A noção de Natal fascina-me. É uma época tão adorada e verdadeiramente idolatrada por tanta gente, mas não há nada relativamente a ela que não esteja de alguma forma errada.
Vejamos, para começar, o dia em que o Natal é celebrado. Já se chegou à conclusão, de milhentas formas diferentes, que calha exactamente no mesmo dia em que um qualquer culto pagão tinha uma celebração ao Sol. Também já se viu que aquilo que vem sugerido na Bíblia para a data de nascimento de Jesus é algures no Verão, nunca no final de Dezembro.
Mas isto ainda é o menos relevante. Vejamos aquilo que define o Natal: prendas, estar com a família, prendas, felicidade, prendas, comida e prendas.
Se existir uma festividade materialista por excelência, é o Natal, seja lá porque motivo for. No início da coisa, a troca de prendas pode ter sido um gesto simbólico e cheio de significado, mas actualmente é uma mera convenção social. É natal, então, dão-se e recebem-se prendas. Porquê? Ninguém sabe muito bem. "É tradição!", gritam uns, desesperados com a minha falta de espírito natalício, aos quais respondo aquilo que respondo sempre que me falam de tradições, "Os aztecas tinham como tradição sacrificar pessoas...". Não é inteiramente verdade, nem verdadeiramente relevante, mas dá para ilustrar aquilo que quero dizer.
As tradições são importantes enquanto tiverem algum significado. A partir do momento em que a razão de se cumprir uma tradição é exactamente por ela ser tradição... Bem, deixou de fazer sentido. E actualmente é isso que se verifica com o Natal. Junta-se a família, trocam-se prendas, enche-se o bandulho, toda a gente faz de conta que tudo vai bem na vida, e passados 2 dias vai cada um para o seu canto, a refilar por causa das prendas que recebeu ou não recebeu, e de como mal podem esperar para voltarem para casa.
Eu sei, eu sei, nem toda a gente é assim. Nem todos os Natais funcionam desta forma. Mas tenho quase a certeza que 90% deles, para 90% das pessoas, são exactamente assim. As pessoas andam cabisbaixas durante o ano todo, e depois fazem de conta que são felizes, durante o Natal, tal como faz toda a gente à sua volta. Todos fazem de conta que acreditam uns nos outros, e no fim cada um continua a ignorar os problemas dos outros e a sofrer com os seus.
É como quem lê um qualquer livro filosófico bastante intelectual uma vez por ano para manter a ilusão de que é muito inteligente, e depois passa o resto do tempo a ler revistas cor de rosa e jornais desportivos. Quando alguém lhes perguntar o que andam a ler, respondem de imediato com o último livro que leram, tenha sido a semana passada ou há 3 meses, como se o tivessem acabado ontem. Fixam-se a essa memória e usam-na como querem para manterem a ilusão de que são inteligentes, tanto para os outros como para si próprios.
Com o Natal é mais ou menos a mesma coisa. Há mais festas em que acontece o mesmo, mas este é o caso mais flagrante. As pessoas vão-se agarrando à memória do último Natal, em que estavam felizes e todos estavam felizes à sua volta, enquanto anseiam pelo próximo Natal, em que vão estar felizes e todos vão estar felizes à sua volta, esquecendo-se no processo que entre um e outro há 12 meses de vida, 12 meses que já há uns anos se encontram cheios de desgraças, tristeza, miséria e coisas desagradáveis afins.
Podem argumentar contra a minha visão alegadamente pessimista das coisas (eu continuo a dizer que é realista, não tenho é culpa da realidade ser tão desagradável), dizendo que estou a ver as coisas mal, que as pessoas aproveitam o Natal para estarem felizes e se esquecerem das desgraças que as afligem o resto do ano. Isso é pura parvoíce. Há uma diferença entre estar feliz e ser feliz. E aquilo que acontece no Natal é que as pessoas estão tão ocupadas a estarem felizes, que se esquecem de serem felizes.
A felicidade do Natal é uma felicidade socialmente convencionada, não tem qualquer tipo de significado real. As pessoas actualmente não são felizes, de uma forma geral, e fazem de conta que sim, no Natal, para parecer bem. Encontram-se com a família, trocam prendas, sorrisos e doces, tentam entrar no espírito natalício, convivendo com a família de cuja existência só se lembram nestas ocasiões e dizem a si próprias que estão felizes.
É por isto que o Natal me chateia cada vez mais. Com a desculpa de que estão a aproveitar a ocasião para se esquecerem das desgraças, arranjam um pretexto para as ignorarem. Não finjam que estão felizes, façam por serem felizes. E acima de tudo, não me chateiem com as mensagens hipócritas de "Feliz Natal!", ou o raio que o parta. Em vez disso, façam por passar um Natal que seja verdadeiramente agradável, com ou sem família acoplada, com muitas ou poucas prendas, comam bacalhau ou comam peru ou ensopado de lentilhas. Eu sei que o meu é essencialmente passado a ler, e sei também que a minha visão das coisas não é de todo a mais agradável, ou a mais esperançosa, mas não sou conhecido por ser uma pessoa muito virtuosa e cheia de fé.
Dito tudo o que tenho a dizer, perdoem-me a intromissão desta crónica na temática da literatura sobre a qual costumo dissertar, mas de vez em quando tenho que fazer destas coisas, porque bem... a vida não é só livros, não é verdade?
4 comentários:
[não podia estar mais de acordo]
Concordo com o texto e, por conseguinte, penso que o Ntal deixou de ser um dia Cristão para tomar lugar ao materialismo e ao futilismo. Quem é que vai à missa do galo ou homenageia o nascimento de Cristo. Não sou católico praticante, só quero entender o verdaeiro significado deste dia. Mas o espirito familiar continua e isso é bom.
Feliz Natal
O que tu disseste e com muita razão é o que muitas pessoas pensam e sentem em relação ao Natal, mas que fingem não pensar e muito menos se atrevem a dizê-lo.
Obrigado aos 3 :)
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