sábado, 29 de dezembro de 2012

The City & The City

Título: The City & The City
Autor: China Miéville


Sinopse: When the body of a murdered woman is found in the extraordinary, decaying city of Beszel, somewhere at the edge of Europe, it looks like a routine case for Inspector Tyador Borlú of the Extreme Crime Squad. But as he probes, the evidence begins to point to conspiracies far stranger, and more deadly, than anything he could have imagined. Soon his work puts him and those he cares for in danger.
Borlú must travel to the only metropolis on Earth as strange as his own, across a border like no other. It is a journey as psychic as it is physical, a shift in perception, a seeing of the unseen, a journey to Beszel's equal, rival, and intimate neighbor, the rich and vibrant city of Ul Qoma.


Opinião: Este livro foi-me emprestado por um amigo, depois de muito tempo a chagar-me o juízo a tentar-me convencer que este era o melhor livro do mundo e não sei quê. Portanto quando o comecei a ler, já foi com uma certa inclinação, no que toca a expectativas.

E a princípio assustei-me um pouco. As primeiras 100 páginas não são nada de particularmente espectacular. A escrita é boa, a imaginação é completamente fora de série, mas a história em si... meh.

Mas friso que a imaginação é completamente fora de série. The City & The City é sobre duas cidades que coexistem no mesmo espaço físico, numa situação política, social e filosófica bastante complicada. Há zonas em que as cidades se cruzam e há pessoas de cada cidade a caminhar lado a lado, a meros centímetros de distância, mas cada um na sua própria cidade, na sua própria rua e ao lado dos seus próprios edifícios.

Para manterem tal situação, os habitantes de ambas as cidades, Bèsz e Ul-Qoma tiveram que aprender a unsee, unsmell e unhear, ou seja, a não-ver, não-cheirar e a não-ouvir. No meio disto tudo, atravessar de forma ilegal de uma cidade para a outra é um crime bastante grave, e qualquer infracção é de imediato punida pela Breach uma força quase alienígena, misteriosa e bastante poderosa e eficaz que afasta ou elimina qualquer infractor.

Eu nem consigo explicar isto muito bem, mas acreditem, completamente fora de série. É pena é que as primeiras páginas me tenham dito muito pouco... Só a partir de quase metade do livro é que fiquei realmente interessando e vidrado na história, quando o mistério se adensou e o enredo começou a ganhar contornos mais, digamos, twisted.

A partir dessa altura foi uma festa. A intensidade da história foi sempre a aumentar, assim como a qualidade, e quando acabei de ler fiquei com pena de não ter direito a mais páginas que continuassem a história, pois embora esta história em particular já estivesse terminada, Bèsz e Ul-Qoma ainda tinham muito para contar...

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Ficções


Título: Ficções
Autor: Jorge Luís Borges
Tradutor: José Colaço Barreiros

Sinopse: Unanimemente considerado como um dos monumentos literários mais deslumbrantes do século XX, Ficções embrenha-se no universo labiríntico de Jorge Luís Borges como nenhuma outra obra do autor. Num diálogo constante entre ficção e realidade, entre ciência e fantasia, Borges obriga o leitor a assumir um papel activo, a enfrentar as suas próprias incógnitas, a reflectir sobre o seu papel. O leitor descobre rapidamente que, nessas "ficções", há algo mais do que uma diversão retórica ou um passatempo mental e, à medida que avança na leitura, começa a vislumbrar a trama complexa de uma metafísica inquietante.
Ficções é composto por dois livros que, num primeiro momento foram publicados em separado, O Jardim dos Caminhos Que Se Bifurcam e Artifícios, embora ambos girem à volta das mesmas imagens e dos mesmos temas: o infinito, os jogos de espelhos, a cabala, os enigmas de detectives, o destino, o tempo, o fascínio pela palavra... Em todos os contos se respira um espírito atemporal, de universalidade, no qual se pode encontrar uma biblioteca com todos os livros possíveis, um homem de memória infinita e outro capaz de dar vida a uma personagem sonhada.

Opinião: A conclusão mais imediata que retiro desta leitura é que Borges era um génio. A segunda conclusão mais imediata é que não é nada fácil ler Borges.

A escrita é óptima, sem ser demasiado intrincada. Mas os enredos, quando os há bem definidos, são terrivelmente complexos e cheios de simbolismo. Jorge Luís Borges tem uma metafísica muito própria, repleta de fascínio pelo infinito, pelo conceito de Tempo e pela leitura.

Tudo isto com um simbolismo extremo. Acho que às vezes é possível ler duas ou três páginas seguidas deste livro sem encontrar uma única palavra que não esteja envolvida num qualquer simbolismo obscuro.

E de uma certa forma, isso é uma grande parte daquilo que faz Jorge Luís Borges um génio, mas é igualmente a principal causa de ser tão complicado de ler. É que embora cada conto raramente ultrapasse as 10 ou 15 páginas, com a maior parte a ter 5 e 6, a densidade narrativa, ideológica e simbólica é absurdamente enorme.

Para não variar, nestas coisas, tenho que dizer que provavelmente passou-me muito simbolismo ao lado. No meio de tantos espelhos, homens sonhados que sonham homens, infinitos, bibliotecas enormes com todos os livros possíveis e tantas outras coisas, é-me bastante complicado apreender todos os pormenores que o escritor tenta fazer passar, e muito menos toda a simbologia que não duvido estar bastante concentrada em quase tudo.

Mas apesar disso, percebi perfeitamente o quão genial este escritor era. As histórias são acima de tudo bizarras, algumas parecem experiências mentais, e todas elas revelam uma imaginação virtualmente sem limites, bem como uma mestria na escrita e na forma como desenvolve as ideias.

Só por isso já valeu a pena ler o livro... Por isso e por ter ficado ainda mais curioso quanto a este autor. As pequenas ficções presentes neste Ficções vão do completamente absurdo ao quase plausível, e há frequentemente uma mistura e um confronto entre a ficção fantástica que é lida, a realidade que é lida, e a realidade que é vivida. O que faz deste um livro deveras estranho e magistral, embora não possa afirmar que tenha delirado com o livro, mas provavelmente só por causa das razões que mencionei ali em cima, nada de muito importante... Agora vão, e leiam Jorge Luís Borges!

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Natal?

A noção de Natal fascina-me. É uma época tão adorada e verdadeiramente idolatrada por tanta gente, mas não há nada relativamente a ela que não esteja de alguma forma errada.

Vejamos, para começar, o dia em que o Natal é celebrado. Já se chegou à conclusão, de milhentas formas diferentes, que calha exactamente no mesmo dia em que um qualquer culto pagão tinha uma celebração ao Sol. Também já se viu que aquilo que vem sugerido na Bíblia para a data de nascimento de Jesus é algures no Verão, nunca no final de Dezembro.

Mas isto ainda é o menos relevante. Vejamos aquilo que define o Natal: prendas, estar com a família, prendas, felicidade, prendas, comida e prendas.

Se existir uma festividade materialista por excelência, é o Natal, seja lá porque motivo for. No início da coisa, a troca de prendas pode ter sido um gesto simbólico e cheio de significado, mas actualmente é uma mera convenção social. É natal, então, dão-se e recebem-se prendas. Porquê? Ninguém sabe muito bem. "É tradição!", gritam uns, desesperados com a minha falta de espírito natalício, aos quais respondo aquilo que respondo sempre que me falam de tradições, "Os aztecas tinham como tradição sacrificar pessoas...". Não é inteiramente verdade, nem verdadeiramente relevante, mas dá para ilustrar aquilo que quero dizer.

As tradições são importantes enquanto tiverem algum significado. A partir do momento em que a razão de se cumprir uma tradição é exactamente por ela ser tradição... Bem, deixou de fazer sentido. E actualmente é isso que se verifica com o Natal. Junta-se a família, trocam-se prendas, enche-se o bandulho, toda a gente faz de conta que tudo vai bem na vida, e passados 2 dias vai cada um para o seu canto, a refilar por causa das prendas que recebeu ou não recebeu, e de como mal podem esperar para voltarem para casa.

Eu sei, eu sei, nem toda a gente é assim. Nem todos os Natais funcionam desta forma. Mas tenho quase a certeza que 90% deles, para 90% das pessoas, são exactamente assim. As pessoas andam cabisbaixas durante o ano todo, e depois fazem de conta que são felizes, durante o Natal, tal como faz toda a gente à sua volta. Todos fazem de conta que acreditam uns nos outros, e no fim cada um continua a ignorar os problemas dos outros e a sofrer com os seus.

É como quem lê um qualquer livro filosófico bastante intelectual uma vez por ano para manter a ilusão de que é muito inteligente, e depois passa o resto do tempo a ler revistas cor de rosa e jornais desportivos. Quando alguém lhes perguntar o que andam a ler, respondem de imediato com o último livro que leram, tenha sido a semana passada ou há 3 meses, como se o tivessem acabado ontem. Fixam-se a essa memória e usam-na como querem para manterem a ilusão de que são inteligentes, tanto para os outros como para si próprios.

Com o Natal é mais ou menos a mesma coisa. Há mais festas em que acontece o mesmo, mas este é o caso mais flagrante. As pessoas vão-se agarrando à memória do último Natal, em que estavam felizes e todos estavam felizes à sua volta, enquanto anseiam pelo próximo Natal, em que vão estar felizes e todos vão estar felizes à sua volta, esquecendo-se no processo que entre um e outro há 12 meses de vida, 12 meses que já há uns anos se encontram cheios de desgraças, tristeza, miséria e coisas desagradáveis afins.

Podem argumentar contra a minha visão alegadamente pessimista das coisas (eu continuo a dizer que é realista, não tenho é culpa da realidade ser tão desagradável), dizendo que estou a ver as coisas mal, que as pessoas aproveitam o Natal para estarem felizes e se esquecerem das desgraças que as afligem o resto do ano. Isso é pura parvoíce. Há uma diferença entre estar feliz e ser feliz. E aquilo que acontece no Natal é que as pessoas estão tão ocupadas a estarem felizes, que se esquecem de serem felizes.

A felicidade do Natal é uma felicidade socialmente convencionada, não tem qualquer tipo de significado real. As pessoas actualmente não são felizes, de uma forma geral, e fazem de conta que sim, no Natal, para parecer bem. Encontram-se com a família, trocam prendas, sorrisos e doces, tentam entrar no espírito natalício, convivendo com a família de cuja existência só se lembram nestas ocasiões e dizem a si próprias que estão felizes.

É por isto que o Natal me chateia cada vez mais. Com a desculpa de que estão a aproveitar a ocasião para se esquecerem das desgraças, arranjam um pretexto para as ignorarem. Não finjam que estão felizes, façam por serem felizes. E acima de tudo, não me chateiem com as mensagens hipócritas de "Feliz Natal!", ou o raio que o parta. Em vez disso, façam por passar um Natal que seja verdadeiramente agradável, com ou sem família acoplada, com muitas ou poucas prendas, comam bacalhau ou comam peru ou ensopado de lentilhas. Eu sei que o meu é essencialmente passado a ler, e sei também que a minha visão das coisas não é de todo a mais agradável, ou a mais esperançosa, mas não sou conhecido por ser uma pessoa muito virtuosa e cheia de fé.

Dito tudo o que tenho a dizer, perdoem-me a intromissão desta crónica na temática da literatura sobre a qual costumo dissertar, mas de vez em quando tenho que fazer destas coisas, porque bem... a vida não é só livros, não é verdade?

domingo, 23 de dezembro de 2012

The Hobbit


Título: The Hobbit
Autor: J.R.R.Tolkien

Sinopse: Bilbo Baggins is a hobbit who enojys a comfortable, unambitious life, rarely travelling any further than his pantry or his cellar. But his contentment is disturbed when the wizard, Gandalf, and a company of dwarves arrive on his doorstep one day to whisk him away on an adventure. They have a plot to raid the treasure hoard guarded by Smaug the Magnificent, a large and very dangerous dragon. Bilbo is most reluctant to take part in this quest, but he surprises even himself by his resourcefulness and his skill as a burglar!

Opinião: E anos e anos depois de ter lido e ficado maravilhado com a trilogia Lord of the Rings pela primeira vez, de ter visto os filmes e de muito ter ouvido falar, lido e pesquisado sobre a Middle Earth de Tolkien e todo o mundo fantástico que criou, leio finalmente o livro que tudo começou!

Foi preciso ameaçarem-me com o filme, que prometia ser de uma espectacularidade acima da média (o que cumpriu), tendo em conta os três filmes da trilogia e os avanços na tecnologia de imagem e afins, para que eu me mexesse e lesse The Hobbit, até devia ter vergonha. Agora que o li, mal posso esperar para arranjar a trilogia em inglês, o Silmarillion e todas as outras obras de Tolkien a que seja humanamente possível deitar a mão...

Falando do livro em si, The Hobbit não tem a grandiosidade nem o tom épico da trilogia. É muito mais infantil, ou juvenil, melhor dizendo, o que era de esperar, já que começou por ser uma história que o escritor contou aos filhos, ainda pequenos. Como tal, é um livro muito mais ligeiro, menos denso, mais cómico e que se leva menos a sério, por assim dizer. É aqui que aparecem algumas das personagens que já toda a gente conhece, como Gandalf, Bilbo Baggins, Elrond e Gollum, embora se note que ainda não estão propriamente desenvolvidos.

O Gandalf de The Hobbit é um velhote folião, apenas com pequenos laivos do Gandalf mais dark e pesaroso da trilogia. A personagem fica assim ligeiramente menos interessante, mas esta diferença pareceu-me normal, na altura dos acontecimentos deste livro ainda o Mal que viria a cair sobre a Middle Earth não passa de uma ameaça que se julga subjugada e que muitos já esqueceram.

Elrond acaba por ser uma personagem menor, bastante importante, mas menor. Gollum acaba por estar praticamente igual, completamente louco, com a sua estranha forma de falar, a sua brutal bipolaridade e toda a aura de mistério e estranheza que o rodeia, sempre que aparece. A revelação deste livro é mesmo Bilbo, uma personagem menor na trilogia, e que aqui assume o papel de protagonista, revelando que é uma peça essencial para o destino da Middle Earth.

E não me posso esquecer dos anões, cada um com as suas particularidades e que são os companheiros de Bilbo, juntamente com Gandalf, de vez em quando, na sua viagem deveras inesperada. Thorin Oakenshield, o líder da companhia é mais grave e sério, mas os outros são bastante divertidos e uma das fontes de animação deste livro.

Por fim tenho que mencionar os wargs, os goblins, as águias, o grande Beorn, as aranhas de Mirkwood e Smaug, o dragão, cuja morte era o grande objectivo da demanda de Bilbo, Gandalf, Thorin e do resto do anões. São demasiadas coisas para mencionar em grande detalhe, quero apenas terminar por dizer que fiquei um bocado decepcionado. O livro é bom, mas não é assim tão espectacular quanto isso. A escrita é fenomenal, entenda-se, e já é possível entrever o mundo que Tolkien criou, com a sua fantástica mitologia muito própria, mas o facto de ser um livro mais juvenil tira-lhe algum interesse.

Aquilo que acontece a certa altura é que há momentos de grande tensão e que quase podiam dar um livro por si só, com problemas e dilemas e situações complicadas que são resolvidas em meia dúzia de páginas, de forma simples e sem espinhas. É um mal que, como já disse, pode ser atribuído e compreendido por The Hobbit ser um livro mais juvenil, uma história que começou por ser contada aos filhos de Tolkien, mas que faz com que eu não consiga delirar por completo com o livro.

Não posso no entanto negar que embora a grandiosidade esteja maioritariamente ausente, é possível entrevê-la, a espaços. The Hobbit pode não ser o melhor livro de Tolkien, mas não deixa de ser um bom livro e, acima de tudo, uma excelente introdução à Middle Earth.

sábado, 15 de dezembro de 2012

A Nona Vida de Louis Drax


Título: A Nova Vida de Louis Drax
Autor: Liz Jensen
Tradutor: Ana Saldanha

Sinopse: Louis Drax é um miúdeo de nove anos, precoce, inteligente, problemático e muito dado a acidentes. Sofreu pelo menos um episódio maior, acidente ou doença, em cada ano da sua curta vida, mas sobrevive sempre como o gato que cai sobre as quatro patas. Durante o piquenique familiar por altura do seu novo aniversário, cumpre-se a maldição que parece assombrá-lo, cai do alto de uma falésia e afoga-se num rio permanecendo num coma profundo de onde poderá não regressar. Tão dramático e dúbio acontecimento implica também o misterioso desaparecimento do pai de Louis, Pierre Drax. Louis acaba por ficar ao cuidado de Pascal Dannachet, um neurologista que acredita em coisas que os outros médicos não acreditam. Em simultâneo, desenrola-se uma investigação policial para tentar encontrar o principal "suspeito" do que poderá ter sido um crime, o desaparecido pai. Esta história brilhante e impecavelmente arquitectada, cheia de um irreverente humor negro e intensamente empolgante, é contada a duas vozes: a do próprio Louis, dentro do seu inacessível subconsciente, e a do neurologista, que não consegue resistir à sedução de Natalie Drax, a sofredora e vitimizada mãe de Louis.

Opinião: Este livro é definitivamente uma das grandes revelações do ano. E a história de como peguei nele para o ler é engraçada. Recebi um mail a fazer publicidade a umas promoções da Presença, e para aproveitar andei à procura de livros porreiros dentro de uns certos critérios. Achei piada a este e ia aproveitar. E não é que no dia a seguir vou à Biblioteca Orlando Ribeiro para a Troca de Livros, e está lá este à minha espera. Oh!

Portanto eu não esperava nada de especial deste livro, nem me lembrava de alguma vez ter ouvido falar dele. A ideia era experimentar e ver se era minimamente interessante. É assim que aparecem as revelações. A Nona Vida de Louis Drax é um livro pequeno e de leitura rápida, mas com um enredo interessantíssimo e muito bem construído e desenvolvido. A escrita de Liz Jensen oscila na perfeição entre o registo de um miúdo de 9 anos com um QI acima da média, e o seu médico atormentado pelos seus próprios demónios pessoais.

Esse é, aliás, um dos pontos fortes deste livro, a forma como a escritora consegue "entrar" tão bem na pele de cada uma dessas duas personagens, o próprio Louis Drax e o Dr. Dannachet. O primeiro é um rapazinho deveras inteligente com bastante propensão a acidentes. Volta e meia tem um acidente, ou apanha uma doença qualquer e fica às portas de morte. Isto desde que nasce, quase mês sim, mês sim.

O segundo é o médico que fica a tratar dele depois de Louis entrar em coma, devido a um acidente durante um piquenique com os pais. Há especulação sobre o que sucedeu, há buscas pelo pai do Louis, que desaparece, há dilemas pessoais do médico... Mas o mais interessante é mesmo o facto de haver capítulos passados na cabeça do Louis, estando ele em coma.

E depois o final. O clímax é lento, e deu para me ir apercebendo do que vai acontecer, mas quando me caiu em cima a compreensão total daquilo que faltava perceber... Fiquei literalmente de boca aberta. Genuinamente... chocado. E isso não é fácil. Como tal, posso apenas elogiar este livro e esta escritora. Com uma qualidade acima da média, Liz Jensen conseguiu escrever uma história que me prendeu e que me surpreendeu, dentro de um estilo que raramente me agrada por aí além. Muito bom.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

E agora?


Tenho uma série de autores cujas obras quero ler na totalidade, sem falta, até ao dia em que morrer ou ficar incapacitado de ler (com sorte, ambos os dias coincidirão). José Saramago, David Soares, João Barreiros, Stephen King, H.P.Lovecraft, Italo Calvino e Jules Verne são a lista actual, se não me estiver a esquecer de ninguém. São daqueles autores que me marcaram de uma forma particularmente intensa e dos quais pretendo, pura e simplesmente, ler TUDO o que houver para ler.

Mas estava agora mesmo a pensar nisso, e surgiu-me uma dúvida. Combinando Saramago, King, Lovecraft e Verne, já tenho livros suficientes para me entreter durante uns anos... E João Barreiros e David Soares ainda andam aí a escrever, já para não mencionar Calvino que também escreveu que se desunhou. Mas então e depois?

Imaginem que daqui a uns anos chego a uma altura da minha vida em que li tudo o que havia para ler, desses escritores. Não consigo imaginar a sensação. Será que me vou sentir completo e feliz em termos literários? Será que me vou sentir finalmente livro daquilo que acabou por se tornar uma obrigação? Será que vou simplesmente sentir um vazio e um desgosto por já não ter mais nada deles para ler?

O meu caso é um bocado radical, mas pensem em vocês. Todos temos pelo menos um escritor ou escritora que praticamente divinizamos. Imaginem que a certa altura já leram tudo o que havia para ler dessa vossa divindade literária. O que sentem? Felicidade extrema? Tristeza absurda? Incredulidade? Colapsam ali mesmo, no momento em que fecharem o último livro? Entram num estado de apatia e vazio mental?

A minha questão pode-se resumir apenas em: leram tudo, e agora?

sábado, 8 de dezembro de 2012

O Sangue e o Fogo

Título: O Sangue e o Fogo
Autor: António de Macedo

Sinopse: Prepare-se para uma viagem fantástica que começa nas ruínas da lendária Khalôm, cujas ruas eram percorridas pelas almas dos mortos porque um terrível sortilégio impedia o acesso às regiões celestes a quem morresse dentro das suas muralhas; uma viagem que continua com o choque entre os fanáticos rigores da Inquisição e as acções de bruxas que assolam uma vila no Alentejo; uma viagem que termina com um professor que capta as frases ditas por Jesus um mês antes da sua crucificação e que podem abalar os pilares em que assentam os principais dogmas da Igreja.

Opinião: Tenho pena de ter lido este livro nesta altura. Para o conseguir apreciar como deve ser, tenho que ter tempo para o ler calmamente e fazer pesquisa, para ser capaz de apreender tudo aquilo que António de Macedo tenta transmitir através da sua escrita e das suas histórias.

É que a escrita é impecável. As 3 peças de teatro (sim, teatro) têm histórias interessantes e, passe a repetição, surpreendentemente surpreendentes. A primeira, O Osso de Mafoma conseguiu apanhar-me desprevenido e dar umas reviravoltas quando eu já não esperava que tal fosse possível. A segunda, A Pomba, de longe a minha favorita, também teve alguns momentos em que fiquei de boca aberta. E por fim, A Nova Ilusão, que não é de todo a mais espectacular, mas que talvez seja a que tem a premissa mais louca, apesar de ser a que tem menos intervenção do sobrenatural.

Todas as 3 peças falam sobre vários assuntos como o amor, a obsessão, a morte e a religião, mas é especialmente sobre esta última que se concentram as atenções. Em O Osso de Mafoma há um amor impossível estilo Romeu e Julieta, com religiões em vez de famílias, mas com um início trágico e um fim... Bem, logo dão por ela. Passada ainda antes do ano 1000, é interessante ver o cuidado com que o aspecto histórico foi tratado, nomeadamente (e isto é um ponto comum a todas as 3 histórias) as mentalidades das pessoas da altura.

Curiosamente foi a peça mais antiga a que mais me interessou. A Pomba foi escrita foi em 1984, um ano antes de A Nova Ilusão e seis antes de O Osso de Mafoma, e passa-se já em plena época de Inquisição. Como já disse, foi a peça que mais me agradou, possivelmente por ter o fim mais... estranho e ao mesmo tempo espectacular, quase épico, ou talvez por ser simplesmente a que mais se adequa aos meus gostos. Fala de bruxaria, do fanatismo Cristão, da hipocrisia e do preconceito, sem descurar o amor, ou a falta dele. Gostei particularmente do facto da história se situar exactamente em cima duma linha bastante ténue e difusa que separa o real do Fantástico, deixando-nos a questionar me qual dos lados se situa definitivamente, mesmo após o final aparentemente óbvio.

E nesse aspecto fez-me lembrar um pouco o que sinto quando leio Agatha Christie, só que em vez de pensar que alguém é culpado de algo, deu para ficar a pensar sobre se o que estava a presenciar era magia ou não. Numa página, "Ah, isto foi claramente bruxaria!", e na a seguir "Espera, se calhar não, esta explicação faz sentido...". Nesse aspecto, genial.

Por fim, A Nova Ilusão é o que explora de forma mais intensa o fanatismo religioso de uma forma geral, usando uma facção do Cristianismo em Portugal como representante. Ou talvez tenha sido uma crítica intensa e específica ao Cristianismo em Portugal, pois bem vistas as coisas, o autor já sofreu bastante por causa dos seus filmes, polémicos e que nunca agradaram particularmente à Igreja.

De qualquer forma, a premissa é absolutamente louca, embora eu já a tenha visto algures. Não sei bem onde, sei apenas que a ideia base não é uma ideia completamente nova: a de usar utensílios feitos há muitos anos para ouvir sons dessas épocas. A ideia é simples e faz algum sentido, nomeadamente em peças de barro, feitas na roda do oleiro, com o auxílio de instrumentos metálicos que podem ter sido ligeiramente afectados pelos sons em redor, deixando irregularidades microscópicas na superfície que podem depois ser "ouvidas", via aparato tecnológico. Esta parte em si nem é assim tão louca, tendo em conta a pessoa que supostamente é ouvida através desta técnica, e o que ela diz...

Mas como disse no início, por muito que tenha gostado do livro, e em particular de A Pomba, tenho noção que houve muita coisa que me escapou. Preciso de pesquisar e de ler com uma enciclopédia gigantesca sempre ao lado, tal é a erudição e a cultura que este escritor passa para o papel. O que me leva à última coisa que quero dizer, que é deixar aqui bem assente qual é uma das partes mais interessantes de todo o livro: a introdução, prefácio, ou o que lhe quiserem chamar. António de Macedo é uma daquelas pessoas que dá gosto ouvir falar, como eu comprovei no Fórum Fantástico do ano passado, tal é intensidade com que o conhecimento emana da sua pessoa, e comprovo agora que consegue escrever como fala! Fiquei fascinado, como é óbvio.

O Sangue e o Fogo é então um bom livro, com potencial para ser um mais do que excelente livro, assim que eu o consiga ler com a atenção e as pesquisas adicionais que ele merece. Fica a vantagem de ficar a conhecer a escrita deste grande senhor e a vontade de ler e ver muito mais coisas do cineasta feito escritor que é um homem de cultura em todas as suas vertentes.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Elitistas literários


A primeira coisa que quero dizer é que não me considero isento de culpas. Por vezes corro o risco, e não só na literatura, de ser ligeiramente elitista. É defeito pessoal, admito, e não me sinto particularmente orgulhoso disso. São coisas que acontecem e que tento evitar, com mais ou menos esforço, dependendo dos dias.

Mas a segunda coisa que quero dizer, é que acho que mereço um desconto. Eu leio de tudo. Ficção científica, horror, crítica social, humor, policial, fantasia, romance histórico... Enfim, de tudo um pouco! E sem me ficar pela prosa, que eu também pego em teatro, em epopeias e em poesia. Algumas coisas mais que outras, é verdade, mas passo por tudo. Mesmo não sendo particular fã, ou sem conhecer, tenha eu os preconceitos que tiver, dou pelo menos uma oportunidade.

E isso é coisa que não acontece com os elitistas. Há pessoas que, do meu ponto de vista, não sabem realmente o que é ler. São aquelas pessoas que desprezam os chamados "géneros menores", como a fantasia, o horror e a ficção científica, por exemplo. Aquelas pessoas que apenas pegam num livro porque o autor ganhou um Nobel, ou porque é um clássico indiscutível, ou porque esse livro é considerado como obrigatório, para um leitor que se preze.

Atenção que não quero menosprezar esses livros. Eu também sou fã deles. Há escritores Nobelizados que aprecio bastante, tenho alguns clássicos entre os meus livros favoritos, e já tive algumas surpresas bastante agradáveis com alguns desses livros "obrigatórios". Mas raramente pego num livro especificamente por pertencer a uma dessas categorias. Pego num livro porque me apetece lê-lo, porque o achei interessante, ou até porque achei a capa engraçada e estava barato, não interessa.

O gosto literário é uma coisa que se vai construindo aos poucos, que é bastante pessoal e que tem defeitos. Posso ter entre os meus autores favoritos alguém que não é nenhum portento literário, mas cujos livros têm algum significado para mim. Ou gostar bastante de um livro pura e simplesmente porque uma das personagens é parecida com alguém que conheço, ou algo do estilo.

Ou seja, o que eu quero dizer é que não gosto de ter que gostar de um livro. Gosto de ter a possibilidade de dizer mal de um clássico, por exemplo. Às vezes parece que é quase sacrilégio. E eu bem sei que faço o mesmo com Tolkien, Lovecraft ou Saramago, só para citar alguns dos meus deuses literários pessoais, mas é diferente, pelo simples facto de eu até acabar por gostar mais de falar sobre esses autores com pessoas que nem são muito fãs. Normalmente é mais interessante do que as conversas que às tantas são simplesmente "epah, é muita bom!", "pois é!".

Mas estou a dispersar um pouco. Qual é, afinal, o meu problema com os elitistas literários? Como eu próprio já disse, o gosto literário é uma coisa bastante pessoal e que tem defeitos. Porque não aceitar que as pessoas que denomino de elitistas literários tenham apenas um gosto literário bastante diferente do meu, por serem pessoas bastante diferentes de mim? A verdade é que aceito isso. O que não aceito é que menosprezem o meu gosto literário.

É que eu cá não me importo que existam por aí pessoas que apenas pegam num livro depois de terem a certeza que o autor ganhou um Nobel. Ou outras que só lêem clássicos com 100 anos de idade, porque a literatura clássica é que é algo a sério. Que sejam felizes, cada um lê o que quer, e tanto uns como outros vão de certeza apanhar muitos livros de uma qualidade completamente alienígena e fora do alcance dos comuns mortais. O que não gosto é que essas pessoas achem que elas é que estão a fazer bem, que o gosto delas é que é o certo por ser à base de Nobeis e de clássicos, e que o meu e de outras pessoas é uma vergonha, limitado, inferior.

"Então mas não é exactamente isso que tu estás a fazer, Rui, ao criticares o gosto literários desses tais elitistas, em favor do teu?", perguntam vocês. Pois bem, talvez seja, mas quero acreditar que não. Acho que consegui transmitir a ideia de que o gosto literário dos outros não me chateia, só não gosto é de ver o meu inferiorizado. E agora chamem-me o que quiserem, mas um gosto literário está sempre longe de ser perfeito, e qualquer tentativa de o elevar acima do de outra pessoa, é pura hipocrisia. O que interessa não é só morrer depois de ler todos os livros de todos os autores Nobeis, é só morrer depois de ter lido coisas que nos marcaram, por uma razão ou por outra.

Não é preciso ser um livro que tenha mudado o Mundo, ou o de alguém que é um marco absoluto na literatura mundial. Pode até ser o guia turístico do supermercado do Zé da Esquina, o que é que isso interessa? Desde que nos tenha marcado, foi uma boa leitura. Há poucas coisas que saibam tão bem como comprar um livro pela capa e ele ser absolutamente fenomenal. Ou ler um livro do qual se desconfia fortemente e ver as expectativas a serem largamente superadas. Porque ler é isso mesmo, é descobrir mundos e explorar universos, chegar à conclusão que aquele autor completamente desconhecido devia ser o próximo Nobel, ou acabar um livro de 1400 páginas com o sentimento de "foram as horas mais bem gastas da minha vida".

Ficar acordado até às tantas porque o livro nos prendeu, acordar cedo para ler, ansiosos pela personagem que estava em risco de morrer, torcer por um desfecho amoroso e chamar nomes ao cavaleiro andante que estragou tudo, gostar mais do vilão ou do moço de estrebaria que só aparece uma vez, ler obras-primas e ler autêntico lixo literário... Ler é conhecer, é pensar, é descobrir, fugir, procurar e encontrar, ler pode até ser amar e odiar. Quando se gosta verdadeiramente de ler, ler pode ser tudo. E é isso que os elitistas não compreendem, e o que me faz dizer que não sabem o que é ler.

Um elitista literário lê grandes livros que lhe permitam elevar a alma e tornar-se num supra-sumo do conhecimento literário "à séria". Um leitor lê porque lhe apetece.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

The Catcher in the Rye

Título: The Catcher in the Rye
Autore: J.D.Salinger

Sinopse: A 16-year old American boy relates in his own words the experiences he goes through at school and after, and reveals with unusual candour the workings of his own mind. What does a boy in his teens think and feel about his teachers, parents, friends and acquaintances?

Opinião: Uma coisa tenho que dizer acerca deste livro: acho que nunca antes tinha visto um livro a salvar-se tão bem nas últimas 10 páginas.

Mas começando pelo princípio, comprei este livro por ser um livro tão polémico. Não sabia bem a história, sabia apenas que era essencialmente sobre a revolta adolescente e que chegou a ser, ao mesmo tempo, o livro mais proibido e o segundo mais ensinado nas escolas americanas. Fascinante.

Comprei-o, portanto, e li-o, e não achei grande piada. E desenganem-se a história não é essencialmente sobre revolta adolescente, isso soa a Morangos com Açúcar e este livro está bem longe disso. A personagem principal, Holden Caufield, filho de pais ricos, está doente e decide contar a sua história, ou parte dela, a parte que culminou na sua doença.

Ao longo de 3 dias acompanhamos Holden, nas suas próprias palavras e na sua própria visão, desde o momento em que é expulso de mais uma escola, até ao momento em que fica doente. Este Holden, de 16 anos, é um rapaz bastante atípico. Vem de uma família rica, embora não o pareça, é bastante letrado e inteligente, mas completamente irresponsável no que toca à escola. Pensando melhor, não diria irresponsável, diria desinteressado. Holden é desinteressado, de uma forma geral.

E Holden não é simplesmente um adolescente. Holden é um adolescente em pleno processo de amadurecimento. Não acabou de se tornar um adolescente, está antes a meio caminho da idade adulta. Com a cabeça que tem, talvez esteja já bastante próximo. Holden sente-se perdido, confuso, revoltado, frustrado... É complicado, é muito complicado. E acima de tudo, está desinteressado. Tudo e todos lhe parecem hipócritas (phony e os seus derivados devem ser as palavras mais usadas), e acaba por ficar revoltado com tudo e todos. Admira a inocência e a pureza que vê nas crianças e gostava de as salvar de se tornarem naquilo que ele vê à sua volta e no qual tem medo de se tornar ele próprio: adulto.

Mas a verdade é que ao longo de praticamente todo o livro, a história não em conseguiu fascinar por aí além. Não vi ali nada de tão extremamente polémico e passível de ser punido com censura. A Bíblia tem coisas infinitamente mais violentas, há livros escritos de propósito para adolescentes com mais asneiras, e a revolta não me pareceu nada de especial. Quer dizer, não é nada de "Ah, o que é isto que estou a ler? Tenho que ir ali matar alguém!". É um sentimento de revolta bem descrito e bem explorado, mas não é propriamente incitador de nada.

Ou se calhar sou eu que estou mal habituado... Não sei. Só sei que o livro todo me pareceu bastante mediano até chegar às 10 últimas páginas. De repente ficou tudo tão bonito, tão redentor, tão feliz, tão maravilhosamente bem escrito... E depois mesmo no fim... Não sei se deva contar. Digo pelo menos que se não fossem estas últimas páginas, tinha descartado este livro como bastante mediano, e bastaram essas 10 páginas para mudar a minha ideia do livro. Fascinante.

domingo, 2 de dezembro de 2012

100.000


É bonito chegar a casa e ter atingido a marca das 100.000 visitas. Obrigado!

sábado, 1 de dezembro de 2012

Brinca Comigo!

Título: Brinca Comigo!
Autores: David Soares, João Barreiros, João Ventura, Luís Filipe Silva

Sinopse: Divirta-se, viaje e surpreenda-se com estas estórias fantásticas, forjadas na imaginação de quatro dos mais conceituados e inventivos escritores do género em Portugal, e que tiveram como ponto de partida aquele que é talvez o mais fascinante de todos os objectos: o Brinquedo. Ou haja quem nunca tenha experimentado os mundos maravilhosos que irresistivelmente se nos abrem a seus pés!

Opinião: É sempre agradável encontrar um livro à venda que já se pensava impossível de encontrar. Foi o que aconteceu com esta (abençoada feira do livro da estação de metro do Oriente) pequena colectânea de 4 contos, que inclui 2 dos meus escritores favoritos: João Barreiros e David Soares.

Não quero desprezar os outros dois autores, atenção. Só que de João Ventura não conheço quase nada, e apenas recentemente tive noção de quem era o Luís Filipe Silva, co-autor do Terrarium, que ainda tenho que encontrar, juntamente com o João Barreiros, e de outras histórias de ficção científica, editor de antologias e tradutor, além de outras actividades dentro da literatura, especialmente da ficção científica.

Interessante, mas quer dizer, João Barreiros! David Soares! Alguém que acompanhe as minhas opiniões deve ter noção do fascínio que tenho por estes 2 escritores. Mas vou tentar não descair muito para o lado de fã excitadinho.

Ora bem, o primeiro conto é precisamente Brinca Comigo!, que dá o título à antologia. É um conto interessante que eu já tinha lido em Se Acordar antes de Morrer, sobre um futuro distópico em que os brinquedos se agregaram numa Horda em busca de um alvo final. O ambiente é negro, a história é negra e as personagens são brinquedos... Foi para mim o melhor conto destes 4, digam lá que não estão interessados?

Passando a David Soares, o que é que acham que se pode esperar de Um erro do Sol? Definitivamente o conto mais estranho, sangrento e perturbador. Este homem escreve Horror com H bem grande. Tudo começa de forma muito inofensiva, com um brinquedo estranho, e descamba de forma bastante.... à là Soares, ainda que ligeiramente previsível. Se isso significa que este conto classifica este livro como "de certeza não aconselhado para estômagos fracos"? Completamente.

Mas para descansar um pouco, aparece A Boneca, de João Ventura, o conto que achei mais fraquinho. É interessante e a escrita não é má, mas pareceu-me ligeiramente banal e confuso. Uma história de voodoo ao longo de um período de tempo bastante alargado, e que serve como motor de uma (não tão) ligeira crítica social e isso tudo, mas enfim. Nada de especial.

Por fim, Não é o que ignoras o motivo da tua queda mas o que pensas saber, de Luís Filipe Silva, foi das coisas mais curiosas que li nos últimos tempos. A história base não é propriamente nova, uma invasão de extraterrestres, a forma como se lida com isso é que me pareceu bastante diferente do habitual. Estes extraterrestres são muito sossegados, muito calminhos, mas completamente implacáveis e imparáveis. E é óbvio que são vencidos, de forma bastante curiosa. Ou não.

Resumindo, apesar de ser um livro pequeno, Brinca Comigo! é uma leitura bastante interessante, que tirando o conto do João Ventura, tem apenas contos de muita, muita, muita qualidade, de escritores com muita, muita, muita qualidade, que raramente desiludem ou que prometem muito: João Barreiros, David Soares e Luís Filipe Silva. Não é, no entanto, um livro que seja lá muito aconselhado a toda a gente... Tem David Soares, e é sempre preciso algum estômago para digerir algo que ele escreva, não é verdade? Considerem-se avisados.

P.S.: Este livro deve ter a capa mais perturbadora de sempre.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Xadrez do Tempo

Título: O Xadrez do Tempo
Autor: James Blish
Tradutor: António Porto

Sinopse: James Blish é um dos autores de Ficção Científica mais originais e subtis, tanto nos temas como no estilo, e prova-o bem nesta sua obra. Imagine-se que, na busca de um meio capaz de assegurar instantaneamente, ou quase, as ligações com os outros mundos - que mesmo com as naves mais rápidas demoravam largos meses a chegar ao seu destino -, se descobria um transmissor que permitia comunicar não só através do espaço, mas também do tempo! Tendo diante de si um império interestelar em plena expansão, o Capitão Robin Weinbaum supôs que o transmissor Dirac seria a solução dos seus problemas. O pior foi quando o transmissor começou a receber mensagens ainda antes de elas serem emitidas.

Opinião: Este livro é bastante curioso. Para ser sincero, não sei bem o que dizer sobre ele. Isto volta e meia acontece-me, leio um livro e não sei bem o que escrever na opinião.

Sei dizer que não é um livro mau, de todo. Mas sei também que não posso afirmar que é um livro absolutamente fenomenal. E isso talvez esteja relacionado com o facto desta história ter começado como um conto, que foi depois expandido nesta novela (sim, é bastante pequeno, o livro). Essas coisas raramente correm bem.

Mas bem, o livro é interessante, e pelo que percebi tem vários conceitos que James Blish usa como universais ao longo de alguns dos seus livros: o cientista Haertel e as suas invenções, e o transmissor Dirac, por exemplo. É exactamente este último que toma um papel principal no enredo de O Xadrez do Tempo.

A ideia do transmissor Dirac é bastante simples, não passa de um transmissor de mensagens instantâneas. Muita gente agora pensa "mas isso é fácil, internet e não sei quê", mas desenganem-se. Não há nenhum tipo de transmissão de informação que se possa considerar  instantânea. Há apenas alguns que são tão rápidos, para os nossos padrões, que nos parecem instantâneas. Mas esses conceitos, como quase tudo, diluem-se e desvanecem-se quando estamos a falar do espaço. É que nada pode viajar mais depressa que a luz, e o Universo é bastante grande. Se algo está tão longe que a própria luz demora alguns anos a lá chegar, acho que é compreensível que a transmissão de informação para esse sítio é tudo menos instantânea.

Pois bem, o transmissor Dirac é um aparelho que faz uso de uma coisa qualquer bastante rebuscada e impossível (acho eu, física teórica a esse nível não é o meu forte) para transmitir mensagens de forma literalmente instantânea. A magia... Talvez seja melhor não falar de magia num livro de FC. A parte interessante é quando este transmissor Dirac começa a ser usado para fazer premonições. Não só dá para transmitir mensagens de forma instantânea, como recebe mensagens do futuro.

A parte curiosa é quando acaba por não acontecer absolutamente nada. Isto é descoberto, descobre-se também quem está por trás, uma pessoa que eu não estava nada à espera, depois há muito paleio e tudo acaba. Acho que podia ter sido um livro muito mais interessante se tivesse sido mais desenvolvido, se tivesse sido de facto um livro e não um conto maior que o normal.

De qualquer forma, a qualidade do autor, James Blish, é notória. Não que a escrita seja divinal, é até bastante mundana, mas pareceu-me consistente. Além de que o autor mostra uma boa imaginação, que além disso ainda é estranha. Fiquei bastante curioso para ler outras coisas, mas espero que este não seja o expoente máximo da sua qualidade literária...

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Que as citações nos caiam em cima [20]


O ponto forte deste conto de Edmond Hamilton é a perspectiva pouco habitual sobre as viagens espaciais e sobre ser um astronauta. E achei que este excerto em particular transmitia essa mensagem de forma particularmente eficaz...

"Astronauta - era o que eu era. Os jornais tinham começado a chamar-nos isso porque, segundo pensei, era uma palavra curta, boa para os títulos. Toda a gente nos chamava isso agora. Tínhamos passado o tempo a voar dentro de celas como as das prisões - mas agora chamavam-nos 'astronautas'."

Como é aquilo por lá?
Edmond Hamilton

sábado, 24 de novembro de 2012

Mensagens do Futuro [2]


Título: Mensagens do Futuro
Autores: Arthur C. Clarke, Brian Aldiss, Edmond Hamilton, Isaac Asimov, James Tiptree Jr., Kate Wilhelm, Mark Clifton, Robert Sheckley, Robert Silverberg, Ron Goulart
Tradutor: Eurico Fonseca

Opinião: Continuando onde acabei ontem: em Porquê?, de Robert Silverberg, a questão é tão simples quanto essa. Porquê? Porque é que insistimos em explorar, em sair da nossa zona de conforto e corremos riscos? Já morreram pessoas por causa das nossas ilusões de grandeza, o planeta inteiro tem actualmente problemas graves por sermos como somos. Mas não deixamos de ser curiosos, teimosos, de querer explorar tudo e conhecer tudo. Construímos as nossas naves e os nossos telescópios e tentamos perscrutar o Universo que nos rodeia, tentamos explorá-lo com objectivas potentes e naves massivas. E no fim do dia, fica a pergunta... Porquê? A resposta a que Silverberg chega é simples, e parece-me demasiado simples e óbvia para estar errada: porque podemos.


No conto seguinte, Ron Goulart mistura ficção científica e policial numa história que não achei nada de especial nem particularmente original. Que aconteceu ao Rosca-Moída? não passou, para mim, de um conto banal que tenta contar uma história bonita com características típicas da ficção científica.

Houston, Houston, estão a ouvir-me?, de James Tiptree Jr., que é afinal Alice Sheldon, desenvolve uma história sólida e algo assustadora, e é a prova escrita, como se tal ainda fosse preciso, de que a ficção científica e o terror são dois géneros quase siameses, tão facilmente se consegue oscilar entre um e outro, ou simplesmente misturar os dois numa história coerente. Eu pessoalmente já acreditava nisso, desde que li João Barreiros, mas este conto é mais uma evidência disso mesmo. E uma das que tem qualidade.

Essa sensação de quase simbiose entre FC e terror é continuada nesta penúltima história, Onde estiveste, Billy Boy, Billy Boy?, de Kate Wilhelm, um conto que o próprio Asimov descreve como "uma das histórias mais calmamente assustadoras que alguma vez foram lidas.". Eu compreendo o que ele quis dizer, há um certo tom de ameaça e de medo permanente ao virar de cada página, mas não me conseguiu convencer. Achei demasiado confuso e desconexo, especialmente tendo em conta o tamanho que tem. Talvez seja uma ideia que tivesse resultado melhor se tivesse sido contada num livro inteiro, mas falha o seu propósito ao apresentar-se como uma história tão curta.

E por fim, um conto do mestre em pessoa. Asimov presenteia-nos com A Pergunta Final, o único conto que não tem uma pergunta como título e que acaba por ser o mais alegórico de todos. No fundo não é bem um conto, li-o mais como um ensaio, parece um exercício literário e filosófico, que começa com uma premissa bastante simples de um mega computador que sabe responder a tudo, e que é desenvolvida passo a passo, à medida que o conto foi sendo escrito. Um conto/ensaio muito bom, a dar por terminada uma antologia muito boa de um género literário muitas vezes desprezado, e que aqui prova que consegue ser tão literário e filosoficamente activo como qualquer outro.

Fórum Fantástico 2012


Arrancou ontem mais uma edição do Fórum Fantástico, na Biblioteca Orlando Ribeiro, um excelente evento e que é cada vez mais um dos pontos altos do panorama literário português. Deixo-vos o programa, não se inibam em visitar! Mais logo lá estarei, para o Workshop de Escrita Criativa Fantástica. Aproveitem este evento!

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Mensagens do Futuro [1]


Título: Mensagens do Futuro
Autores: Arthur C. Clarke, Brian Aldiss, Edmond Hamilton, Isaac Asimov, James Tiptree Jr., Kate Wilhelm, Mark Clifton, Robert Sheckley, Robert Silverberg, Ron Goulart
Tradutor: Eurico Fonseca

Opinião: Antes de me debruçar sobre qualquer um dos contos reunidos neste antologia, quero mencionar 2 coisas. Não se deixem enganar pelo nome do autor que vem escarrapachado na capa. Mensagens do Futuro não é um livro de Isaac Asimov, ainda que contribua com um conto, mas sim uma colectânea de contos editada por ele, Martin Greenberg e Joseph Oladner, e que inclui contos de Arthur C. Clarke, Brian Aldiss, Robert Silverberg e todos os outros nomes sonantes mencionados ali em cima.

A segunda coisa é a genialidade e a criatividade por detrás deste livro. Como Asimov explica na introdução, o conceito é bastante simples: os contos aqui reunidos têm todos em comum a particularidade de terem uma pergunta como título e de serem, no fundo, a ilustração dessa pergunta, com a ficção científica a servir de pano de fundo perfeito para questões que atormentam a Humanidade há bastante tempo.

O primeiro conto Como é aquilo por lá?, é de Edmond Hamilton, um pioneiro da ficção científica norte americana, como diz Asimov na introdução que o antecede. Não sei se é de facto o melhor de Hamilton, como Asimov também menciona, mas é sem dúvida um óptimo conto e um dos melhores que já li dentro deste género. É acima de tudo um conto desiludido e que tenta mostrar o peso que é tomar consciência da imensidão do Cosmos e de quão fúteis e superficiais são as nossas tentativas de exploração do Universo.

Já em Quem poderá substituir o Homem?, de Brian Aldiss, a interrogação é mais directa e óbvia. Num mundo maioritariamente tecnologicamente avançado acabado de dizimar, quem é que manda? Como é que funciona a sociedade? Os robôs podem-se organizar, mas conseguirão sobreviver? Curto mas incisivo, este conto mostra que o Homem tem um papel importante no mundo, mas que não é, de todo, essencial à sua continuidade. E depois no fim há mais umas implicações, que deixarei incógnitas para não estragar a leitura, perdoem-me.

De seguida vem Que foi que eu fiz?, de Mark Clifton, um conto ao mesmo tempo optimista e negativista. O protagonista começa por combater uma ameaça à Humanidade, e acaba a perguntar-se se a verdadeira ameaça não é, afinal, a própria Humanidade. Uma das interrogações mais actuais que encontrei nesta colectânea, a pergunta que dá o título ao conto é apenas a ponta de um gigantesco iceberg das mais variadas considerações, acompanhadas lentamente, passo a passo. Primeiro a ameaça e a luta desesperada para proteger aquilo que o protagonista julga ter que sobreviver a todos os custos, a Humanidade. Depois uma lenta tomada de consciência, por contraste com a alegada ameaça, de que a Humanidade é uma ameaça por direito próprio. Muito bom.

O quarto conto é daquele que é para mim um dos maiores génios da literatura e que simboliza um dos expoentes máximos da ficção científica: Arthur C. Clarke. Já há muito rendido a este escritor, Quem está aí? apenas cimentou a minha opinião sobre ele, a de que Clarke é genial, genial, genial. Não há grandes interrogação filosóficas ou metafísicas, há, isso sim, uma situação bem contada e descrita, uma muito boa historieta contida em meia dúzia de páginas.

Você sente alguma coisa quando eu faço isto?, de Robert Sheckley, foi provavelmente o conto que achei mais fraco nesta antologia. Não passa de uma metáfora pouco subtil para a a evolução acelerada da tecnologia e dos choques que inevitavelmente vão existir entre pessoas e máquinas. Ou do uso exagerado de tudo o que seja maquinetas. Acho que só falha, em grande parte, porque isso não é o futuro, é o agora e é já algo aceite e ao qual oferecemos pouca resistência, enquanto espécie.

Até agora falei-vos de 5 dos 10 contos de Mensagens do Futuro, e tive apenas uma desilusão, o que me parece uma contagem final bastante positiva. Amanhã falo-vos dos 5 contos que faltam desta que se tornou numa das minhas antologias favoritas, não só pelos contos nela presente, mas pelo conceito que os reuniu a todos no mesmo livro.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Mostra-me a tua espinha

Título: Mostra-me a tua espinha
Autor: David Soares

Sinopse: Um premiado fotógrafo profissional vai descobrir a verdade que existe por trás de um segredo centenário; um escritor vai confrontar-se com as suas origens e descobrir que é feito do mesmo material com que foi construída a sua cidade; através dos anos, numa europa envelhecida pela guerra, duas criaturas nómadas têm como desporto cruel a destruição da vida de um homem mudo; e, finalmente, uma mulher irá pactuar com o mal para obter o filho que o seu útero árido é incapaz de incubar.

Opinião: Ter encontrado este livro à venda foi uma sorte descomunal. Praticamente fora de circulação, Mostra-me a tua espinha foi dos primeiros livros publicados por David Soares e contém já os traços característicos do seu estilo, sem que os contos nele contidos atinjam a qualidade literária de trabalhos posteriores.

Com isto quero dizer que os seus 4 contos são viscerais e gráficos, têm descrições sangrentas e aterrorizadoras extremamente detalhadas e são bastante mais literários que as comuns histórias de terror. São histórias de horror quase poéticas, um estilo muito próprio que já predominava visivelmente neste que é um dos seus primeiros trabalhos e que apenas se foi apurando, com o tempo.

No entanto, e apesar de serem 4 contos bastante interessantes, ficam muito aquém da qualidade dos contos presentes em Os Ossos do Arco-Íris, por exemplo. E apesar de ser uma comparação algo injusta, muito, mas muito distantes da mestria e quase perfeição de A Conspiração dos Antepassados.

Não quero com isto dizer que sejam maus, ou que o livro em si não tenha qualidade, como é óbvio. Estou apenas a tentar transmitir que após ter lido trabalhos mais recentes, este livro não fascina por aí além. Já têm o factor "eugh literário", mas falta-lhe o factor "wow!, David Soares!".

Mas falando do livro em termos mais concretos, a introdução escrita pelo autor demonstra toda a sua genuína paixão pelo horror e em particular pela literatura de horror. No primeiro conto, A Mãe, aparecem os primeiros indícios de uma mente bastante doente, dizem alguns. Eu cá prefiro mente bastante genial, sabendo à priori quem é o autor. Este conto só peca por ser curto e pelo desenvolvimento algo apressado, pois a ideia é interessante.

O segundo, Cidade-Túmulo, é ligeiramente confuso e desconexo, mas tem uma atmosfera pesada bastante coerente. Esta frase não parece fazer muito sentido, mas espero que me percebam. A história em si avança aos solavancos, sem se perceber muito bem o que está a acontecer, mas o ambiente é sempre igualmente negro, há sempre uma ténue ameaça em cada página.

O Homem Oco, que se segue, é um conto deveras curioso. Eu pessoalmente acabei por não perceber muito bem a história, fiquei demasiado entretido com o Ameixa e o Costeleta, duas personagens estranhas, verdadeiramente nasty, em bom inglês, com a sua pitada de sangue e vísceras. Personagens bastante à là David Soares, portanto.

Por fim, A Concepção Repulsiva foi, para mim, a melhor destas 4 histórias. É a que tem o enredo mais "banal", se é que tal palavra se pode aplicar a algo que veio da mente deste escritor, mas foi a que me pareceu melhor escrita, melhor desenvolvida e com o final mais espectacular. E tem uma personagem bastante... curiosa.

Resumindo, 4 bons contos, mas abaixo do esperado para David Soares, o que não é assim tão estranho, tendo em conta que esta foi uma das suas primeiras obras. Não posso é deixar passar todo o simbolismo presente em cada história, muito do qual me passou de certeza ao lado, tal é a densidade.

Um destaque ainda para a edição, que mesmo ligeiramente mal tratada, tem bom aspecto, e a capa é perturbadora por si só. E volto a dizer algo que já disse umas poucas vezes sobre David Soares: não é um escritor para toda a gente. É preciso um certo estômago para se conseguir apreciar as suas obras, e esta não é excepção, apesar de talvez ser um bom livro para alguém iniciar as suas leituras deste escritor, provavelmente por ser menos perturbador que obras posteriores. Ou talvez não.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Aventuras de João Sem Medo

Título: Aventuras de João Sem Medo
Autor: José Gomes Ferreira

Sinopse: História fantástica que recorre ao imaginário mágico, por vezes de inspiração surrealista, este romance é um prodígio de efabulação e engenho narrativo.

Opinião: As Aventuras de João Sem Medo são surreais, são metafóricas, são sátiras antigas mas actuais, são tudo e mais alguma coisa.

A escrita em si não é nada do outro mundo, e nem sequer é realmente importante. Este livro vale pela sua história, pelas situações que aqui são descritas que criticam certos aspectos da sociedade e companhia limitada. E tudo sempre bastante surreal, a condizer com a surrealidade das condições em que vivemos hoje em dia.

Basta começar por dizer que o protagonista é oriundo de uma povoação chamada Chora-que-logo-bebes, ou, como eu pessoalmente gosto de lhe chamar, Portugal. Este Portugal é uma localidade de gente conformada, remetida para sempre à tristeza e aos prantos intermináveis de um fado irremediável. O protagonista, este João Sem Medo, que qual Vasco da Gama na magna obra que são os Lusíadas, é muito mais do que uma personagem individual, representa um conjunto de pessoas bastante interessante, os inconformados, que se atrevem a saltar o Muro e a penetrar na Floresta Branca, cheia de mistérios e afins.

Este Muro é que é das coisas mais curiosas de toda a obra, pela sua quantidade absurda de conotações. Pode ser feito de panhonhice e apatia, ou ter sido construído com o suor misturado com extracto de rosas e sais de ouro de sucessivos governos retrógrados... Se quiserem podem até pensar que este Muro tem uma consistência mais etérea, de tijolos esbranquiçados sobre tijolos esbranquiçados da mais fina essência limitada e tacanha do povo português. Este Muro é o que quiserem. Tal como a Floresta Branca, passível de ser entendida como uma míriade de coisas, e que vou deixar ao vosso critério. Para mim, esta Floresta Branca é exactamente aquilo que o autor descreve: é o desconhecido, um mistério densificado repleto de coisas por descobrir. É tudo aquilo que eu não conheço e tudo aquilo que eu não percebo. O que João Sem Medo fez foi enfrentar esse desconhecido. Não necessariamente percebê-lo, mas encará-lo, olhá-lo de frente e mostrar-lhe quem é que manda.

É isso que fascina, neste livro. João Sem Medo viaja de metafórica história absurda em metafórica história absurda, sempre corajoso, como o seu próprio nome indica, sempre confiante e sempre irredutível na sua capacidade de ser feliz, quaisquer que sejam as condições que o rodeiam e em que se encontra. A Floresta Branca atira-lhe com tudo o que tem, e ele limita-se a aproveitar da melhor forma cada situação, a rir-se das adversidades e a enfrentar os problemas de cabeça erguida, sem nunca desistir nem desanimar. João Sem Medo é o que todos devíamos ser: persistente, inconformado, crítico e feliz.

É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir.