domingo, 20 de março de 2011

Da literatura


Se há coisa que eu aprendi ao longo dos meus anos de escola e de máquina enfardadeira de livros, é que se há pergunta que deixa um professor de português (ou alguém que se ache entendido na matéria) quase de imediato de pé atrás é: "O que é a literatura?".

Como é óbvio, já ouvi várias vezes a pergunta, e já a fiz umas poucas, e a resposta varia de aluno para aluno e ainda mais de professor para professor. A resposta que ouvi dar mais vezes foi: "Então, são os clássicos e aqueles livros que nos fazem pensar.".

Pois bem, esta definição facilmente é deitada abaixo. Acredito piamente, e aposto com quem quiser, que qualquer que seja o fã de Fantástico (isto engloba ficção científica, terror, enfim, todos esses géneros que toda a gente sabe quais são) que se preze é capaz de dizer uns 10 livros que são verdadeiros clássicos, mas que são de imediato classificados como "livros inferiores", pelas mesmas pessoas que deram aquela definição. Ou seja, primeiro temos "os clássicos são literatura" e depois temos "nem todos os clássicos são literatura". Pronto.

Depois, quando aos livros que nos fazem pensar... Bem, eu uma vez vi um livro sobre sexualidade, dirigido a crianças, cuja capa representava um rapazito de 7 ou 8 anos de costas, nu, em cima de uma rapariga da mesma idade, igualmente de costas e igualmente nua. Ora bem, esse livro pôs-me a pensar, só pela capa. Perguntei-me se era boa ideia retratar crianças de 7 ou 8 anos, nuas, na capa de um livro; perguntei-me porque raio é que crianças tão novas precisavam de um livro sobre sexualidade; e perguntei-me ainda quem é que seriam os pais que comprariam aquele livro para os seus filhos... Mas considera-se este livro literatura? Nem pensar nisso.

Eu sei quando dizem "livros que nos fazem pensar", se referem a coisas profundas e sérias, com longas reflexões filosóficas sobre a vida e a morte, a condição humana, a complexidade da vida e sociedade humana, com divagações sem um propósito bem definido, com um fim em aberto, que deixe montes de perguntas em aberto, e então se for uma feita logo no início do livro e trabalhada ao longo de 300 páginas ainda melhor... Mas a sério, só esses livros é que são literatura?

De onde é que vem este preconceito de que a Fantasia não pode ser literatura? De que a poesia é a forma suprema da literatura? De que só livros que demorem 3 meses a ler e a perceber o que o autor diz é que são literatura? Não é "O Senhor dos Anéis" uma das maiores obras de literatura da Humanidade? Não são "As Crónicas de Nárnia" absolutamente mágicas, com uma escrita maravilhosa? Não há livros de Fantasia com muito mais substância que muitos dos livros intelectualóides que os críticos metem em pedestais?

Mas isto levanta outra questão. Quem é que define o que é a literatura? Os críticos? Intelectuais em universidades? A minha opinião quanto aos críticos é que a maior parte não passa de um bando de pretensiosos, cujas críticas tem um único objectivo, que é demonstrar a quantidade de referências literárias que conseguiram apanhar num qualquer livro, mascarando a sua verdadeira opinião numa intricada retórica sofista, com palavras grandes e análises metafóricas de metáforas que só eles é que vêem... O mesmo se passa com os intelectuais em universidades, parece que nunca saíram da escola e que vivem numa constante aula de português, em que têm que analisar todas as frases de um livro até à exaustão.

No entanto, não deve a literatura ser analisada como um todo? É um daqueles casos em que o todo pode ser maior que a soma das partes. Ora bem, e quem é que faz isso? Nós, leitores! Nós, para os quais ler não é um meio de subsistência nem nada que se pareça, mas sim um fim. Ler é o objectivo. Queremos lá saber se ficamos mais inteligentes, ou se ficamos melhor preparados para enfrentar e compreender seja lá o que for. Isso são efeitos secundários, que não negamos nem recusamos, mas nada mais que isso. Nós é que definimos o que é a literatura.

Afinal de contas, a literatura é uma arte, e apesar da minha posição bastante crítica no que toca à arte, uma coisa admito: há poucas coisas tão livres. A arte, seja ela qual for, é um dos expoentes máximos da liberdade de expressão e da liberdade em geral, e a literatura não foge à regra. Aliás, é isso mesmo uma das coisas que nela me atrai (como acontece de certeza com muito mais gente, embora talvez nunca tenham pensado nisso), o facto de quando eu pego num livro, poder estar a pegar em qualquer coisa. Pode ser um livro intelectual; pode ser um livro de horror, cheio de sangue e vísceras a espirrar por todo o lado; pode ser um tratado filosófico com 1500 anos; pode ser uma epopeia grandiosa; pode ser um policial cheio de mistério; pode ser algo que se leia em duas horas; pode ser algo que se leia em 4 meses; pode ser algo absolutamente intragável; pode ser tudo!

E a definição que normalmente se dá de literatura estraga tudo isso. Prender a literatura em cânones muitas vezes ultrapassados é algo que vai contra tudo isso, que em vez de encontrar aquilo que é literatura, prende umas correntes intelectuais à volta de meia dúzia de conceitos e não deixa entrar nada de novo, nem sair nada ultrapassado, desprezando grandes obras. E isso aborrece-me. Deixemos as politiquices e as intelectualidades de lado, percamos os preconceitos e aprendamos a olhar e a ler realmente um livro, ignorando esses ideais pré-formados e pré-formatados. Querem uma definição de literatura? Pois bem, deixem-se de coisas e LEIAM!

12 comentários:

WhiteLady3 disse...

Muito bom o texto!

Para mim literatura é todo o que está escrito. Ok, nem tudo são clássicos mas tudo faz pensar. As notícias em jornais, a publicidade na rua, até aqueles livros que não gostei me fazem pensar (mais não seja penso porque raio é que peguei neles :P ). É certo que nem todos os textos têm qualidade, e mesmo esta é subjectiva, mas todo o texto escrito tem trabalho, pensamentos e emoções por detrás. Até um diário. É uma das formas pelas quais o pensamento humano se transmite, acho que por vezes é mesmo o veículo mais fácil para tal transmissão, já a fala, a meu ver e talvez porque não sou boa oradora, permite deslizes maiores e más interpretações porque nem sempre o discurso é dos mais cuidados e pensados. :/

Sinto que me dispersei um pouco, de tal maneira que já não sei bem o que queria responder, mas sim, concordo com o texto. :D

Sandra disse...

Eu concordo consigo. Existem livros de fantasia maravilhosos! Nunca esqueci uma aula que tive na universidade em que um dos meus professores perguntou qual o género que eu mais gostava e quando eu respondi Fantasia, ele fez um esgar que me deixou muito triste e começou logo com um discurso que esse tipo de livros não podem ser considerados literatura. Ou então por serem um best-seller também n podem ser considerados literatura. Mas pq? Eu bem sei que n posso fazer uma critica a esse assunto porque não sou das mais entendidas na matéria, mas creio que é um preconceito quando dizem estas coisas!

Julliany kotona disse...

Amei seu blog,gostei tanto que estou seguindo e sempre estarei por aqui a te ler e comentar, tenha um exelent domingo bjks.

M. à conversa disse...

Concordo inteiramente com aquilo que aqui foi dito. Para mim a literatura depende do significado que cada pessoa atribui. Desta forma, a polissemia da palavra deve ser aceite como tal e não faz sentido que só determinados livros sejam designados como "literatura" e outros sejam encaixotados na categoria de livros de menor calibre.Posto isto, a literatura deve ser respeitada, tal como a religião, os princípios e os valores de cada um. Sendo assim a literatura é um conceito vago, mas só assim faz sentido. Desde quando é que o conhecimento mede manias, preconceitos e descriminações? O verdadeiro conhecimento é aquele que nos torna mais cultos e que nos permite alcançar cada vez mais. Seja um beste-seller ou uma epopeia, são os dois, dois objectos cultos. Mesmo sendo estilos literários distintos e cada não tenham a ver um com o outro, permitem a quem os lê adquirir conhecimento, poder critico e cultura. Por isso devem deixar de se preocupar com aquilo que é literatura e aquilo que não é, e aproveitarem o prazer que a leitura nos oferece, enriquecerem-se e tornarem-se mais exigentes. Mais exigentes não no sentido de superioridade ignorante, mas sim no sentido da intelectualização. LEIAM E NÃO SE PREOCUPEM COM O QUE É LITERATURA, A ISSO SÓ VOCÊS PODERÃO RESPONDER!

M. à conversa disse...

Obrigado Julliany kotona !

Rui Bastos disse...

WhiteLady, concordo plenamente! Obrigado :D

Sandra, essa atitude, que muitos professores (e outros) têm, é realmente muito triste...

Julliany, obrigado ;)

M., não concordo quando dizes que "a literatura deve ser respeitada, tal como a religião, os princípios e os valores de cada um", já que esses assuntos, em especial a religião, NÃO estão abertos discussão, trata-se de uma questão de aceitar sem justificação válida, e a ideia que eu tenho de literatura não é essa, até acho que deve ser uma coisa discutida e debatida. De resto concordo :D

M. à conversa disse...

Pois eu não, acho que é deveras algo que contém um punho pessoal :p é claro que é interessante ser discutido mas acho que sem dúvida tem muito a ver com os conceitos literários de cada um :D

Cat SaDiablo disse...

Muito bom o texto.
Concordo com a maioria, mas acho que tens uma posição um pouco intransigente quanto a outras (tão próxima das pessoas que não consideram Fantasia literatura).
Já agora, só um pequeno reparo de preciosismo :P Fantasia não inclui terror e muito menos ficção científica. São sim, géneros que estou muito associados uns com os outros, tendo uma relação muito estreita entre si quer devido aos leitores quer aos próprios escritores que muitas vezes escrevem coisas diferentes dentro das várias áreas do Fantástico. Este sim, usa-se para descrever Fantasia, FC, terror, e outros estilos que nós sabemos quais são (e aparentemente só nós leitores de fantasia é que sabemos! Quando me perguntaram que género se livro é Darwinia e eu respondi História Alternativa, ficaram a olhar para mim e perguntaram "mas qual é o género?" o.O')

Ainda guardo na memória um episódio recente, com uma amiga mais velha que viciei nas Crónicas do Gelo e do Fogo. Não era uma pessoa que normalmente lesse Fantasia, mas adorou e é completamente viciada neste momento. Depois disso apaixonou-se pelos Leões de Al-Rassan, de Guy Gavriel Kay, e chocou-me quando disse, "pois, mas isto não é literatura". O quê? Então é o quê, música? o.O Fiquei chocada porque apesar de estar habituada a que as pessoas achem que determinados géneros não são literatura, nunca tinha ouvido isso da boca de uma pessoa que claramente gosta de livros do género. Fiquei chocada.

Quanto a Fantasia e o Fantástico no geral não serem considerados literatura... Sinceramente já nem me aquece nem me arrefece. Estes géneros só são considerados menores por quem não os lê, e quem os lê não quer saber de rótulos ou classificações, quer unicamente saber de ler, e usufruir da leitura.

Acho que toda a confusão se prende com a palavra Literatura em si. Oh meu Deus, é tão pomposa e séria... Dão demasiada importância a uma palavra cujo significado é bastante simples. "Fantasia não é literatura, é um género literário diferente, para pessoas com gostos literários diferentes". Então, a palavra "literário" não se refere a literatura? Literatura é a criação, análise e estudo de textos escritos de teor artístico. Na verdadeira acepção da palavra, seriam todos os textos e estudos relacionados com as letras, e a associação à arte é unicamente para distinguir de textos científicos e pedagógicos, de uma natureza totalmente diferente.
Discordo da M. A Literatura não é o que cada um considera que o é. A Literatura existe. São livros, são as letras e os estudos das letras. Penso que estamos a confundir com aquilo que algumas pessoas consideram a "boa literatura". É claro que é um conceito relativo, mas as pessoas que se consideram mais conhecedoras da boa qualidade literária, insistem em apenas chamar literatura àquilo que consideram boa literatura.

Cat SaDiablo disse...

(tive de dividir o meu comentário, não acho normal alguém escrever tanto :P sorry)


E falando dessas pessoas, chego àqueles pontos que considero mais intransigentes na tua posição. Em relação aos críticos literários, penso que não deveremos generalizar. Em primeiro lugar, estarás a confundir os críticos em Portugal com os internacionais? Do pouco que sei sobre o assunto, acho que a crítica literária em Portugal está moribunda. Muitos só consideram bons os livros que ninguém lê, e outros (ou os mesmos) descartam imediatamente a eventual qualidade de um best-seller. E não é só a crítica literária, é também a cinematográfica que está pela hora da morte, com avaliações de 2 estrelas a filmes fantásticos (que toda a gente gostou, pois claro), e 5* a filmes que ninguém percebeu patavina. Mas é claro que dar 5* indica que foi um dos poucos iluminados a apanhar a intenção do autor e a perceber o filme. Parvoíce.
Estes são os exemplos maus, e são aqueles que mais facilmente memorizamos. Quando estava a ler o 2666, do Roberto Bolaño, apanhei na net, num blog dum crítico literário, a maior barbaridade dos últimos tempos: devido ao hype todo à volta do livro, se tanta gente o considera tão bom, só pode ser mau, e portanto "nem sequer lhe vou pegar". E pronto, assim ficou definida a qualidade de uma obra que ele NEM SEQUER LEU.
A nível internacional as coisas são ligeiramente diferentes, devido essencialmente ao facto de serem muitos mais os críticos a fazer análise, e como tal, há uma maior diversidade. Tens críticos internacionais de renome a dar 5* ao Harry Potter, que segundo os critérios definidos por muitos, nem sequer é literatura. Portanto não podemos generalizar.

O mesmo em relação aos "intelectuais" nas universidades. Essas são pessoas que dedicam grande parte das suas vidas a estudar a vida e a obra de determinados autores, correntes literárias ou letras de um dado país. São sem dúvida importantes na análise de algumas obras, e pelo que me é dado saber, a sua posição relativamente à literatura não tende a ser tão rígida como poderemos pensar. São pessoas amantes das letras em primeiro lugar, e o seu trabalho é importante para que nos cheguem às mãos algumas das obras mais importantes de sempre, e que mesmo sem nós sabermos, definem estilos futuros e influenciam obras contemporâneas, muitas de fantasia, que nós tanto apreciamos.

É como em tudo. Vemos um desfile de moda de alta costura, e em 100 passagens conseguimos dizer "usava isto". Vamos a um restaurante gourmet super conceituado e saímos com fome. Em todas as áreas, principalmente na arte, existem as elites. Quem define o que é bom ou muito bom são as pessoas que se movimentam nesses círculos de topo, e o mesmo de aplica à literatura. Não temos todos que gostar de alta costura, mas sem dúvida todos vamos vestir coisas influenciadas por ela. Não me incomoda consumir e gostar do que não pertence às elites, sei que veio de lá, e qualquer dia está lá outra vez.

E pronto, fim do testamento, parabéns por teres chegado ao fim do texto lol. Espero ter feito algum sentido o.O

M. à conversa disse...

Cat SaDiablo de facto tens razão, mas eu estava mesmo a referir-me às pessoas que optam pelos preconceitos de que só alguns livros são classificados como "boa literatura". Era a este aspecto que me estou a referir, acabei por não acrescentar o "boa" antes da literatura, mas tava a falar exactamente disso. é claro que literatura é tudo isso que disseste letras, textos, personagens, histórias, livros! O boa é que já é relativo e por isso defende que depende do leitor. Quanto ao resto do teu enormee (:p) texto, concordo. Sem dúvida, que muitos dos críticos literários, que destinguem a boa literatura da má literatura, muitas vezes não lêem sequer o livro.

Rui Bastos disse...

Desde já obrigado, por teres gostado do texto, e por teres tido o trabalho de escrever um comentário tão extenso :)

No que toca ao preciosismo Fantasia vs Fantástico, tens toda a razão, foi lapso meu, já está corrigido, merci very muito ;)

E talvez tenha sido um bocado intransigente, já me disseram isso outras vezes, e assim fui, peço desculpa.

Os críticos, quando a eles me refiro, refiro-me à maioria daqueles cujos comentários e opiniões eu já li. Não sei dizer o nome de nenhum, não presto particular atenção a isso, e talvez tenha lido os críticos errados :p

Quanto aos "intelectuais", não era essa a ideia que tinha deles... Se for como dizes, aquilo que eu digo neste post deixa de ser válido.

Fez todo o sentido, gostei muito de ler o teu bi-comentário, espero ter respondido em conformidade (ainda que menos extenso) :p

Cat SaDiablo disse...

Rui, não tens de pedir desculpa, não disse que és uma pessoa intransigente, mas que às vezes as tuas posições o são. O que é normal, quando defendemos com vigor a nossa opinião e o que gostamos :)
Percebo-te perfeitamente. E desculpa lá eu o meu preciosismo :)

Mas deixa-me fazer um reparo, porque no meio do meu comentário gigante me esqueci de dizer uma coisa o.O
Relativamente aos intelectuais, o que falha muitas vezes é o "degrau do meio", digamos assim. Temos pessoas que se dedicam a estudar textos ao longo da sua vida toda, e que são amantes das letras, e depois temos pessoas que passaram a vida toda a ler as análises dessas primeiras pessoas, e a analisar as análises, e algures no caminho tornam-se, eles sim, intransigentes. Digamos que tanta erudição lhes sobe à cabeça e se tornam mais papistas que o papa. Alguns até se tornam críticos literários, vê lá tu :P

Eu pessoalmente acho que o problema não são os intelectuais que constroem opiniões, mas sim dos pseudo-intelectuais, uns furos abaixo dos verdadeiros eruditos, mas auto colocados na mesma prateleira. Quando queremos que a nossa opinião importe, é muito mais fácil destruir com a crítica do que espalhar o reconhecimento.

A Joanne Harris, autora que adoro, é muito polémica e muito crítica na sua opinião dos críticos. Segundo ela, a maioria deles são escritores
falhados e pessoas intelectualmente inseguras, que se sentem mais seguras com a desgraça profissional dos outros.
Até deixo aqui um link do site dela com essas declarações
http://www.joanne-harris.co.uk/v3site/howto/critics.html