainda não me entendo com o hologravador Bem, não interessa. Estou-lhe a enviar esta mensagem porque hoje apareceu um sujeito na minha banca a vender-me uns livros que achei muito estranhos. Aliás, o sujeito também era bastante estranho, e nunca sequer o tinha visto por estas bandas.

Comprei os livros para os manter debaixo de olho, mas ele ainda me disse que depois me arranjava mais. Antes de lhe conseguir perguntar alguma, desapareceu. Esteve o tempo todo com um capacete que não deixava ver-lhe a cara e que devia ter um modulador de voz.

Mas pronto, vamos ao que interessa. Já enviei os livros para o seu gabinete pelo comutador quântico que mandou instalar aqui no meu armazém. De qualquer forma, são os seguintes. "Intermitências da Morte", de um José Saramago, tem um aspecto muito estranho, muito simples, sem grandes desenhos, e pelo que folheei, parece ter texto muito denso.

Há também um muito, muito estranho, um "Terrarium", de João Barreiros e Luís Filipe Silva. Nem sequer percebo como podem duas pessoas escrever o mesmo livro, na altura em que isto foi publicado ainda não existiam osciladores de matéria... Mesmo agora, para fazer alguma coisa assim era preciso ser-se um génio!

O último é o mais chocante. "V de Vingança", de Alan Moore, quase não tem texto. Está é recheado de imagens. Para lhe ser sincero, este assustou-me mais do que os outros. Ainda se as folhas fossem ecrãs orgânicos ultra-finos, mas não, são só imagens estáticas. Nem lhe mexi mais.

Aquilo que acho mais estranho é estarem imaculados, apesar de terem séculos de idade. Por favor diga-me como proceder.

E agora onde é que se desliga isto? Hum... Deve ser aq...


*fim de gravação*

http://imaginauta.net/

sexta-feira, 29 de maio de 2015

The Lifecyle of Software Objects

Autor: Ted Chiang



Opinião: Ted Chiang, sempre a surpreender. Conto atrás de conto, novela atrás de novela, aquilo que este tipo escreve consegue deixar-me arrebatado de todas as vezes. Nem sequer estou a exagerar! O meu conhecimento de autores de ficção científica actuais é relativamente escasso (pelo menos em termos de leituras), mas Chiang é sem dúvida um dos melhores, capaz de rivalizar facilmente com alguns nomes mais clássicos.

Isto porque a sua escrita é simples e descomplexada, mas extremamente eficaz. Tem momentos directos e momentos bonitos, e prima pela simplicidade propositada, que sai tão bem a este autor. Já para não falar de que é uma escrita que encaixa na perfeição no tipo de histórias que Chiang conta, ficção científica centrada em ideias, que aborda temas complexos com abordagens simples.

Nesta novela em particular, o tema é a vida artificial. Mais concretamente, a vida digital, e a nossa reacção à sua existência. A protagonista é uma especialista em treinar animais que é contratada por uma empresa de software para treinar uma espécie de animais digitais com características curiosas.

O ponto de partida, como sempre, é tremendamente básico. Simples. Mas Chiang consegue construir a partir daqui com uma habilidade extraordinária. E a melhor parte é que expõe vários pontos de vista sobre a questão, não deixando bem claro qual é a sua posição sobre o assunto, mas como que deixando à escolha de quem lê.

Em suma, isto é boa ficção de ideias. Tem certas inclinações, é certo, a ideologia de cada um é difícil de esconder quando se escreve, mas Chiang faz um trabalho notável a deixar várias alternativas em aberto.

E no fundo, esta história acaba por se tornar numa experiência de acontecimento. "O que aconteceria se...", sem tirar nem pôr. O boom de novidade que a criação destas formas de vida digitais é, seguido do inevitável apogeu e descalabro, modernizações e criaturas que se tornam obsoletas, os níveis de consciência a aumentar, estranhas experiências sociais que obrigam a delimitar muito bem a ética e a moral da situação, desde uma espécie de prostituição ao isolamento total.

Enfim, ler The Lifecycle of Software Objects é encontrar Ted Chiang no seu melhor, a criar, desenvolver ou reutilizar conceitos que aplica muito bem na sua história, que vai evoluindo de forma bastante orgânica e natural, não se focando apenas nos protagonistas, mas também naquilo que os rodeia. Desta forma, acaba por contar uma história muito maior do que a de duas pessoas envolvidas no assunto.

Confiem em mim, vale a pena, vale mesmo muito a pena. Editoras portuguesas, publiquem Chiang por cá que vão ver-me a comprar que é um doce!

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Best Exotic Marigold Hotel (2011)



Tal como o fenómeno das super-bandas, começaram a aparecer os super-filmes. Ou melhor, os filmes com super-elencos. É o caso dos Expendables, um filme com todas as estrelas de acção possíveis e imaginárias a, em termos muito simples, serem fixes.

Mas é também o caso de Best Exotic Marigold Hotel, num registo completamente diferente e a reunir um elenco de luxo que conta com Judi Dench, Bill Nighby, Maggie Smith, Penelope Wilton, Ronald Pickup, Celia Imrie e ainda mais alguns.

Qualquer pessoa que veja o filme reconhece todos os actores de algum lado, na melhor das tradições britânicas de só terem meia dúzia de actores e actrizes que usam para TUDO.

O risco de um elenco destes é que se ofusquem uns aos outros. Praticamente todos personalidades mais do que estabelecidas, com uma enorme presença no ecrã e um ainda maior historial cinematográfico, televisivo e teatral, não era difícil que a coisa corresse mal. Felizmente são todos, também, excelentes actores (e actrizes). Cada um faz o seu papel, brilha quando tem de brilhar e deixa que os outros brilhem quando é a vez deles. É impressionante.


Nem sequer é o meu tipo de filme, e deixou-me agarrado ao ecrã. Convenhamos, uma "comédia dramática" relativamente ligeira é mais o tipo de coisa para eu ver numa preguiçosa tarde de Domingo, apenas com meio cérebro acordado. E no entanto, as representações excepcionais, a história bem construída e os diálogos deliciosamente, digamos, britânicos, conseguiram ganhar a minha atenção.

A história sobre um grupo de velhotes que por um motivo ou por outro acaba na Índia, num suposto hotel fantástico que na realidade está a cair aos bocados, torna-se para lá da hilariante, com os seus momentos de intensidade emocional. É fascinante ver uma Maggie Smith racista e resmungona rodeada de indianos, ou uma Judi Dench completamente zen a curtir a vida.


Best Exotic Marigold Hotel não é um filme que siga alguma moda das que por aí andam: é um filme calmo, exuberante sem precisar de explosões ou relações explosivas, e que consegue ter momentos de excelente comédia ao mesmo tempo que explora as emoções de várias personagens de forma extraordinária. Particularmente com uma certa personagem, que tem a maior complexidade e a história mais triste e satisfatória.

E no meio disto tudo, quem consegue juntar este elenco todo e de certa forma pô-los a funcionar em conjunto, é a personagem de Dev Patel, o gerente do hotel, com muitos sonhos, muita ingenuidade, e muita falta de jeito. E que também é outro que tem uma óptima evolução e uma boa história ao longo do filme.

Junte-se a isto os cenários bem feitos e cativantes, diferentes do habitual... Enfim, parecendo que não, foi uma autêntica receita para o sucesso. De tal forma que fizeram um segundo (que não vi), ainda que me custe a acreditar que haja história para mais. Foi bom, mas um filme chegou perfeitamente. Pode ser que me surpreendam, quer dizer, se me conseguiram surpreender com este, porque não com outro?, mas não sei se não será abusar da sorte. Este pelo menos já valeu a pena.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Salazar: Agora, na hora da sua morte


Argumento: João Paulo Cotrim
Arte: Miguel Rocha


Opinião: Pegar em BD de autores portugueses é sempre um risco. Tanto posso ter uma excelente surpresa como apanhar a maior desilusão da minha vida. Às vezes com o mesmo autor. Aquela história de os artistas portugueses terem estilos muito variados e pouco interligados traduz-se, simplesmente, como "cada um faz o que lhe apetece para ser fixe e avant-garde".

Está bem, não é tanto assim, mas às vezes é um bocado. E os argumentistas muitas vezes não sabem bem o que andam a fazer, e criam história medíocres que entregam a artistas medíocres, ou artistas bons que insistem em ser diferentes e modernos.

É uma pena. Temos de facto excelente artistas, e alguns bons argumentistas. É assim tão complicado juntarem-se e fazerem algo decente? Temos vários provas de que isso é possível, não inventem!

Mas pronto, com tudo isto já deve estar a pensar que vou desancar completamente este livro. Não é verdade. Esta conversa toda é apenas para dizer que Salazar: Agora, na hora da sua morte, me surpreendeu. Não conhecia nenhum dos nomes envolvidos e não me tinha ainda chamado a atenção.

Ainda bem que peguei no livro. O argumento simples e íntimo de João Paulo Cotrim liga de forma fantástica com o traço difuso e negro de Miguel Rocha. As coisas rapidamente se tornam confusas, em algumas páginas, mas com um bocadinho de atenção é mais do que possível seguir sem problemas a história e perceber o que é que está a acontecer.

E vale bem a pena acompanhar o que acontece. Uma espécie de biografia de Salazar, desenhada como se fosse a vida a passar-lhe em frente aos olhos, na hora da sua morte, e que mostra uma versão mais dócil e mais humana do nosso ditador.

Sim, é uma versão ligeiramente romantizada, mas não perde o interesse por isso. Não custa nada ver o ditador por detrás do homem, basta estar atento aos pormenores, aos detalhes visuais e às subtilezas narrativas.

Só que isso não é importante. Este é um livro bem feito, bem escrito e bem desenhado. Uma leitura rápida, sem dúvida, mas que marca sem ter que recorrer ao formato tradicional da BD. Só por isso já vale a pena!

sábado, 23 de maio de 2015

Adaptações de livros


(o que segue não é uma crónica estruturada nem pensada com antecipação, é uma opinião escrita de rajada e que deixa muito por dizer. prossigam.)

O fascínio em adaptar livros a filmes/séries está em alta. Mais do que nunca, que eu me lembre, essa é claramente uma tendência a seguir e que dá muito, mas muito dinheiro. Porquê? Na minha opinião principalmente por duas razões.

A primeira é que é fácil de aproveitar o sucesso da literatura que agrada às massas, e fazer cinema que agrada às massas, que vai aumentar o público literário e por sua vez aumentar o público cinematográfico e por aí fora. É simples e é óbvio.

A segunda é que há um estilo de escrita relativamente moderno que cada vez se vê mais e que facilita ainda mais as coisas: o estilo cinematográfico. É algo geral e usado cada vez mais por um número cada vez maior de autores. Uma escrita mais simples, com uma acção mais directa e uma estrutura mais episódica e mais próximo do cinema (e no limite, do teatro), com vários actos claramente bem definidos e correspondentes a troços de evolução da história muito bem demarcados.

Isto é bastante diferente da literatura de estrutura complexa a que os autores mais clássicos nos habituaram. Era fácil não existir propriamente um protagonista muito proeminente, nem sequer uma história muito bem definida, algo que pode ser bastante complicado de passar para filme (ou televisão). Aquilo que vemos hoje em dia é exactamente o contrário: o livro tem um protagonista, tem uma história, uma acção, um intervalo temporal, e quase zero de momentos mortos, tudo sempre extremamente bem definido.

É por isso que os livros juvenis, especialmente as distopias, têm sido tão adaptadas. Além de serem moda, e de moverem massas, são também simples. A escrita, o enredo, as personagens, a evolução, a acção... É tudo simples, ou melhor, simplificado, graças à tendência "infantilizadora" do termo juvenil.

Não quero apontar dedos, mas...
Se bem que isto não é propriamente verdade. Ou melhor, não é inteiramente verdade. Aquilo que disse até agora é que é uma extrema simplificação da questão, porque se as coisas realmente são assim, como explicar coisas como Game of Thrones? Aquilo de simples, só mesmo a escrita, que é boa e bastante cinematográfica.

O que se passa é que quando pensamos bem neste assunto, temos que ver os dois lados da questão, as duas pontas do espectro. Existem estas adaptações simples e existem as adaptações gritty, mais negras, mais sujas, mais "realistas" (porque têm mais sangue e consequências terríveis). Essa é na realidade uma tendência curiosamente paralela ao primeiro ponto de vista, e que apenas consigo explicar como uma moda.

Se calhar, até como uma tendência de "levar as coisas a sério". Como os filmes do Batman do Nolan, que também são relevantes para esta discussão porque são, tecnicamente, adaptações de livros. Só que BD's, e não de forma muito directa e linear.

Esses filmes, por muito agradáveis que sejam (particularmente o segundo, graças ao brilhante Joker de Heath Ledger), são excessivamente pesados. E o pior é que esse tom depois foi transferido para o novo filme do Super-Homem e parece mais do que a caminho para o Batman vs Superman. O que é um erro, dos grandes.


*sigh*
Faz sentido que tenham criado uma identidade muito própria e muito diferente do tom brincalhão da Marvel, mas claramente exageraram e arriscam-se a deitar tudo a perder. Um problema que não afligiu Game of Thrones, pelo menos, que funciona tal como está, porque os próprios livros já são assim.


E porque é mais fácil adaptar um romance do que uma BD, por mais contra intuitivo que isso possa parecer. Com aquela tendência simplista de que falei no início, queria dizer exactamente que qualquer que seja a obra, é mais fácil de adaptar hoje em dia do que uma obra qualquer de há umas décadas ou séculos atrás. Mas as BD's continuam a não ser fáceis de adaptar.

Isso acontece, em parte, porque o público já tem uma imagem das personagens e do mundo em que se movimentam. Um mau elenco ou um mau design dos cenários, por exemplo, pode estragar tudo sem grande dificuldade.

"O fato dele ficava melhor se fosse todo de cabedal!", disse ninguém, nunca.
Mas no meio desta conversa toda, fica a dúvida: como adaptar? Há várias formas, como é óbvio. Por exemplo, pode-se optar por tentar capturar a essência e o ambiente, usar as personagens e uma história parecida, mas acabar por criar algo radicalmente diferente do livro. Não é a minha hipótese favorita, mas pode fazer sentido em alguns casos.

Outra hipótese é uma adaptação super-hiper-mega fiel. Raramente é uma boa hipótese, porque um livro e um filme têm uma forma de comunicar extremamente diferente. Pelo menos era assim, antigamente, mas com a tendência cinematográfica de um grande pedaço da escrita actual, essa barreira dilui-se com uma facilidade cada vez maior.

A minha hipótese favorita é pegar no livro, tentar seguir ao máximo, mas fazer as alterações necessárias que a conversão livro -> filme exigem. Como exemplo, dou-vos O Perfume, de Patrick Süskind, um livro excepcional que teve direito a um filme excepcional e que não é 100% fiel pela simples razão de que era impossível. Em vez de meter os pés pelas mãos a tentar pôr tudo no ecrã, fez as concessões que eram precisas para contar a mesma história e transmitir a mesma mensagem, com uma história o mais parecida possível.


Não fazer isto foi o erro de um filme que abomino, Harry Potter e o Cálice de Fogo, baseado num livro agradável, mas que é um filme francamente desagradável, e apenas porque tentou contar tudo! Digamos que falha redondamente.

E para quem é apologista de que o livro é sempre melhor do que o filme, fiquem a saber que não concordo. O filme (ou a série, eu estou-me a esquecer de falar de séries mas é tudo igualmente válido) pode conseguir fazer jus ao livro e até ultrapassá-lo. Veja-se o caso de Precious, que achei consideravelmente superior ao livro.

Eu sei que este texto fica relativamente incompleto, mas ou é isto, ou não fazer mais nada o resto do semestre para escrever um ensaio a divagar sobre o assunto. Em vez disso (e para preservar a minha sanidade mental e currículo académico), digam-me a vossa opinião. Perde-se sempre alguma coisa na adaptação? Ou ganha-se sempre alguma coisa? Têm alguma adaptação favorita? Algumas que vos dê vontade de chorar, chamar nomes às pessoas e atirar o filme para a Fossa das Marianas?

Elucidem-me!

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Adult Wednesday Addams [T1]


No que toca a livros, filmes, ou séries bizarras, posso contar com a minha namorada. Uma autêntica connoisseur daquilo que mais estranho se faz, especialmente por essa internet fora. Foi graças a ela que descobri a Melissa Hunter, uma escritora, comediante e youtuber. Ou melhor dizendo, o que descobri foi a fantástica série Adult Wednesday Addams.

A premissa é simples: pequenos sketches que mostram situações hilariantes da vida da pequena Wednesday Addams da Familía Addams, depois de crescer. Conhecida, nos filmes, pelo seu perpétuo ar sério e a sua personalidade algo... mórbida, a versão adulta criada por Melissa Hunter mantém essas características e junta-lhes um timing cómico absolutamente perfeito.

Logo no primeiro episódio, a tipa está absolutamente impecável: o humor é negro, bem ritmado, e deixou-me bastante impressionado. O segundo mostra o quão boas conseguem ser as puns mais ou menos acidentais de Wednesday, sempre com um humor extraordinário.


No terceiro episódio apercebi-me que grande parte daquilo que me fazia gostar desta pequena série eram os one-liners. Nada bate um bom one-liner, uma boa punchline, e Melissa Hunter consegue fazê-lo da melhor maneira possível, várias vezes seguidas. A isso ajuda que a personagem seja o mais monossilábica possível, por inclinação da própria, mas é um facto que os one-liners são perfeitos, e isso deve-se à qualidade de Hunter enquanto escritora, comediante e actriz.

Já ao quarto episódio, mais do que habituado à personalidade peculiar de Wednesday, não consegui deixar de me rir a bandeiras despregadas com "wolves can smell petulence... and body glitter", dito da forma mais dúbia possível entre mórbida honestidade e sarcasmo impassível e propositado.

Isto da mesma forma que é completamente impossível deixar passar a seguinte troca de palavras, no quinto episódio:

"ahhhhhhh! oh, sorry, thought you were a ghost"
"you're sweet"

Estão a compreender o calibre? Este episódio deve ter sido o meu favorito e tem mais pérolas:

"inmemoryofwednesday@gmail.com"
"that makes it sound like you're dead"
"I like to plan ahead"

"do you like me?"
"you're alive aren't you?"
"hum... yes..."
"you're welcome"

Por fim, no sexto episódio, Hunter relembra a sua audiência do quão perturbadora esta personagem é, e consegue ser. Todos os episódios são de humor negro (ainda que leve), mas neste a actuação de Hunter é perfeitamente assustadora.

Esta pequena série é assim a demonstração de que não é preciso inventar muito para fazer algo muito bom. E nem deve ter ficado muito caro (pelos padrões destas coisas). É também uma prova da força e da qualidade dos conteúdos no Youtube, que tem muitas coisas sobre as quais ainda vou falar. Por agora, acompanhem esta série (e os outros vídeos da autora), que vale bem a pena!


quarta-feira, 20 de maio de 2015

Equilibrium (2002)



Cá está um filme que não é muito conhecido e que até merecia algum destaque. Acusado, e bem, de ser uma mistura de várias obras de ficção-científica, tem actualmente o estatuto de filme de culto, mas esconde muito mais do aquilo que as pessoas pensam.

Primeiro, é fácil de reparar nos vários paralelos e inspirações, principalmente no que diz respeito a distopias. Uma droga para controlar as massas? O Admirável Mundo Novo faz isso melhor. Uma enorme importância à proibição de livros e arte? É o tema central de Fahrenheit 451. Uma sociedade de quase-autómatos, todos iguais uns aos outros? Bem-vindos ao enredo de Nós. Um governo totalitário que gera falsas notícias e tudo vê e tudo controla? 1984, chapadinho.

Tem este filme alguma coisa de novo e original? Em cada uma das partes que o compõem, nem por isso, mas no total? Eu acho que sim, logo a começar pela mensagem que transmite e os temas que aborda.


Falando daquelas quatro distopias, toda a gente sabe que se Huxley diz que é o excesso de entretenimento que nos vai dominar, Orwell diz que é a falta de entretenimento. Bradbury, por seu lado, transmite a mensagem de que é a nossa procura por entretenimento que nos vai salvar, enquanto que Zamiatine diz que é a nossa procura instintiva por liberdade que nos vai salvar.

São visões um bocado simplista das quatro obras, mas verdadeiras na sua essência. E mais do que suficiente para se perceber que são visões extremistas, que falam sobre as duas pontas do espectro, o bem e o mal, a liberdade e a ausência de liberdade, e por aí fora. Equilibrium, como o nome indica de forma bastante óbvia, é um filme feito de equilíbrios.

É uma diferença algo subtil, mas muito relevante. A sociedade de Equilibrium é forçada a viver em equilíbrio com o Estado através da droga que lhes tira as emoções. O enredo do filme está centrado no equilíbrio precário do protagonista, Christian Bale, entre o dever e a liberdade. O próprio estilo de luta marcial criado para o filme é composto de movimentos precisos e calculados, e assenta num peculiar equilíbrio entre manobras estudadas e improvisação.


A mensagem que o filme transmite, desde o início com Sean Bean a desvirtuar o protagonista até ao final, com esse mesmo protagonista a desvirtuar toda a sociedade a um nível máximo, é uma que nem concorda nem discorda com todas as outras distopias que mencionei. É uma mensagem de equilíbrio, mas não a de que é preciso viver dessa forma, mas antes que, digamos, em média é preciso viver dessa forma.

É por isso que o protagonista tem momentos tão contrastantes e isso funciona tão bem: por vezes tem que estar mais próximo de uma ponta do espectro e por vezes mais próxima da ponta oposta, mas no fim, tudo somado, está no meio, uma posição radicalmente diferente da imposta pelo Tetragrammaton (o governo do filme, simbolizado por quatro T's, que curiosamente também é o símbolo idolatrado em Brave New World, em honra ao Model T de Henry Ford), que tenta obrigar as pessoas a viverem perfeitamente em equilíbrio, sem um único desvio dessa linha.


Todo o filme está planeado de forma meticulosa, e é interessante ver como pequenas coisas, no início, descambam num final grandioso e espectacular. É óbvio que há falhas, com algumas cenas de acção menos bem conseguidas, e pelo menos uma perseguição que só tem o resultado que tem porque é num filme, já para não falar de algumas coincidências que são demasiado convenientes para serem verdadeiras.

Mas é um bom filme, que transmite uma mensagem muito interessante. Gosto dos actores e gostei particularmente do twist perto do fim que adicionou mais uma camada de significado a todos os acontecimentos. Sem dúvida uma visualização aconselhada.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Que as citações nos caiam em cima [63]


"O idiota viva num mundo negro e sombrio, pontuado pelos relâmpagos da fome e pelo tremeluzir do medo. As suas roupas eram velhas e cheias de buracos. Aqui espreitava uma tíbia, aguçada como um cinzel de metal frio, e ali, sob o casaco rasgado, as costelas eram como dedos num punho fechado. Era alto e muito magro. Os seus olhos eram calmos e a sua expressão era a de um morto."

Mais que Humano
Theodore Sturgeon

Mais que Humano


Autor: Theodore Sturgeon
Tradutor: Miguel Romeira


Opinião: Dizer que este livro é estranho, é dizer pouco. Este livro é para lá de estranho. Para ser sincero, acho que é tão estranho que se torna muito, mas muito bom. As minhas expectativas não era muito altas, apesar da boa opinião da Jules. Nem capa nem título me chamaram a atenção, e ao pesquisar o autor, apesar de ter ficado impressionado, não fiquei assim tão impressionado.

Erro meu. Theodore Sturgeon foi claramente um dos pesos pesados da ficção científica e de horror. O meu desconhecimento da sua obra uma falha finalmente colmatada.

É que este livro, no meio da sua história algo confusa e bastante convoluída, é altamente cativante, logo desde o início, com os seus pontos de vista pouco convencionais e as suas personagens complexas e multifacetadas. A própria escrita de Sturgeon, ou pelo menos a versão traduzida, flui que é uma maravilha, capaz como é de descrever fenómenos altamente complexos da melhor forma possível.

O fenómeno em causa é o homo gestalt, uma espécie de próximo passo evolutivo para a espécie humana, composto por várias pessoas que funcionam como um só organismo. Uma simbiose bastante peculiar, se assim o quiserem.

A forma como Sturgeon introduz e apresenta os vários protagonistas está muito bem orquestrada, assim como a escolha das suas personalidades. Passado poucas páginas, já estou mais do que curioso para saber o que vai acontecer, e quando me começo a aperceber a sério, mais quero saber!

Só tenho pena da divisão que o livro tem, em três secções mais pequenas. Ou o livro tinha capítulos mais curtos, ou não tinha divisões nenhumas. O que aconteceu com este formato foi uma grande falta de ligação directa entre as três partes que tornam a leitura muito, mas muito confusa.

Mas tirando isso é uma excelente leitura. A evolução do homo gestalt e até a introdução do conceito, são vários momentos bem escritos e bem montados no plano geral do livro. O autor perde algum tempo a apresentar cada uma das personagens, o que faz todo o sentido se pensarmos que as personalidades das pessoas envolvidas na simbiosa vão ser absolutamente determinantes para o comportamento e as ações do homo gestalt como um todo.

Só a segunda parte do livro é que me agradou um bocadinho menos, especialmente por causa da confusão que me gerou ao lê-la, mas também porque nem sequer há comparação possível com as outras partes, bem desenvolvidas e complexas o suficiente para soarem minimamente reais. Mas acho que é daqueles livros que todas as pessoas que lerem vão ter ideias completamente diferentes. Portanto só têm uma hipótese, que é pegar neste livro de 1953 (pensava mesmo que era dos anos oitenta), e dar uma vista de olhos. Garanto-vos que é fácil de ficar preso!

sábado, 16 de maio de 2015

THIS! IS! SPARTA! [1]

O meu nome é Rui Bastos e tenho pouca paciência.

*olá Rui*

Obrigado por me receberem aqui. Eu sei que todos temos vidas difíceis e que todos temos os nossos problemas, portanto tirarem este bocadinho para me ouvirem é fantástico. Vou então contar-vos a minha história.

Tudo começou há alguns meses atrás, quando dei conta que existia um tipo chamado Pedro Chagas Freitas (PCF). Diziam-me que era um escritor, mas eu via-o a escrever livros a metro, recheados daquelas frases que depois pairam no Facebook, completamente vazias de significado real. Portanto não acreditei.

Para mal dos meus pecados, a certa altura comecei a receber mails da chaga que é o Pedro Freitas. Ou melhor, da sua equipa de marketing, que é a mais chata que já alguma vez conheci. Porque não foi só um mail, nem meia dúzia, foram uns 20 ao longo de 2 ou 3 meses. E o pior? O pior era o conteúdo.

"CAMPEONATO DE ESCRITA CRIATIVA", a pagar, e cujo primeiro e principal prémio, para quem lesse o regulamento com atenção, era ter o prazer de participar num concurso do PCF, e eventualmente chegar a conhecê-lo e publicar qualquer coisita na mesma editora que ele. Porque o PCF é um deus. Claramente.

As regras do campeonato são os seus mandamentos. A única diferença para com uma divindade a sério é que tem uma equipa de comunicação (e provavelmente de escrita).

Pois bem, houve um dia em que perdi a cabeça e...

*sê forte tu consegues tu sabes vá vá já passou vamos lá sê forte*

Obrigado. Onde é que eu ia?

*perdeste a cabeça e...*

Isso! Pois bem, perdi completamente a paciência e enviei um mail desagradável, nesse dia. E não foi o único, porque continuei a receber mails daquilo durante muito tempo.

E o pior não foi isso.

*coitadinho, um rapaz tão novo*

O pior foi ter comparado o mal que o PCF faz à literatura e ao panorama literário português com o mal que as pessoas que entram no metro sem deixarem sair as outras fazem à Humanidade.

Eu sei que fui duro, e sei que é por causa de coisas assim que estou aqui, com vocês... Mas tinha de ser. De publicar livros todos os meses a promover "campeonatos de escrita" e a vender jogos de palavras que permitem "aprender" a escrever, o homem faz de tudo um pouco. E sempre com o mesmo estilo, os mesmos objectivos, e as mesmas pessoas a escrevem por detrás dele.

O que posso fazer quanto a isso? Não sei. Mas PFC, é bom que mudes de estratégia ou que te desvaneças numa nuvem de fumo , com se nunca tivesses existido. Porque eu estou farto de te aturar.

(Chiado e companhia limitado, não perdem pela demora...)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Treze contra Um (XIII #8)


Argumento: Jean Van Hamme
Arte: William Vance
Tradução: Rui Freire


Opinião: Como o título indica, este livro tem uma espécie de final. Uma primeira conclusão para o novelo de intrigas em que XIII vive. E querem saber a parte mais estranha? Uma conclusão que me agradou!

Depois de tantos livros (e com outros tantos ainda para ler), fiquei honestamente surpreendido quando o sétimo volume me agradou da forma que me agradou, e mais ainda fiquei quando este conseguiu manter e depois subir a fasquia.

Confesso que grande parte é por causa dos momentos finais, em que tudo se sabe e muito ainda fica por saber, mas achei realmente que este livro foi bastante consistente em termos de qualidade.

E notei que o protagonista propriamente dito, XIII, não é uma personagem assim tão boa quanto isso. Na prática, lá está, é um James Bond amnésico, que não sabe bem o que anda a fazer, nem como. Quem brilha realmente são personagens como a Major Jones, o General Carrington, o Mangusto, o Coronel Amos, o Presidente dos EUA Walter Sheridan, enfim, praticamente toda a gente, excepto XIII, que mais parece um fantoche que vai saltitando e salvando o dia, identidade atrás de identidade!

Era bom que os próximos livros se mantivessem assim, mas tenho as minhas dúvidas. Por muito que tenha ficado para explicar, chegando ao ponto deste livro, não me parece que haja história suficiente para mais 14 (!) livros... Mas pronto, vamos lá ver.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

O Longo Halloween II (Batman #3)


Argumento: Jeph Loeb
Arte: Tim Sale, Gregory Wright
Tradução: José de Freitas, Filipe Faria

Opinião: O primeiro volume foi bom. Este foi muito, muito bom. Esta colecção do Batman está-me a agradar bastante a valer cada cêntimo que dei por ela. E a dupla Loeb e Sale está a subir cada vez mais na minha consideração.

Depois de vermos A máfia de Batman a ser lentamente dizimada, agora temos mais intervenções de super vilões, todos eles o pináculo da loucura. Há ainda tempo para assistir à queda de Harvey Dent, de Procurador prodígio a... Enfim, a maior parte de vocês já deve saber, mas não quero estragar a leitura a ninguém.

Mas o mais impressionante é ver a forma como a personagem de Bruce Wayne é explorada, mais do que o Batman. Todos os remorsos, medos e demónios claramente à flor da pele da pior forma possível. É fascinante ver como Bruce usa essas suas "fraquezas" como autêntico combustível para a sua vida escondida como Batman.

Há raiva em cada soco e vingança em cada criminoso virado de pernas para o ar. Os remorsos não são por não ter feito nada, é por não conseguir fazer mais. Tanto Batman como Bruce se esforçam ao máximo, mas apenas conseguem ser enganados, de uma forma ou de outra, e acabam quase sempre desiludidos.

Isto reflecte-se em Alfred, o quase omnipresente mordomo, que revela de forma bastante explícita o seu papel de pai substituto para Bruce. A relação que existe entre os dois é forte, mas discreta, e é interessante vê-los a serem tão abertos sobre o assunto num dos momentos mais tocantes de todo o livro.

No entanto não nos podemos esquecer da história "principal" (que não é bem), pois neste volume descobre-se a identidade do assassino, e eu não estava nada à espera! E a forma como tudo descamba para um encontro final de super-vilões? Divinal!

E confirma-se o que disse sobre o outro volume, de que esta história é uma autêntica passagem de testemunho da criminalidade em Gotham: das mãos da máfia para as dos super-vilões. A única coisa que resta é Batman, o Cavaleiro das Trevas, que depois da longa jornada de aceitação que foi esta história, afirma acreditar em si próprio. Ou melhor, ele diz "I believe in Batman.", o que é muito mais intenso, pois mostra como ele tem noção de que o seu alter-ego, mais do que um super-herói, é um símbolo.

O final, em várias partes, é outro aspecto fantástico desta BD, com uma revelação que me deixou completamente chocado, mas que fez todo o sentido (de uma forma retorcida) e me deixou com bastante vontade de ficar a saber mais. É uma pena que seja uma história tão pequena (embora seja bastante grande para o normal dos comics), mas a verdade é que é mais do que suficiente. Não conta demasiado nem mostra demasiado, tanto Loeb como Sale souberam dosear as coisas e o resultado final é algo de extraordinário.

Se ainda não conhecem, leiam, e digam o que acham. Acreditem em mim de que vale muito, muito a pena!

segunda-feira, 11 de maio de 2015

O Longo Halloween I (Batman #2)


Argumento: Jeph Loeb
Arte: Tim Sale, Gregory Wright
Tradução: José de Freitas, Filipe Faria


Opinião: Estão a reconhecer a dupla Loeb e Sale? Não? Então referencio-vos para uma opinião que escrevi no início do ano: Hulk - Cinzento. Espreitem que rapidamente vão perceber o quão excitado eu fiquei por pegar neste livro (e na segunda metade).

Infelizmente, não é bem a mesma coisa. Mas não é por falta de qualidade, antes pelo contrário, esta história só iria funcionar assim. Uma abordagem como a de Hulk nunca iria dar bom resultado, e tanto Jeph Loeb como Tim Sale provaram estar à altura do Cavaleiro das Trevas e do extraordinário plantel de aliados e inimigos que desfilam nestas páginas.

O Longo Halloween, sequela quase directa de Batman - Ano Um, conta várias histórias. E tal como em Ano Um, todas elas dão um protagonismo relativamente baixo a Batman/Bruce Wayne, especialmente tendo em conta que isto é uma história do Batman.

A razão é simples: medo. Em Ano Um, o Batman apercebe-se que a única forma de ser um herói eficaz é aterrorizar os seus inimigos. Tem que ser mais do que humano e mais do que um herói... Tem que ser uma figura imponente e misteriosa. Só assim será capaz de controlar uma Gotham infestada de pequenos e médios vilões com muito pouco que recear.

O que este livro traz de novo é o começo de um importante ponto de viragem para Gotham, que muda de um domínio da máfia para um domínio dos super-vilões, que vão fazendo as suas aparições de forma lenta e calculada pelos autores de forma a criar mais impacto.

A passagem do maléfico testemunho é feita de forma subtil. Há um assassino algures que anda a matar pessoas importantes do mundo do crime em dias que sejam feriados, e a máfia começa a empregar vilões especiais, super-vilões em potência, para tentar descobrir o que se passa e ajudar a controlar os danos.

Mas é óbvio que pouco se pode concluir, por enquanto, uma vez que falta metade da história. Aquilo que sei é que este é um livro fantástico, e que deixa as expectativas em alta para a segunda metade. A arte de Sale é qualquer coisa de especial, expressiva como há poucas, e a abordagem, ligeiramente diferente da de Hulk, é mais focada em realçar os extremos, desde a personalidade insana do Joker, sempre desenhado em grandes planos, com todos os detalhes, até à presença calma e mundana de Jim Gordon, uma figura banal e muito parecida a tantas outras.

Absolutamente fantástico, é que vos digo. Vou definitivamente manter esta dupla debaixo de olho.

sábado, 9 de maio de 2015

Livros infantis


Como aspirante a tentativa de escritor amador, sei bem a dificuldade de escrever o que quer que seja. Até as coisas que escrevo aqui para o blog dão trabalho, demoram tempo e provocam-me ocasionais dores de cabeça, imaginem como não será para contos e afins. Mas sabem o que é que é mesmo difícil de escrever?

Histórias para crianças. Sim, mais rapidamente escrevo um artigo científico do que uma história infantil. Vamos é fazer já aqui uma distinção: quando falo de escrever uma história infantil, estou a falar de algo decente. Não estou a falar de nenhum Alice no País do Cancro, não é? Qualquer macaco pode escrever algo que seja publicado, mas o Pedro Chagas Freitas também "escreve" muitos "livros" e não é por isso que o considero um escritor decente.

Não, aquilo de que estou a falar são coisas com qualidade. Livros em que vocês peguem, dêem uma vista de olhos e pensem "eu lia isto aos meus filhos". Histórias boas, com padrões de qualidade tão elevados como os que eu aplico a qualquer livro que me apareça a frente.

Com isto esclarecido, podemos continuar a nossa conversa. De onde é que acham que vem a dificuldade? As histórias são sempre relativamente simples e lineares, sem grandes invenções. As ilustrações, que podem ser fantásticas, também não são complexas. Então qual é o problema?

O público. Eu sei, resposta cliché, mas tenham calma. Convenhamos, seja para o que for, o público mais complicado que podemos apanhar são crianças. Brutalmente honestas, ainda em desenvolvimento, normalmente com poucos filtros e um excesso de curiosidade que só lhes faz é bem, mas que nos trama a nós. Um público que se podia pensar como simples e fácil.

Grande erro. As crianças são tudo menos simples, antes pelo contrário!, conseguem ser criaturas bastante complexas, que pensam de formas que nós nem sequer conseguimos compreender. Daí aquelas saídas que aparecem de vez em quando, aparentemente aleatórias e que ficam quase sempre por explicar, mas que as crianças debitam com toda a segurança do mundo.

É esse o público. Ao escrever uma história infantil é preciso, então, ter cuidado para não se exagerar na simplicidade. Ou em não deixar as coisas demasiado explícitas. São crianças, não são jumentos. Mas por outro lado falta-lhe toda uma componente de compreensão simbólica que nós temos a todo o vapor!

Este tipo de escrita torna-se então num delicado equilíbrio entre várias coisas, raramente fáceis de acomodar ao mesmo tempo nos sítios em que deviam ficar. E no meio de tudo isso é preciso criar uma história que tenha interesse. E que fique realmente bem escrita, não só "bem escrita o suficiente".

Não é fácil. Eu já o tentei várias vezes e tenho bastantes dificuldades, principalmente por falta de hábito - o meu estilo habitual é tudo, menos adequado a crianças - mas também por uma incapacidade inata em escrever daquela forma. Tenho que fazer um esforço adicional, porque não é algo que me saia naturalmente, como acontece a um amigo meu (o meu colega de Artes no museu que em emprestou uns livros há uns tempos, lembram-se?), que tem um jeito danado. Até parece fácil.

Mas não é. E se há tipo de livro que seja complicado de escrever, é o infantil, sem sombra de dúvida. Porque depois, ainda por cima, as histórias têm que ter conta as ilustrações, e tudo se torna num jogo repentino e muito mais complexo.

Eu prometo tentar acabar uma história infantil, pelo menos, mas não é fácil, nada fácil. E vocês, o que acham?

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Precious



Eu já sabia que ver este filme não ia ser fácil. O livro também não é  uma leitura fácil. A realidade que é representada pela história de Precious é uma que eu não imaginava de todo. E sim, eu sei que é um livro de ficção, mas também sei que existem casos assim. Vidas assim. Precious, tanto o livro como o filme, são ficção, mas são também um duro retrato da realidade.

Depois de ler o livro e ver o filme, nem sequer acho que seja uma versão romantizada das coisas. É como é. A vida de Precious é a pior possível, acontece-lhe de tudo, e no fim consegue melhorar consideravelmente a sua vida, mas não é um processo fácil. O livro e o filme retratam esse problema de forma excelente. Até diria que o filme o faz melhor.


A vantagem do livro é aproveitar-se da escrita para mostrar como é que a Precious escrevia, e como a sua ortografia, o seu vocabulário e a sua construção frásica vão melhorando ao longo das páginas. É um mecanismo muito eficiente para dar aparência de veracidade ao relato.

O filme não pode fazer isso, mas pode fazer algo melhor: dar uma cara ao sofrimento. Ou neste caso, várias. Sim, porque o sofrimento de Precious não é o único: todas as personagens, sem excepção, são exemplos de sofrimento, em maior ou menor grau. Até a assistente social de voz monocórdica interpretada por Mariah Carey (!), que só consegue ficar cada vez mais desiludida com o que se passa na vida de Precious.


Mas mais do que uma história de sofrimento, Precious consegue ser uma história de esperança. A protagonista enfrenta todas as adversidades e consegue, no final do filme, estar mais do que encaminhada para ter uma boa vida. Toma o controlo, consegue estudar, consegue ter sucesso, consegue dizer que não à mãe abusadora e negligente, e consegue ficar com os filhos.

Aquilo que achei mais interessante no filme foi o seu ritmo. Não tem momentos de acção, nem momentos de grande desenvolvimento; em vez disso prefere investir o tempo num ritmo lento, mas constante, sempre com uma enorme intensidade emocional. Incluindo aqueles que passa na nova escola, com a nova professora e as novas colegas/amigas, todas elas pessoas que lhe vão apresentar conceitos que não deviam ser novos: liberdade, amizade, alegria...


Desde os primeiros momentos, incluindo a sequência honestamente perturbadora de Precious a sair de casa e a comprar um balde de fast-food que enfarda a caminho da escola, e que depois vomita quando lá chega, que todos os pormenores indicam que os assuntos não vão ser abordados de forma leve. Essa mesma sequência do balde de fast-food, podia ter sido uma coisa tremendamente leviana... Mas não. Torna-se assustadora, como marco do ponto baixo a que a protagonista chegou. E também como indicação de mais qualquer coisa...

Mas confesso que apesar da fantástica actuação de Gabourey Sidibe como Precious, tenho que me juntar à crítica e dizer que foi Mo'Nique (raio de nome) que merece todos os aplausos neste filme. Faz um verdadeiro papelão enquanto mãe de Precious! Aliás, a maior parte dos momentos verdadeiramente marcantes só o são por causa da sua presença.


Digamos que a mãe de Precious é uma mulher absolutamente desprezível. Nojenta, até. E o filme não hesita em mostrar-nos várias sequências dos seus actos mais horríveis, desde a negligência completa até ao abuso sexual da própria filha, que deixou que fosse abusada durante anos pelo pai.


E ainda assim, vê-la esparramada no sofá a gritar com a filha é das sequências mais difíceis de se ver em todo o filme. Assim como uma das cenas finais, quando a mãe de Precious revela todo o novelo de abusos e negligência a que submeteu (e assistiu) a filha à assistente social. É um monólogo poderoso e, de certa, forma, horripilante. Mas também um momento que nos permite, finalmente, compreender o que se passa dentro daquela cabeça, que tipo de vida e de problemas é que teve e que acabaram por a levar até àquele estado. Não digo que seja fácil sentir pena, mas não é difícil de compreender o que se passou.

O que depois só dá mais à força à conclusão: uma tomada de decisão de Precious que deixa toda a gente abananada, mãe e assistente social em partes iguais. Porque é neste momento que ela finalmente se apercebe de que não precisa de ajuda. Ou melhor, de que a ajuda que precisa não é a ajuda que ninguém lhe possa dar. A decisão que toma é corajosa e, acima de tudo, desafiadora. E nesta altura do filme, a única coisa em que conseguimos pensar é "bom para ti, Precious, dá-lhe!".

Precious é assim, sem dúvida, um bom filme. Corre o risco, em várias partes, de cair no exagero e na pura vontade de chocar, mas eu acho que consegue balançar bem as várias situações e os vários momentos. O resultado é bom, muito bom, e um daqueles raros casos em que o filme é superior ao livro.


quarta-feira, 6 de maio de 2015

A Noite de 3 de Agosto (XIII #7)


Argumento: Jean Van Hamme
Arte: William Vance
Tradução: Rui Freire


Opinião: Finalmente um volume de XIII de que gostei mesmo! Foi preciso ao sétimo livro, mas lá apareceu uma parte da grande (e extremamente confusa) história deste protagonista amnésico que me agradou.

E devo dizer que gostei particularmente de contarem a história do pai (pelo menos por enquanto) dele em vinhetas a preto e branco. Ficou visualmente muito interessante.

A história que é contada, essa, é complicada. Entre a vida nas montanhas de um jornalista renegado e a nova vida nas montanhas do filho desse jornalista que talvez não seja mesmo seu filho mas que também não se lembra de nada de qualquer forma... Vai lá vai.

Mas este livro tem a vantagem de não se deixar envolver demasiado nessas andanças e focar-se mais na história que está a mostrar. As grandes conspirações ficam para depois.

É claro que continuo espantado com a capacidade do tipo em atrair desgraças, das quais se safa sempre, muitas vezes com a ajuda da Major Jones, que também consegue arranjar maneira de estar sempre presente. O nosso James Bond amnésico tem ainda o dom de encantar mulheres, porque acabam todas por ficar caidinhas por ele, mais tarde ou mais cedo.

Só tenho que tudo o que aprendemos aqui se vá revelar mentira. Eu sinceramente já não acredito que alguma vez se vá saber a verdadeira identidade de XIII. Parece que descobre um novo nome livro sim, livro não...

Enfim. Este foi bom, falta saber se esta qualidade agora se mantém, ou se foi Sol de pouca dura!

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Walking Dead [T5]



Por muito que eu diga a seguir, uma série de zombies é uma série de zombies. Tem sangue, tripas, zombies nojentos e perturbadores, mortes nojentas e perturbadoras, violência para todos e muitas decisões idiotas de muitas personagens.

Walking Dead tem brilhado porque além disso tem personagens. E bem trabalhadas. Não são simplesmente heróis ou heroínas de acção, nem palermas ou donzelas em apuros, são pessoas reais a viver em situações extremas e a revelarem o que de melhor (e pior) existe nos seus carácteres.


E se os fãs de Game of Thrones se queixam da forma como George R.R. Martin trata as suas personagens, chacinando-as a uma velocidade impensável, Robert Kirkman e o resto da equipa criativa não lhe ficam nada atrás.

Sem esquecer que há momentos de comédia, compaixão, romance, terror, mistério, sequências de acção bem feitas e momentos bem, mas bem intensos. Nesta série há um bocadinho de tudo para toda a gente, menos para os de estômago fraco. Esses é melhor terem cuidado.

Nesta quinta temporada, a qualidade mantém-se de uma forma geral. A série tem sido relativamente consistente ao longo do tempo, apesar dos ritmos completamente diferentes de uma temporada para a outra (segunda temporada, estou a olhar para ti) e de alguns conjuntos de episódios de qualidade mais fraca. Mas é preciso ver que as situações em que as personagens se encontram vão mudando radicalmente, e estão agora num ponto completamente diferente, em que encaram as coisas com muito mais cautela. E bastante esperteza, como no caso da Carol.


Mas a Carol é a rainha do apocalipse zombie. Sim, não se deixem enganar no início pela mulher com ar fraco e abatido que apanha porrada do marido enquanto a filha vê. Carol evolui imenso enquanto personagem e já há muito tempo que é uma favorita dos fãs. Já salvou o grupo em várias situações, muitas vezes completamente sozinha, e já tomou decisões que pareciam impensáveis, no início, e que muitas das outras personagens ainda acham demasiado duras e radicais.

Essa é uma das forças desta série, os desentendimentos e entendimentos entre as várias personagens, que reagem de forma minimamente realista àquilo que uns e outros fazem, em vez de fazerem simplesmente aquilo que o enredo precisa que façam. As acções de cada personagem pesam sobre essa personagem para o resto da série, e vemos várias vezes o grupo a lidar com consequências de coisas que aconteceram há duas ou três temporadas.

Tudo isso vai afectar a forma como as personagens agem e os acontecimentos se desenrolam. Basta ver que depois de term visto a quinta de Hershel a ser invadida por zombies na segunda temporada, assistirem à desgraça de Woodbury na terceira, perderem a prisão no início da quarta e verem-se enganados quanto a Terminus no final dessa mesma quarta temporada, encaram a descoberta do cenário principal desta temporada, a zona segura de Alexandria, com bastante relutância.


Como é óbvio, isto dá para o torto. E como é óbvio, a culpa não é propriamente dos nossos protagonistas, que parecem autênticos selvagens no meio da "civilização" que é Alexandria. Mas eles é que estão bem, selvagens para um mundo selvagem, prontos a matar e sem medo de morrer. Alexandria, percebe-se rapidamente, vive num mundo de ilusão: tiveram sorte. Mas essa sorte acaba.

No entanto vou evitar ir por aí, para não revelar pormenores do enredo. Basta terem ideia que esta normalidade gritante de Alexandria vai entrar em conflito com o grupo de protagonistas, especialmente com Rick, que já passou por tanto e já fez tanto que se recusa a aceitar essa nova vida como se nada fosse.

Foi esse o grande trunfo desta temporada. Depois de várias temporadas a deitar abaixo os sonhos de Rick e companhia, mostra-nos um grupo enrijecido à força, uma máquina bem-oleada capaz de tudo, especialmente de sobreviver. E logo a seguir atira esse mesmo grupo para o meio de uma pequena vila em que tudo parece normal. O contraste é brutal. É como pôr uma peça quadrada numa ranhura circular. Simplesmente não encaixa. O que vale ao grupo é a sua mistura de personalidades fortes, não propriamente dominantes, mas cooperantes. Têm intensas e verdadeiras relações de amizade, mas nenhum deles perdeu a noção do que é a vida no mundo lá fora.


O que é interessante é ver as diferentes reacções. Michonne, por exemplo, e contra o que diriam os meus instintos, fica intrigada e rapidamente se esforça bastante para que aquilo funcione; Rick, como seria de esperar, recusa tudo; Carol, por sua vez, é cautelosa, mas não parva, faz-se passar por uma dona de casa completamente inofensiva ao mesmo tempo que vai conhecendo os cantos à casa e roubando armas.

E quem fala destas personagens fala de muitas outras, quase todas com desenvolvimentos (ou mortes, porque enfim) interessantes. No final, e para uma temporada que podia ter sido bem morna, esta quinta temporada revelou-se uma surpresa e um retomar do ritmo intenso a que a sério nos tinha habituado no início. O final, sem ser propriamente inesperado nem espectacular, deixa muito em aberto para a próxima temporada, que infelizmente só chega em Outubro.

Entretanto vamos ter oportunidade de assistir ao spinoff Fear the Walking Dead, com um nome muito pouco original, e que não me parece que seja boa ideia (fica para outra conversa), mas que promete contar os primeiros dias do apocalipse zombie. A ver vamos!

Só para terminar, e para quem andar a ver a série, fica um pequeno spoiler...