sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A Voz do Fogo


Autor: Alan Moore
Tradutor: David Soares


Opinião: A minha curiosidade para este livro era mais que muita. Um romance escrito por um dos autores de BD que mais admiro? Venha ele! A edição é espectacular, portanto ainda antes de o abrir eu já sabia que ia ter prazer nesta leitura.

Assim foi. Separado em doze capítulos, nem sempre relacionados entre si de forma muito óbvia, este livro tece uma autêntica tapeçaria de símbolos, personagens e situações que guiam o leitor por uma pelos retalhos de uma história. O resultado final é estranhamente coeso e uniforme.

É claro que a tradução deste livro só podia ter ficado a cargo de uma pessoa: David Soares. Aqui, e podem discordar de mim à vontade, mas tenho de dizer que escolheram o homem perfeito. A sua mistura de conhecimento erudito, obsessão com os pormenores e vasta capacidade de contextualizar o que quer que seja, foi a mistura perfeita para navegar por entre o labirinto simbólico que Moore traçou ao longo dos tempos.

Toda a acção se passa em Northampton, ou nas imediações, desde 4000 a.C. a 1995. É, na sua maioria, completamente indescritível. Acontece tanta coisa nestas doze histórias, todas elas tão diferentes entre si (e ainda assim tão parecidas!), que era loucura tentar descrevê-las uma a uma.

O livro começa logo com um primeiro capítulo extenso, com um narrador primitivo que nos obriga a ler dezenas de páginas de "Eu estar caminhar de lá, querer chegar lá atrás de agora de Sol sair". Não é o mais fácil dos começos, mas está tão bem feito que não chateia. Custo um pouco a ler, mas vale a pena, pois é um dos capítulos mais fascinantes do livro.

A certa altura há um capítulo cujo narrador é uma cabeça decepada pendurada algures. Outro em que é do ponto de vista de uma rapariga enforcada. E outro do ponto de vista de metade de um casal de bruxas lésbicas que invocam diabretes para andarem a causar desgraças.

Dizer que é um livro esquizofrénico é ser simpático. Todos os narradores são radicalmente diferentes, não só a personagem em si, mas a forma como narram. Vários (se não todos) são loucos. Clinicamente loucos, sem sombra de dúvida, e isso nota-se principalmente mais perto do fim do livro. Ah, e como já disse, alguns dos narradores estão mortos.

Interessante? Obviamente! As constantes menções a fogo, enormes cães pretos e possivelmente demoníacos, os Shagfoals, assim como a feiticeiros e feitiçarias afins, mais uma série de outros símbolos que se repetem de forma mais ou meno regular em cada capítulo, são aquilo que une tudo o que se passa. E a parte mais estranha do livro todo, é que isso funciona. Eu pelo menos cheguei ao final, sem ter a certeza de muito daquilo que tinha lido, mas com imagens mentais daquilo que o livro me tinha contado.

No fundo este livro é uma história sobre histórias. As notas do tradutor que aparecem no fim, e que ainda são umas vinte páginas, mesmo ao estilo de David Soares, caem muito bem, pois contextualizam e não forçam a nenhuma interpretação que não deva ser forçada. O livro, para mim, só ficou verdadeiramente lido depois de ler estas notas todas. E embora o livro não seja perfeito, é muito bom.

2 comentários:

Anónimo disse...

Sinceramente, acho que as notas do David Soares são a melhor parte do livro. Era bom se todas as obras traduzidas tivessem aquele tipo de glosas.

Também achei a forma como o primeiro capítulo é escrito algo magistral. Ao início cansa um pouco, mas depois damos por nós a ler aquelas sentenças sem qualquer esforço.

O resto das histórias é que são sempre doidas...

Mas, para dizer a verdade, o livro não é nada de especial. É uma colectânea de contos que a pouco e pouco se vão diluindo uns nos outros. No capítulo final (O mais decepcionante), quase já não há referência ao Hob do primeiro capítulo e acho que devia ser este capítulo a ligar todas as histórias.

De resto apenas se apreende que o que se passa hoje talvez seja lembrado daqui a cinquenta anos; mas daqui a duzentos já ninguém se lembra de quem por aqui andou nesta terra. É o correr da história e um efeito colateral da passagem do tempo pelas nossas vidas.

Quanto à edição da obra, tenho que gabar quem a fez. O fogo e o fumo, as páginas laranjas e brancas. Ficou soberba a edição.

Abraço
FBF

Rui Bastos disse...

O último capítulo é sem dúvida o mais decepcionante (e o penúltimo é o mais fraco), mas acho que consegue fazer essa ligação na mesma, de uma forma meta-estranha.

A edição é que realmente, vai lá vai... Bons tempos da SdE!