Começo a ficar preocupado. Sou um bookaholic confesso, nunca tive problemas com isso, mas começo agora a sofrer os efeitos. Até este ano lia em média, em tempo de aulas, 1 ou 2 horas por dia. Nestas últimas férias, de relaxamento supremo, cheguei a ler 6 e 7. Agora? Se conseguir 20 minutos, dou-me por feliz. O que me deixa preocupado. A este ritmo, o mais provável é começar a ter tremores e suores frios, e a andar mais nervoso, cheio de tiques. E depois entro em choque, ou algo do género.
O ritmo da universidade é intenso, e ainda não é nada comparado com o que aí vem. É sempre a subir. O que vai fazer com que eu precise cada vez mais de ler, pois vou ter cada vez menos tempo. Já aproveito as viagens de metro, cerca de 20 minutos para cada lado, e cada tempinho morto, daqueles que não são curtos o suficiente para passarem tranquilamente, mas que não são longos o suficiente para sacar dos livros e estudar um pouco. Pareço um verdadeiro agarrado. Que é o que eu sou, só que com aquela que é provavelmente a droga mais saudável do mundo: a literatura.
No entanto, e não se assustem com o que vou dizer a seguir, a falta de tempo para ler tem as suas vantagens. Parece estranho, eu sei, mas vamos com calma que eu explico. Para começar, faz com que eu preze muito mais o tempo que passo a ler. Seja um policial da rainha dos policiais, seja um artigo científico, seja um texto sobre lógica matemática ou sobre encontrar deltas e epsilons, sejam as fofoquices estupidificantes duma revista cor de rosa, ou sejam as vá, "notícias", do Correio da Manha, absorvo cada palavra como se fosse a última. Às vezes chego a dar por mim a apreciar mais o acto de ler, o de ver palavras escritas à minha frente, do que o conteúdo em sim (o que não é difícil, nos últimos dois casos). Esta falta de tempo tornou os meus momentos de leitura completamente sacrossantos.
Outra vantagem foi a de me pôr a pensar na leitura. Sim, estou assim tão mal, fico com tantas saudades de ler que me ponho a pensar e a imaginar o acto de ler. Crazy person? Só se ainda não tiverem percebido que ler se tornou um acto tão básico como comer, ou dormir. O que é que fazem quando estão cheiinhos de fome, mas não têm nada para comer? Não imaginam bifes suculentos a deslizar à vossa frente? Ou quando estão a morrer de sono, e não podem dormir, não começam a ver as vossas caminhas à frente, com o ar mais apetecível deste mundo? É o que já me acontece com a leitura.
Pois bem, avancemos. No que é que eu penso, exactamente? Bem, além da simples sensação de sentir um calhamaço nas mãos, dou por mim a pensar: "porque é que há cada vez mais gente a ler, mas cada vez menos gente a ler?". Antes que pensem que estou a dar numa de Pessoa e a ditar paradoxos ao ar só porque sim, sigam a minha linha de raciocínio. É um facto que há cada vez mais pessoas a ler, ou melhor, que pegam em livros e os lêem. O pormenor está aqui. Quando digo que pegam em livros e os lêem, não digo que peguem em livros a sério, ou que mesmo que peguem, que os leiam como deve ser. É a diferença entre o aumento da leitura e a banalização da leitura.
Do meu ponto de vista, acho que este fenómeno da banalização da leitura se intensificou até extremos insuportáveis, a partir da altura em que a saga de vampiros de Meyer teve o seu ponto alto de fama. São livros fáceis de digerir, com um aspecto grande e imponente, mas com pouco "sumo", que mesmo que sejam bem escritos (o que não acho que sejam, mas enfim), e que sirvam para entreter durante uns dias, não passam disso. São meros romances adolescentes extremamente comerciais. E desde essa altura é ver livros como esses a surgirem literalmente aos pontapés. Historietas de caracácá, com montes de páginas e montes de personagens lindas de morrer, cheias de amor para dar e mais sei lá o quê, mas com pouca história, essencialmente repetitivas e basicamente desinteressantes. São as novelas da TVI em formato de livro.
E isto irrita-me. Digam o que disserem, ninguém me convence que é melhor lerem alguma coisa, mesmo que sejam esses livritos (perdoem-me os fãs) ranhosos, do que não lerem nada. Acredito piamente que são altamente estupidificantes, tal como as telenovelas da TVI. E alguns são verdadeiros insultos a livros a sério. E sim, também sei que estou a ser mauzinho, até podem dizer que estou a ser injusto e isso tudo, para além de estar a escrever demasiado, mas não me consigo conter. Eu, um apaixonado pela leitura e pela literatura, que actualmente mal tempo tem para se coçar ou para escrever textos irritados mais longos que o usual, quanto mais para ler, ia ser simpático e ficar feliz por pessoas que não liam nada e agora devoram livrinhos todos feitos do mesmo molde, às dezenas, todas contentes por estarem finalmente imersas no mundo da "literatura"? Sim, estou a ser mauzinho, mas reservo-me esse direito.
Quer dizer, há rapaziada mais nova, até da minha idade ou mais velhas, que nem sequer sabem quem é o Júlio Verne. Ou o Edgar Allan Poe. Lovecraft. Mark Twain. Que nunca leram uma história do Sherlock Holmes, ou que acham que o Poirot é francês. Que adoram O Senhor dos Anéis, mas não fazem a mínima ideia de quem seja Tolkien. Que nunca pegaram em Oscar Wilde. Que dizem que Saramago era aquele chato armado em revolucionário que não sabia escrever QUE DIZEM QUE MEYER É A MELHOR ESCRITORA DO MUNDO. Que acabam de ler Os Maias e só sabem dizer "é engraçado, mas aborrecido, tem umas descrições muito grandes". Que odeiam Os Lusíadas sem sequer fazerem a mínima ideia de como é o livro, e daquilo que narra.
E depois não querem que eu me irrite. Irrito-me, aborreço-me e enervo-me. E muito. É preciso salvar a leitura deste autêntico abandalhamento, é preciso mostrar por a mais b que qualquer linha escrita por Oscar Wilde tem provavelmente mais amor e sentimento que os fast-books que andam a ler, e que os contos de Poe e de Lovecraft têm mais conteúdo que grande parte destas pseudo-sagas que aparecem em todos os cantos... Nós, leitores, temos que mostrar a toda a gente que precisam de começar a ler e não apenas a ler. Não podemos, ou melhor, ninguém pode ser assim tão simpático e tolerante. Enquanto leitores e enquanto pessoas, temos que ser realistas, e ver que isto está a descambar. Que Meyers e companhia não são literatura, e a não aceitar que alguém argumente que estamos errados. Uma coisa é ser tolerante para com as crenças e ideias dos outros, outra coisa é ser estúpido e ceder à lógica da batata e a argumentos furados.
Façam-me companhia, chateiem-se nem que seja um bocadinho com esta situação e perdoem-me o longo, longo discurso. Boas leituras meus amigos.