Autor: Homero
Tradutor: Frederico Lourenço
Opinião: Se vocês soubessem há quanto tempo é que eu ando para ler este livro (e a Íliada e a Eneida)... É vergonhoso. Ainda por cima para mim, que tenho um pequeno (grande) fraquinho por epopeias.
Mas e encontrar versões decentes? Ou são adaptações para prosa, como as duas que eu tinha aqui por casa, ou estão pejadinhas de notas, como a minha versão da Divina Comédia, ou então têm o ar mais rasca de sempre, como a edição que vi uma vez numa livraria ou, pior de tudo, são caras como o caraças.
Felizmente existe a Feira do Livro e existe esta colecção Biblioteca Editores Independentes. Confesso que fiquei um bocadinho apaixonado pelo livro, quando o vi. Em verso, com um ar porreiro e simples, zero notas, uma introdução cuidada, mas não demasiado longa, do tradutor, e um preço só com um dígito à esquerda da vírgula.
Como devem imaginar, não hesitei. Essa parte veio depois, quando foi altura de ler. Já não tenho a certeza se foi há dois, se há três anos, mas a Odisseia, de Homero, um dos maiores clássicos de sempre da literatura mundial, uma das principais epopeias da história da Literatura e um dos livros que mais procurei durante tanto tempo... Ficou a ganhar pó.
Eu sei, e peço desculpa. Não sei se algum dia me vou conseguir perdoar. A aura deste livro tornou-se de tal forma grandiosa que fiquei com receio de pegar nele. Arranjei montes de desculpas. Ora não tinha tempo, ora tinha outras coisas fixas na mente e não me ia concentrar, ora queria ler no sossego de uma semana em casa, ora, ora, ora... Enfim, estão a ver o que se passou, não estão?
Mas da última vez que arrumei os livros e fiz uma pilha de livros a ler na mesinha de cabeceira (seguida de duas filas de livros a ler na estante ao lado da cama, seguidas de duas filas de livros a ler na estante aos pés da cama), decidi pô-lo lá no meio. Ia ser desta! Lá adiei mais um bocadinho, de forma discreta, mas finalmente peguei nele.
E adorei! Não delirei completamente, é verdade, mas já estava à espera. O livro sofre de um problema do qual nunca se conseguirá safar, muito provavelmente: perde muita emoção e muita musicalidade na tradução. Quer dizer, imagino eu, que não sei grego. Pelo menos há partes que soam muito secas, e todo o livro tem um certo tom... cirúrgico. Asséptico. Quase que dá para ver o tradutor - Frederico Lourenço, que fez um excelente trabalho - a traduzir meticulosamente cada verso.
Se nos focarmos na história e na sua estrutura, no entanto, é fácil deixar esses pormenores de lado para ficarmos pasmados. A história já a conhecia, como é óbvio, de Polifemo a Circe, e não foram muitos os nomes que me soaram completamente estranhos e novos, não fosse eu um cromo de mitologia grega, mas a estrutura não é nada como eu estava à espera.
Mais do que começar in media res, a Odisseia olha para a linearidade da narrativa, ri-se dela, vira-lhe as costas e nunca mais lhe fala. Nunca vi uma história a ser contada com tantos solavancos. Imaginem que para recitar o alfabeto, eu começava no H e ia até ao T, depois recomeçava no A, quando chegasse ao F voltava a pegar no B e ia até F, depois continuava até ao P, para pegar no F e seguir até ao V, e depois ir do V ao Y, parar para muito rapidamente contar do A ao Y e só então chegar ao Z. Esta é, mais coisa menos coisa, a estrutura da Odisseia. Entre histórias que as personagens contam umas às outras, torna-se complicado perceber quando é que se está realmente a ler algo ao mesmo tempo que acontece!
Só isto já é fantástico, mas ainda há tanto mais. A estrutura é claramente derivada da oralidade, com várias repetições de algumas partes, como se fossem um refrão, até. E as doses massivas de mitologia grega souberam-me bem, mas bem, desde Zeus Crónida (filho de Cronos, get it? get it?) a Atenas, a dos olhos garços, passando por invocações a Hefesto, Afrodite, Hades, Hermes, muitos desaires com Poseídon e Apolo e tanto mais... Mitologia para dar e vender, sempre com uma linguagem belíssima, que se espalha por todos os vinte e quatro cantos como a que cedo desponta, a Aurora de róseos dedos se espalha pelo céu.
Adoro isto. E a história de Ulisses é realmente uma tragédia com um final sofrido, mas feliz. O acto final é sangrento e violento, mas nunca de forma gratuita. A forma teatral como todos falam e como tudo acontece é mesmo muito teatral, mas não destoa. Não me custa nada imaginar aquelas pessoas, nas suas togas brancas, a falarem exactamente assim. É claro que não o faziam, mas um gajo pode sonhar, não pode?
O próprio Ulisses é uma personagem e peras: quem diria que o protagonista da segunda obra da literatura ocidental, escrita há mais de 2500 anos, seria um anti-herói? Não acreditam? Vão ver as descrições dele como manhoso e saqueador, ou vejam-no a vangloriar-se aos ciclopes, ou a passar impávido e sereno por Cila e Caríbdis enquanto os seus homens são comidos um a um, ou ainda a chacinar os pretendentes da sua mulher (aqui justifica-se, vá).
E acima de tudo, Ulisses é carismático. Agraciado pelos deuses e cansado de muitas guerras, demora vinte anos a regressar a casa, e apesar do que muito sofreu, acaba por ter um final feliz. Mas aquilo que eu mais gostei de ler foi a forma como enganou Polifemo, o ciclope monstruoso, ao dizer que se chamava "Ninguém", para que o gigante saia da gruta, a correr e a gritar "É Ninguém que me mata!". Genial.
Agora tenho que arranjar uma versão jeitosa da Ilíada, não é? Sempre a quis ler primeiro que a Odisseia, mas calhou assim, e acho que não faz muito mal. Do que já me disseram, acho que ainda me vou embasbacar mais com a Ilíada, mas só quero é que seja tão boa como este livro, que valeu a pena e não foi pouco!
4 comentários:
Existe uma edição da
Iliada tal e qual como esta, da mesma editora e tradutor. Também fui para estas na altura que comprei.
já conseguiste mais do que eu...
É altura de leres o Dom Quixote...
A versão da Europa América não está muito cara...
Francisco Fernandes
Loot, é disso que ando à procura!
Artur, devias fazer um esforço, vale bem a pena.
Francisco, tenho isso cá por casa, talvez seja o calhamaço do Verão ;)
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