As pessoas que lidam comigo no dia-a-dia já me ouviram falar de Ficção Científica (FC) numa ocasião ou noutra. Quem acompanhar este blog sabe perfeitamente que sou um grande fã deste género literário. E eu próprio invariavelmente o incluo na resposta à sempre eterna pergunta: "Tu gostas de ler o quê?". No entanto não consigo dar uma definição decente de FC.
A Wikipedia, sempre com respostas prontas para tudo, define-a como a literatura que retrata principalmente o impacto da Ciência, real ou meramente ficcionada, na sociedade e nos indivíduos. Por falta de paciência, não pesquisei muito mais, mas há montanhas de definições, todas elas com pequenos detalhes que as diferenciam umas das outras.
Portanto, o que é a FC? A maior parte das pessoas pensa imediatamente em coisas do estilo do Star Wars, ou do Star Trek, enfim, coisas com naves espaciais de uma forma geral, normalmente com extraterrestres e lasers à mistura. Mas isto é apenas uma muito pequena parte da FC, um género literário com tantos sub-géneros e sub-géneros dentro de sub-géneros e por aí fora como qualquer outro género normalmente considerado superior.
E abrange coisas tão díspares como o steampunk, de popularidade recente e caracterizado pela predominância da tecnologia a vapor, normalmente em cenários da Inglaterra vitoriana; as distopias, aquele que é porventura o lado mais negro da FC, com os seus cenários ditatorialmente ideais; a space opera, que inclui, agora sim, naves, lasers, extraterrestres, porrada intergaláctica e afins; entre muitos outros!
Mantém-se a pergunta: o que é a FC? E mantém-se a dificuldade em responder. Podia ficar aqui a dissertar sobre vários sub-géneros, várias obras e vários autores, e não chegar a conclusão nenhuma. Pessoalmente tenho uma ideia acerca deste assunto, mas não é muito clara. É parecida com a definição wikipediana, por acaso. Para mim, dizer que um livro de FC é dizer que aquele livro retrata um mundo paralelo ao nosso, com pelo menos alguma coisa ligeiramente diferente, e que se preocupa em mostrar todas as consequências dessa diferença. Ou então retrata um hipotético futuro, fortemente condicionado por alguma coisa que aconteceu e que pode ainda não ter acontecido, nem vir de facto a acontecer, na realidade, e retrata as suas consequências.
Eu sei que é uma pseudo-definição confusa, mas eu comecei logo por dizer que não conseguia dar uma definição decente. Além disso aquilo faz todo o sentido na minha cabeça, como devem imaginar.
Mas o que é esta minha definição pessoal implica? Pois bem, implica que pode haver um livro perfeitamente encaixado em FC que não dê qualquer relevância particular à tecnologia e/ou à Ciência. Eu sei que parece um bocado paradoxal, ter Ficção Científica sem dar grande importância à Ciência, mas para mim faz sentido e espero estar a transmitir bem as minhas ideias.
Vejam este exemplo: Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Normalmente classificado como uma distopia, de forma bastante acertada, este livro tem pormenores tecnológicos como as televisões completamente envolventes e os cartazes de publicidade com centenas de metros de comprimento, para terem efeito nos condutores a alta velocidade, mas isso não é, de todo o mais importante. Isso são meras consequências que se tornam causas no grande ciclo vicioso da ignorância, falta de liberdade de expressão e desaparecimento do pensamento crítico. A história gira em torno de um bombeiro, profissão cujo papel enquanto apagador de fogos se tornou irrelevante. Neste futuro distópico, os bombeiros queimam livros, pois todos eles foram proibidos.
Este é para mim um exemplo perfeito daquilo que estou a tentar explicar. Há um acontecimento que (esperemos) nunca virá a acontecer, a proibição dos livros, e o livro retrata essencialmente as consequências desse acto. As tecnologias de que se fala são consequências/causas disso mesmo. Cá está uma obra claramente classificada como FC, na sua vertente de distopia, mas em que a Ciência e o seu impacto não é o mais importante, na sua essência.
Com isto em mente, vou tentar responder a outra pergunta que já fiz a mim mesmo várias vezes: a FC tem prazo de validade? A resposta mais imediata é dizer que sim. Se pensarem na vertente do impacto tecnológico, lembro-me de Jules Verne que, num dos seus livros, provavelmente no Vinte Mil Léguas Submarinas, mas não garanto, faz uso de escafandros com um sistema de respiração qualquer que na altura não existia. Podia-se considerar FC. Mas esse sistema é agora obsoleto.
Já se pensarem em futuro hipotéticos, bem, lembro-me do 1984 (1, 2), de George Orwell. Como o próprio título indica, o futuro distópico ali retratado já se tornou num passado por concretizar.
Ou seja, a FC tem de facto um prazo! É uma espécie de literatura que impõe uma restrição temporal a si própria, por causa das suas próprias especificidades! Ou será que não? Estes dois casos que mencionei são mais duas mostras de genialidade pura e que não deixaram de ser livros soberbos por supostamente estarem fora de prazo. O isolamento social do Capitão Nemo continua a ter a mesma intensidade, e a crítica política e social do livro que cunhou o termo Big Brother continua a ter a mesma força nos dias de hoje.
E isto porque a resposta mais imediata está absolutamente errada. A FC, ou melhor, a boa FC não tem prazo de validade. É que de forma alguma. Para começar, como qualquer livro, uma obra de FC tem que ser lida no contexto em que foi escrita. Os livros de Verne são inovadores e proféticos, tendo em conta a altura em que foram escritos. A distopia de Orwell foi uma crítica certeira, que vai dando mostras de estar certa, e que continua actual.
Além disso, um livro verdadeiramente bom de FC é intemporal. Acaba por estar situado fora de qualquer contexto social, político, económico, artístico, o que quer que seja, e por se tornar universal. É assim com Verne, com Orwell, com Bradbury, com Clarke, com Wells, com Huxley e com tantos outro que ia precisar do dobro do espaço que já ocupei, só para começar. Há autores que ficaram na história e autores que para lá caminham, que conseguiram escrever obras que de tão geniais se tornam clássicos instantâneos, dignos de Nobel, diga a Academia Sueca o que disser, sem qualquer tipo de prazo de validade.
É esta a minha opinião final, obviamente discutível. O meu gosto pessoal por FC retira-me praticamente toda a objectividade, mas também, quem é que quer ler um artigo de opinião inteiramente objectivo? A FC é dos meus géneros favoritos e faça eu o que fizer, não me consigo desligar disso. E o facto de responder negativamente à questão do prazo diz-me que os livros que já li e adorei vão continuar espectaculares e, mais importante ainda, que os que ainda não li vão continuar a ter a sua força e intensidade!
E tudo isto com o ocasional laser de bónus.
2 comentários:
Grande crónica!
Acho que as pessoas costumam ter uma ideia muito errada em relação à FC, que é representada apenas pelos cromos que não saem da cave e revêem todos os dias as aventuras do Skywalker, quando na verdade, é muito mais que isso!
Distopias, steampunk, cyberpunk, etc, etc, do melhor que o género tem para dar e tantas vezes menosprezado, por preconceito apenas!
Agradecido.
Concordo com o que dizes... A maior parte das pessoas não tem noção do que é realmente a FC, o que é uma pena, sendo o género espectacular que é.
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