A autora deste mês é a Rita Santa-Rita (completamente relacionada com o pintor, sim), que nunca foi minha colega mas que conheço desde o 9º ano. Já há uns tempos que não falava regularmente com ela, mas descobri este ano que a rapariga é fã acérrima de distopias... Enfim, acho que consigo aguentar com duas amigas loucas de artes!
O tema que lhe pedi não foi bem o que ela escreveu. Eu sugeri uma crónica sobre as distopias fora de prazo, ou seja, qual a diferença entre o 1984 antes e depois de 1984? A mensagem, ou a forma como ela é percebida, muda por já ter passado a data da "previsão"? Estão a ver a ideia. Mas a Rita tinha outras coisas na cabeça. Desvirtuou um pouco e escreveu o texto que vão ver a seguir.
Tanto o desvirtuamento como o texto são bons. Nunca quis que esta rubrica fosse propriamente rígida: acima de tudo, liberdade aos autores convidados. Sim, a Rita foi a que melhorabusou aproveitou dessa liberdade, mas não me parece estranho em alguém que consome tanta distopia. Por agora deixo-vos com a crónica dela, com excelentes ilustrações da própria.
O tema que lhe pedi não foi bem o que ela escreveu. Eu sugeri uma crónica sobre as distopias fora de prazo, ou seja, qual a diferença entre o 1984 antes e depois de 1984? A mensagem, ou a forma como ela é percebida, muda por já ter passado a data da "previsão"? Estão a ver a ideia. Mas a Rita tinha outras coisas na cabeça. Desvirtuou um pouco e escreveu o texto que vão ver a seguir.
Tanto o desvirtuamento como o texto são bons. Nunca quis que esta rubrica fosse propriamente rígida: acima de tudo, liberdade aos autores convidados. Sim, a Rita foi a que melhor
Foi no meu primeiro ano de faculdade que comecei a minha grande paixão — ou obsessão, tanto faz... — pelos romances baseados em sociedades distópicas. O primeiro que li foi precisamente o célebre 1984 (1948) de George Orwell. Como disse, eu tinha acabado de entrar para a faculdade e agora andar de metro fazia parte do meu quotidiano, e era nessas alturas de deslocação que eu aproveitava para ler.
Sempre tive a capacidade (ou o defeito) de me “envolver demasiado” nas histórias que leio ou nos filmes que vejo. Então, de vez em quando, desviava o olhar do que estava a ler e fixava-o nas pessoas à minha volta. Mal sabiam elas que eu nos imaginava, a todos, como residentes na Oceania sobre o regime do Grande Irmão. Então eu questionava-me, se de facto, estivéssemos todos nós a ser constantemente observados?
Ou pior, estaríamos nós em algum tipo de prisão que nos era imperceptível ver?
Começava a matutar nestas possibilidades, um bocado a dar para a teoria da conspiração.
Às várias pessoas a quem eu falei das possibilidades de nós estarmos cativos e vigiados tal e qual no livro, riram-se de mim e da minha paranóia ingénua. Devo admitir que o meu receio de me pronunciar em frente a um televisor — que ainda se mantém — é bastante ridículo e infantil, mas também tem sido bastante divertido para quem convive comigo. Ainda assim, não consigo deixar de pensar se as “previsões” que Orwell e outros fizeram não foram cumpridas ou estão a começar a ser cumpridas em segredo.
Há tanto que nós não nos apercebemos.
No livro de 1984, nunca sabemos ao certo quem ou o que é o Grande Irmão, se é de facto uma pessoa ou uma entidade composta por diversos indivíduos. Mas, chegamos ao momento crítico, que já nem isso interessa. Assusta-me o facto de haver a possibilidade de acharmos que estamos a agir livremente e estarmos inconscientemente a ser controlados.
O 1984 transmite um ambiente negro, sujo e que quase que sufoca, coisa que eu sempre achei que condizia com o metro, nunca percebi bem porquê. Já o Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley, apesar de se tratar também de uma distopia, presenteia-nos um clima mais “arejado” e limpo. Foi quase como que um alívio. Mais uma vez, imaginei-me “dentro do livro”.
E ao fazê-lo descobri uma curiosidade engraçada. Para lá caminha esta nova e jovem geração. Bem, talvez não a nível genético. Ainda não chegámos ao extremo de sermos todos clones, nascidos de um tubo de ensaio e sem pai nem mãe. Contudo, consegui na mesma visualizar perfeitamente um conceito ou outro enunciados no livro nos miúdos de hoje.
A insistência de andarem “todos de igual”, eu já tenho dificuldade com caras e, para mais, com estes hábitos que eles arranjam para se confundirem, torna todo o processo de distinguir pessoas mais difícil. E nós achamos que é algo que passa com a idade, mas que na verdade parece manter-se para toda a vida. A demasiada dependência das novas tecnologias, a democratização de drogas e comprimidos, a preferência por práticas sexuais cada vez mais desprovidas de sentimentos e mais abrangentes e aleatórias, como se de facto o “ser-se fácil” fosse o padrão social correcto. Estaremos a gerar uma sociedade de sociopatas? Tudo indica que clássicos como Shakespeare serão postos de lado e perdidos. Vive-se sem objectivos e vive-se numa tentativa constante de encobrir o “sofrimento de viver” sem procurar realmente viver.
E nós conformamo-nos com isso.
Já em Nós (1921) de Evgueni Zamiatine, apesar de este romance ser mais antigo que os outros dois aqui mencionados, a ideia com que fiquei dele é que se insere num futuro ainda mais longínquo e distante que os restantes. E o facto do protagonista/narrador acreditar e defender os morais do seu espaço-tempo inquieta-nos ao procedermos com a leitura. Está-nos a ser descrito uma sociedade excessivamente organizada e matematicamente estruturada. Confessa-nos ele que nem lhe cabe na cabeça que os seus “antepassados” (nós, não eles no Nós... bem, vocês perceberam...) fossemos tão selváticos e aleatórios na nossa liberdade. Quando ele sabe que a perfeita harmonia e felicidade vêm exactamente da exclusão dessa “liberdade” que, segundo ele, era o que nos aprisionava na verdade.
Esta ideia mexe muito mais comigo do que as apresentadas nos romance de Orwell ou Huxley, pois é fácil — enquanto leitor — posicionarmo-nos como "outcasts" face a um regime totalitário no qual não acreditamos tal como o Winston Smith ou John, O Selvagem; mas mais difícil será imaginarmo-nos como sendo o D-503, que faz parte de todo este “esquema” e acredita nele piamente. Ou seja, mesmo que lhe fosse oferecido a hipótese de “escapar”, ele não estaria nem um pouco interessado.
Mas se há um conto, que segundo esta disposição de ideias, me afecta os sentidos completamente é o filme THX-1138 (1971) de George Lucas. Sejam bem vindos ao futuro, um futuro onde o Ser Humano é tratado como uma pequena parte de uma máquina maior. Este é mantido sobre controlo através de drogas calmantes e polícias robots que são construídos pelos próprios seres humanos para os manterem cativos.
O que parece doer na nossa pele ao ver este filme, é que todas estas regras e prisões impostas sobre o ser humano para o “libertar” da sua perversão, são impostas por ele próprio. A prisão em que THX vive é paradoxalmente fácil de se escapar, no entanto, muito raros são os que sequer pensam nisso.
Há prisões em que vivemos que não nos são impostas por mais ninguém, sem ser nós próprios.
Imaginemos um Mundo completamente livre. Os Anarquistas levaram a filosofia deles avante. Cada um por si, cada um faz o que lhe apetece. Instalar-se-ia o caos ou, mais tarde ou mais cedo, iríamos procurar uma qualquer entidade à qual nos pudéssemos render, para que nos diga o que fazer?
Pergunto-me se a verdadeira prisão para o ser humano não seria a total liberdade, por falta da capacidade deste de a saber gerir?
*
Volta Thomas Moore, estás perdoado!
1 comentário:
A verdade é que sabemos que as distopias se vão acabar por instalar, e é isso que nos assusta.
Acho que, por enquanto, uma minoria humana ainda permanece livre; e é aquela minoria que, como nós, se dá ao prazer de ler e de evoluir com cada nova palavra, por muito mal que ela esteja escrita. Mas talvez estejamos em extinção, meus caros...
A verdade é que maior parte da humanidade é levada a não pensar e não percebe sequer que o maior perigo da humanidade - a publicidade - os manipula em cada escolha que fazem.
Senão vejamos, o futebol merece tanta admiração porquê? Que tem o CR7 assim de tão especial que leve tanta gente a idolatrá-lo?
Idem, a idolatria da moda? A idolatria dos actores de cinema?
...
E as drogas? Por alma de quem a "ganza" hoje em dia está banalizada? Será que quem consome se lembra da quantidade de sangue que se derrama por causa de uns meros segundos de "pedra"?
Podíamos também falar de sexo, mas, sinceramente, os problemas são os mesmos de há dez mil anos para cá e a solução sempre a mesma (Sexo com amor...)
Mas, isto sou eu a desviar-me.
Porque se for ao tema deste post, muito assustado, questiono:
Antes, os poderes instalados proibiam a leitura até da Bíblia. Hoje, enchem-nos com slogans em filmes, anúncios, séries, telejornais, jornais e até nos próprios livros. Porquê?
O que é a publicidade/meios de comunicação social senão o sistema mais básico de manipulação das massas? Quem se aproxima mais do Big Brother senão os canais de televisão?
O que é o dinheiro, outrora mero instrumento de trocas, senão a liberdade e poder que toda a gente quer?
O que é o amor sem as histórias românticas? E o sexo sem ser o que vem nos filmes?
E o que é a moda dos abortos como contraceptivos hoje regulada pelo critério económico,o pior critério de todos?
O que são barrigas de aluguer senão galinhas pagas para pôr ovos?
E o que é a fast food senão o reflexo dos excessos do nosso consumo? O reflexo da vitória do ter sobre o ser?
E o que são os heróis da marvel? Onde andam os homens de ferro - ou drones americanos - e todas as restantes "super-criações" quando milhares de crianças morrem em África todos os dias fruto das mesmas "super-criações"? Onde andam os heróis? Qual é o conceito de herói?
Porque raio jogam as nossas crianças jogos que ensinam a matar? Onde está o valor vida?
E o que é o facebook? É uma maneira de formalizar o que antes acontecia com um aperto de mão acolhedor? Ou uma ferramenta de padronização comportamental do indivíduo?
E o que é o ensino hoje? Será que a vida é um teste de escolhas múltiplas, logo à partida condicionadas a um número finito? Ou será que um teste de resposta livre serviria muito melhor o pensamento humano? Alguém conhece uma evolução que não decorra do afastamento de todas as escolhas múltiplas à partida dadas como possivelmente certas? Coitadinhos de Galileu e de Newton e de tantos outros se assim fosse...
...
Acho que podia arranjar muitos mais casos, mas desde que li Orwell que nunca mais esqueci um pensamento que formulei na altura:
A humanidade tem dois pés e nenhum consegue fazer parar o outro de se encaminhar para o abismo, por mais passos que se dé no sentido contrário.
Agora, pensemos...
Bom post...
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