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sábado, 27 de junho de 2015

Estantes Emprestadas [18] - Literatura e Cinema


Caríssimos, apresento-vos um inédito na minha "carreira" por este mundo dos blogs: uma professora minha do Secundário escreveu uma crónica para esta rubrica! Isto é um marco! Uma vitória! Ainda por cima foi uma das minhas professoras favoritas, Maria de Lurdes Sanches, professora de Português, aturou-me no meu 12º ano e tivemos variadas e produtivas discussões, invariavelmente sobre Pessoa e/ou Saramago. Foi uma excelente professora, que sempre teve mais interesse em cativar a turma para os assuntos do que propriamente em debitar matéria e análises pré-feitas. Preferia que discutíssemos, mesmo que fossem sempre os mesmos, sempre com as mesmas conversas ("a poesia do Pessoa não presta, outro tipo qualquer que escrevesse aquilo não era levado a sério, Saramago é que era, bla bla bla", conseguem adivinhar quem era o chato?)

E pronto, desafiei-a a escrever sobre cinema. Podem ver o resultado ali em baixo: uma cróinca curta, mas interessante, que mostra bem o que é gostar de Cinema, e como é que se lida com as adaptações que se fazem de livros. À professora, muito obrigado (embora eu já soubesse que me ia encher o texto de Pessoa, e por isso ainda me vingarei de alguma forma)!!

“Cuidado, Macacoi, que o gajo 'tá na esquina!”, gritava Sagui, em Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, numa passagem deliciosa de um dos livros que marcou a minha adolescência. E ainda hoje, embrenhada na leitura ou perdida no enredo de um filme, me apetece imitá-lo e avisar os meus heróis do perigo iminente. E é isto a literatura ou o cinema: o transporte para um mundo mágico em que deixamos o que somos atrás da capa ou do grande écran.

Desde que o cinema nasceu, enquanto a Sétima Arte que se juntou às outras “clássicas” seis, o seu caminho foi feito a par dos livros e da escrita revelando um outro olhar ou ficando perto ou alterando o original ou até decepcionando-nos quando nos adultera a nossa impressão de leitor. Ora, creio que o cinema tem mesmo que recriar, que nos alterar a história que tínhamos arrumada e arranjadinha na memória, que fazer jus ao célebre verso “Sentir, sinta quem lê!” que, neste caso, será quem realiza. Confesso que nem sempre é fácil assistir à destruição - ou ao que julgamos ser uma destruição - de uma obra que consideramos intocável. Foi o caso do filme “Amor nos Tempos de Cólera”, de Mike Newell, adaptação de um dos livros da minha vida, perante a qual me senti revoltada ao ver o meu Gabriel reduzido a uns diálogos dignos da pior telenovela mexicana. É que nem a presença de Javier Bardem me aplacou a ira! Mas acredito que terá agradado a muitos e terá levado alguns à descoberta de um autor e originou, certamente, muitas discussões. Porque, indiscutivelmente, livros e fitas são socializadores.

No contexto português, temos inúmeros casos de adaptações de obras de vulto da nossa literatura tanto por realizadores portugueses como estrangeiros, como “Amor de Perdição”, com a primeira adaptação ainda em filme mudo por um realizador estrangeiro, e, mais tarde, por Manoel de Oliveira. Eis um caso singular: um Camilo em registo alucinante, a deixar o leitor cansado de tanto correr atrás daquelas personagens envolvidas constantemente em peripécias, adaptado com a técnica do nosso querido Manoel em planos fixos, de câmara imóvel e em cenários quase exclusivamente interiores. Aqui, ao contrário do exemplo que dei atrás, impera a palavra, ao invés da acção rápida, sobressai o interior das personagens que se mantém as de Camilo. Um outro olhar, portanto. E válido!

Mais recentemente, “O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, e “Os Maias”, de Eça de Queiroz, foram sucessos de João Botelho. Em ambos os casos, há uma fidelidade distante às obras. Pelo menos, foi o que eu senti enquanto leitora e espectadora. Se, por um lado, respiramos Pessoa e Eça, por outro, é muito forte a presença da recriação do realizador tanto nos cenários, surpreendentes nos dois filmes, como na opção de fazer sobressair apenas alguns aspectos das duas obras literárias. E não podemos esquecer o “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, adaptado e realizado por Fernando Meirelles, brasileiro, e que contou com um elenco internacional. Poderia continuar a dar aqui exemplos deste permanente diálogo entre a escrita e a imagem mas, por agora, apetece-me ir ver um filme, ler um livro ou ambas as coisas.

Literatura e Cinema: uma forma de arte a proporcionar uma outra e que sorte temos por podermos sentir lendo ou vendo… Mas adoptemos a atitude do Sagui e gritemos aos nossos heróis “Cuidado, Macacoi, que o gajo 'tá na esquina!”

sábado, 6 de junho de 2015

Resposta a "Estantes Emprestadas [17] - Comunicado"


Consegui! Desafiei a malta da Imaginauta, e correu bem! Vejam aqui o meu desafio, desta vez sob a forma de um comunicado ficcional dentro do Universo do Comandante Serralves (deviam arranjar-lhe um nome) e, mais importante ainda, vejam aqui a resposta.

Estou imensamente orgulhoso e fico-lhes imensamente agradecido. Só acho é que agora deviam lidar com terem incluído o Luís Filipe Silva e o João Barreiros no Universo deles, eheh. Se calhar andam por lá, crio-preservados, à espera de serem descobertos!

sábado, 30 de maio de 2015

Estantes Emprestadas [17] - "Comunicado"


A crónica deste mês é especial. Talvez seja melhor descrevê-la como peculiar, já que desafiei, nem mais nem menos, do que a malta da Imaginauta, chefiada pelo Carlos Silva e o Vítor Frazão. Por entre várias iniciativas, o objectivo deles é estimular a escrita e a leitura de ficção especulativa. Por cá tenho tentado ajudar, com divulgação em primeira mão de sinopses do livro que depois comprei e li, Comandante Serralves: Despojos de Guerra, que tem contos muito bons e cria um universo partilhado muito interessante; e com a participação na iniciativa natalícia Operação Livros no Sapatinho, que teve direito não a uma, não a duas, mas a três respostas! Isto para além da divulgação que vou fazendo das suas várias iniciativas. Eu bem tento, que se há projecto que merece, é este!

Por agora fiquem com a minha parte do desafio, que esforcei-me. A resposta há-de surgir nas proximidades.



*início de gravação*

Está a gravar? Isto está... Raios parta a gerigonça, está ou não? Onde é que eu meti as instruções... Hum... Aqui... Deixa ver. Carregar aqui, ali, já está, se estiver a luz acesa, está a gravar. Ah!

Desculpe lá isto, mas ainda não me entendo com o hologravador Bem, não interessa. Estou-lhe a enviar esta mensagem porque hoje apareceu um sujeito na minha banca a vender-me uns livros que achei muito estranhos. Aliás, o sujeito também era bastante estranho, e nunca sequer o tinha visto por estas bandas.

Comprei os livros para os manter debaixo de olho, mas ele ainda me disse que depois me arranjava mais. Antes de lhe conseguir perguntar alguma, desapareceu. Esteve o tempo todo com um capacete que não deixava ver-lhe a cara e que devia ter um modulador de voz.

Mas pronto, vamos ao que interessa. Já enviei os livros para o seu gabinete pelo comutador quântico que mandou instalar aqui no meu armazém. De qualquer forma, são os seguintes. "Intermitências da Morte", de um José Saramago, tem um aspecto muito estranho, muito simples, sem grandes desenhos, e pelo que folheei, parece ter texto muito denso.

Há também um muito, muito estranho, um "Terrarium", de João Barreiros e Luís Filipe Silva. Nem sequer percebo como podem duas pessoas escrever o mesmo livro, na altura em que isto foi publicado ainda não existiam osciladores de matéria... Mesmo agora, para fazer alguma coisa assim era preciso ser-se um génio!

O último é o mais chocante. "V de Vingança", de Alan Moore, quase não tem texto. Está é recheado de imagens. Para lhe ser sincero, este assustou-me mais do que os outros. Ainda se as folhas fossem ecrãs orgânicos ultra-finos, mas não, são só imagens estáticas. Nem lhe mexi mais.

Aquilo que acho mais estranho é estarem imaculados, apesar de terem séculos de idade. Por favor diga-me como proceder.

E agora onde é que se desliga isto? Hum... Deve ser aq...


*fim de gravação*

http://imaginauta.net/

sábado, 25 de abril de 2015

Estantes Emprestadas [16] - Universos Partilhados


O Joel é um tipo fantástico. É mais um amigo/colega da Oficina de Escrita que recruto para esta rubrica, e mais um que de certeza me vai responder de forma espectacular. Dono de um humor peculiar, mas fantástico, e de uma imaginação sem limites, podem segui-lo principalmente pelo seu site e restantes links que por lá encontrarem. Acreditem que vale a pena. Já o entrevistei, já lhe li algumas coisas mais pequenas, e outras assim a dar para o maiorzito, além de todos os contos que submeteu para a Oficina, e sou fã. Vocês preparem-se!


Tenho um fraquinho por Universos partilhados. Nem vale a pena tentar esconder. Há qualquer coisa no conceito de algo maior onde todas as histórias cabem, que me fascina. Aquela sensação de continuidade ao longo de vários livros independentes, ou que atravessa vários episódios de várias séries diferentes... É qualquer coisa.

Já tentei muitas vezes tentar perceber o porquê, e ainda não tenho a certeza. Mas em parte só pode estar relacionado com a forma como esses Universos me deixam mergulhar mais completamente nas histórias. Mais que não seja porque o autor teve que pensar em muito mais do que apenas aquele livro e aquela história, tornando-a assim mais coerente e mais forte.

Por outro lado tem a ver com fascínio puro. É quase como uma mitologia. Uma história muito maior do que aquela que estiver a ler naquela momento, e que de certa maneira tem influência em tudo. Já para não falar dos pormenores que vão surgindo aqui e ali, por vezes de tal forma subtis que passam completamente ao lado até sabermos da história toda.

E nessa altura, tudo faz sentido. Pode ser uma explicação dada pelo autor numa entrevista, ou uma situação demasiado óbvia noutro livro, mas dá-se aquele click e todo um novo mundo universo se abre diante de nós!

Querem um exemplo simples e porreiro? A Middle-Earth de Tolkien. Não exemplos muito melhores de um enorme Universo dentro do qual o autor inseriu (quase) todas as suas histórias. Funciona? E de que maneira! Tolkien é um caso particular, que o mundo que ele criou é particularmente detalhado e ele foi particularmente meticuloso nos seus livros, mas não deixa de ser representativo por causa disso.

Aqui está um bom exemplo de um autor que cria um universo e depois escreve histórias sobre o que se passa nesse mundo. Adopta diferentes (mais ou menos, vá) pontos de vista, aborda diferentes (mais ou menos, vá) histórias e consegue realmente construir toda uma mitologia, digamos, funcional.

Outro caso completamente diferente é o de Stephen King, que não só é um dos meus autores favoritos, como foi um dos primeiros de cujo Universo partilhado me apercebi. Isso acontece porque ainda não li nada de Dark Tower, saga na qual já me prometeram existir todas as ligações/explicações e mais algumas; e também porque King o faz de forma extremamente subtil. Pelo menos nos livros que li.

Para começar, nem todos os livros precisam de estar inseridos nesse Universo. Depois a forma como o faz é com a introdução das mesmas personagens uma e outra vez em vários livros diferentes, muitas vezes sem qualquer relevância para o enredo. Ou então um vilão que nunca é bem explicado num livro mas que faz todo o sentido para quem tiver lido o segundo.

Mas isto não fica por aqui, que continua a existir muita gente a insistir neste fenómeno, que é de facto extraordinário. E difícil de cumprir. Mas há mais um autor que faz isto muito bem (acho eu, que ainda não lhe li assim tanto quanto isso): Brandon Sanderson. Este tipo sim, é subtil. Uns nomes largados aqui, uns nomes largados acolá, países e cidades e raças estranhas, sempre no tom simples, calmo e divertido que usa sempre.

Quando descobri, depois de ler a trilogia Mistborn, que todos os seus livros estavam de alguma forma relacionados uns com os outros. Não imaginam a minha excitação!

Fora da literatura também há coisas interessantes, embora alguns casos tenham que ser abordados com uma mente aberta, pois não são bem Universos partilhados, ainda que o sejam. Como por exemplo, Doctor Who, que eu consigo sempre, de alguma forma, usar para explicar ou falar sobre alguma coisa. É incrível. Mas bem, Doctor Who, a série?

Errado. Doctor Who, a série, o filme, os livros, as bandas-desenhadas, os jogos, etc, ok? A grande diferença é qual a abrangência da partilha. Tolkien partilhava o seu Universo pelas várias histórias que escrevia; Doctor Who, por outro lado, partilha a sua história por uma série de meios, desde a série original até às bandas-desenhadas que ainda não saíram, existe de tudo um pouco!

E não nos podemos esquecer dos grandes Universos dos pesos pesados das BD's americanas: Marvel e DC. É fácil de esquecer que sejam realmente Universos partilhados, mas são, e dos bons! Bem, pelo menos dos mais completos, ainda que também dos mais incongruentes.

O mais incrível ainda consegue ser o que se faz por cá. Milagre, não? Um bocado. Mas a Imaginauta esforça-se, em parte, exactamente para contrariar esse preconceito: histórias são boas, ficção especulativa é boa, universos partilhados são bons. Deixai-os andar!

Tudo isto para vos mostrar que estes Universos andam por aí, muitas vezes escondidos nos detalhes, de tal forma que até passam despercebidos. E também que valem a pena. De certa forma, este tipo de Universos, depois de descobertos, quase que obrigam a um certo investimento da parte dos leitores, que começam a sentir que fazem parte. Pelo menos é o que me acontece a mim.

E além disso, esses Universos partilhados servem como base para muita coisa, e acabam, de vez em quando, por sustentar completamente várias histórias. Ou então dão uma nova profundidade a determinado livro. Como por exemplo, ao Hobbit, que é porreiro por si só, mas que quando lido sabendo tudo o que sabemos sobre a Middle Earth se torna muito melhor.

Mas ainda falta falar de uma coisa: os Universos partilhados que não o são realmente. Ou se preferirem, os Universos partilhados que são feitos à força pelos fãs. Aquelas ligações estranhas que se fazem entre as coisas, seja por coincidência seja por vontade deliberada de alguém. Já vos aconteceu? E a ti Joel?

Por favor digam de vossa justiça, e fiquem à espera da resposta do Joel, que será de certeza bastante interessante!

sábado, 14 de março de 2015

Estantes Emprestadas [15] - Gostar e não gostar


Sejam bem-vindos ao retomar da primeira versão das crónicas convidadas aqui do sítio. Vi-me confrontado com uma maior dificuldade em arranjar vítimas participantes para a segunda versão, que é ligeiramente mais complicada. Valeu-me o Francisco, também conhecido como asesereis, comentador mais do que assíduo aqui do blog, a quem já queria pedir uma crónica há algum tempo. Aproveitei, e o resultado é o que podem ver a seguir.

Vou ter é que reler o 1984, porque acho que em 15, esta é a quarta crónica convidada em que o livro aparece mencionado! Mas vale a pena, que o livro é bom, e as crónicas também têm sido. Esta não é excepção: assertiva, interessante e muito revelador da forma como o Francisco/asesereis usa a literatura. Para ver o mundo. Quer seja intencional, quer não, é algo que claramente faz, de forma muito mais acentuada do que um leitor normal. E por isso, obrigado.

Agora, sem mais demoras, leiam!


Queria começar por agradecer ao magnânimo Rui Bastos pelo convite que me fez para escrever umas coisinhas que, sendo só palavras, têm sempre o valor de quem as lê e não o valor de quem as escreve, infelizmente para muitos autores.
Esperando que estes pensamentos tenham algum valor, aqui vai:

O Rui desafiou-me da seguinte maneira:
“Então a minha sugestão era falares de dois livros: um que tenhas gostado, de um autor que não gostes, e um que não tenhas gostado, de um autor de que gostes. Ou só um desses casos, ou algo parecido, ou algo mais geral, como por exemplo falares de gostar ou não de tudo o que um autor escreve, ou só porque se gosta ou não do autor.”

Deste modo, e seguindo o desafio de sentimentos contraditório que me foi feito, importa primeiro esclarecer que não existe um único escritor que odeio e que pura e simplesmente não consiga ler aquilo que ele escreveu (Escritor a sério! Não entram aqui nem os aspirantes nem os meros escreventes de contos e bibliografias pornográficas…). O único autor com que não simpatizo muito é Herman Melville. Todavia, só li ainda metade da sua magna obra, Moby Dick. Ou seja, mesmo que toda a enciclopédia relativa à diversidade de baleias, instrumentos de navegação e demais armas dos antigos baleeiros me encham de sono, não posso ainda afirmar que não gosto de nada daquilo que o homem escreveu.

Isto não quer dizer que seja daqueles sujeitos que diz: “Eu gosto de tudo”; o que seria equivalente a dizer que também não gosto de nada.

Não sou assim.

Tenho os meus gostos. Só que, ao contrário de filmes em que pagamos cinco euros para perder “apenas” duas horas de vida com um filme medíocre, com livros paga-se em média 15/20 euros para perdermos muitas horinhas de vida mais. Assim tento ser um tipo selectivo quanto a livros, para poder ganhar horinhas de vida em vez de as perder. Acho que isso me leva a ter cuidado com aquilo que quero ler e tal é o motivo para que o desafio feito pelo Rui se me afigure de alguma extrema dificuldade.

Acabando aqui com o longo intróito, parto então para a exposição do livro que gostei de um escritor a quem reconheço pouco mérito literário:
José Rodrigues dos Santos dispensa apresentações. Todos sabem quem é, muita gente sabe que o homem tem gostos esquisitos quanto ao desenvolvimento pessoal das personagens ao ponto de conjugar mulheres, mamas e sopas de leite no mesmo parágrafo e reticências e mais reticências quanto aos devaneios sexuais do Noronha, Tomás Noronha… reconhecidíssimo herói português do presente século. Reconheço, no entanto, o contributo importantíssimo do JRS quanto à divulgação de informação cuidada. Maior parte dos livros dele são obras de serviço público e enche-me de pena os lobbies políticos que o tentam atacar uma e outra vez.

Importa também reconhecer que, como todos os escritores, o homem tem vindo a melhorar a sua escrita. Só que, ainda que nunca tenha falta de inspiração, como ele próprio diz, não tem o génio de muitos outros escritores, infelizmente…

Portanto, foi com espanto que gostei do livro Fúria Divina depois do tédio que tinha sido ler O Códex 632 e a Fórmula de Deus. Naquele livro o autor chama à atenção para o facto do Islão viver um paradoxo (Nem de propósito Rui) entre aquilo que o coração lhes diz que é certo e a interpretação lógica e sequencial do que resulta do Alcorão. Lendo atentamente este livro, e sendo para mais eu um jurista, percebi com rigor muitos dos problemas que afligem os crentes em Alá. Percebi que Maomé, para além de ser o Profeta (Já devo ter os americanos em cima de mim só por escrever isto…), foi também um líder político e militar. Como tal, Maomé não se deixou prender a nenhuma cruz. Lutou e mandou matar quem se lhe opunha como um líder político e militar por vezes faz. Mal sabia ele da barbárie que os seus futuros sequazes seriam capazes. Acredito hoje que, assim como Karl Marx, se Maomé renascesse amaldiçoaria cada palavra do que escreveu e cada frase que proferiu ao ver o fanatismo de minorias, financiadas pelos wahabitas que por sua vez são financiados por cada um de nós ao enchermos o depósito de combustível do carro…

É meu dever aconselhar o livro Fúria Divina e a restante bibliografia presente na obra assim como é meu conselho ler com olhos de perceber o que está lá escrito. Se tivermos os olhos de um totó, vamos acabar por fechar o livro e continuar a dizer que os árabes são apenas malucos… e portanto não vale a pena lê-lo.

Quanto ao livro que não gostei, do autor que gosto:
1984 é o livro mais arrepiante que alguma vez tive a oportunidade de ler e de não gostar nadinha do que lá vem escrito. George Orwell foi sem dúvida um batalhador da liberdade, mas – como todas as pessoas que já lutaram em algum momento pela liberdade sabem – a luta em nome da liberdade é sempre o lema de proa quando estamos perante uma mudança da ordem e dos poderes vigentes. (Revolução Francesa, 25 de Abril…) Nestas situações, quem luta pela liberdade está sempre a lutar por alguém que deseja o poder e não pela verdadeira liberdade. Orwell apercebeu-se disso mesmo e tratou de dedicar a última parte da sua vida a escrever muitas obras e muitos ensaios políticos; todos de qualidade. Assim escreveu também algo que nos chamasse a atenção para os poderes de um Estado Totalitarista, e não apenas de uma sociedade comunista (Como fez na fábula Quinta dos Animais).

1984 tem o vilão mais poderoso de todos os tempos literários.

O Big Brother ou Grande Irmão, vulgo figura absoluta de um Estado absolutista, é uma figura quase divina dada a sua omnipresença em todos os aspectos da vida dos seus cidadãos. O poder que essa mesma figura tem é tal que, para além de controlar as rotinas, os corpos e os pensamentos dos seus cidadãos, consegue controlar os sentimentos da sua população! Mais!!! O seu poder é tal que até o passado, o presente e o futuro ele controla. Já imaginaram vilão mais poderoso? (Rui, o Seltor cometeu deicídio, é forte, mas o Big Brother também o consegue fazer, de uma maneira bem mais cruel ainda… que ninguém duvide disso.)

Claro está, à vista de todos, que eu não odiei o livro. Pelo contrário, adorei odiar este livro genial de um escritor ainda mais genial por conseguir por em tão poucas páginas aquilo que outros politólogos não conseguem pôr em verdadeiros tratados sobre política.
O problema deste livro é que ainda hoje me dá pesadelos quando vejo o estado do ensino mundial, o consumo de merda cultural na televisão e até no mundo livreiro; quando vejo Putins e Obamas deificados e Snowdens e Bradley Manning condenados por serem corajosos; e cristãos decapitados pelos Soldados do Estado Islâmico e crianças palestinianas islamitas (que não são terroristas) serem presas e torturadas pelas tropas semitas israelitas apenas com o intuito de recolherem informações e de sedimentarem os seus colonatos na Cisjordânia…Tantos aspirantes à figura do Big Brother, tanta facilidade em caminhar para um mundo tão perigoso…

Aconselho vivamente que percam dois ou três dias da vossa vida a ler esta obra-prima; mas aviso já: No final vão odiar saber a lição, o aviso, a ameaça presente… que Orwell nos deixou.

E pronto…
Espero que tenham gostado.
Mais um obrigado ao Rui.
Abraço
E boas leituras

Francisco Barão Fernandes

quinta-feira, 5 de março de 2015

Resposta a "Estantes Emprestadas [14]"


Depois de escrever a crónica mais estranha de sempre, por causa do desafio mais estranho de sempre da Alexandra, ela respondeu-me! E de forma cobarde!

Espero que estejas a ler, para saberes que não escolheste nenhuma personagem, foste apenas perfeitamente genérica!

Mas por outro lado, ela a Alexandra também pensou bem. Nada mais fácil do que uma carne picada, e é importante ter em atenção os vários constrangimentos, que há muitas, mas mesmo muitas personagens, que são certamente intragáveis e pouco saudáveis...

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Estantes Emprestadas [14] - Canibalismo literário (mais ou menos)


Sabem aqueles amigos que vocês têm perfeita de que são loucos? Também tenho disso. Apresento-vos a Alexandra Rolo, também conhecida por Pantapuff, dona do blog Folha em Branco e culpada frequente de se ver envolvida em vários projectos de milhentas áreas.

Um deles foi a Oficina de Escrita a que pertenço, e foi assim que a conheci. Se eu era o sanguinário do grupo, aqui a Alexandra era a minha second in command nesse departamento. Vocês nem fazem ideia. Infelizmente, já há uns tempos que ela deixou de contribuir com contos para as sessões, mas de vez em quando ainda se digna a aparecer, principalmente se houver bolo envolvido.

Tendo em conta esta descrição, eu devia ter logo percebido que me ia arrepender de a convidar para participar nas Estantes Emprestadas. Sem mais demoras, passemos à pergunta dela, e depois à minha resposta. Obrigado Alexandra! (E raios te partam!)

P.S.: Aqui fica a resposta dela, e umas palavrinhas minhas quanto a isso.

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Tu és sádico e dado a coisas com um bocadinho de sangue... se tivesses de fazer uma refeição estilo Hannibal Lecter, que personagens (e que partes) usavas e porquê?


Eu não disse que me ia arrepender?  Mas vamos lá, isto vai ser engraçado. Ia começar por me queixar de que não há praticamente nada que eu possa dizer em resposta a isto, mas... Fui ver a lista das opiniões aqui do blog e tenho aqui vinte e dois links que posso mencionar. Estou honestamente impressionado.

Comecemos pelas batotas, que são a maior parte dos links. Podia usar personagens de Fórmula da Felicidade, que são animais antropomórficos, assim as de Maus, ou então algumas das de A Quinta dos Animais ou do mundo de Alice no País das Maravilhas, que são literalmente animais. Isto poupava-me bastante trabalho, mas era desonesto, e corria o risco de repetir a história de Philip K. Dick, Beyond lies the wub.

Portanto não o vou fazer. Mas posso usar batotas mais sofisticadas. Como por exemplo dizer que me tornava num vampiro ou num zombie, e a minha resposta passava a ser "qualquer uma que estique o pescocinho" ou "BRAAAAAAAAAAAAAAAAAAAINS". Aliás, esse tipo de coisas até está bastante na moda, diga-se de passagem...

Mas também era batota, e não quero ir por aí. Até por o canibalismo tem as suas vantagens em várias obras de ficção. Pessoalmente, não me importava mesmo nada de ter a habilidade cibopática de Tony Chu, de ver as memórias de alguém, ou algum animal, que coma. E no universo negro de Joe Abercrombie, há toda uma espécie de seita com poderes praticamente sobrenaturais que ganham após comerem carne humana. Vantagens, é o que eu digo!

Nham nham
Enfim, tenho que parar de divagar e de fazer publicidade a opiniões antigas aqui no blog, e responder realmente à pergunta, não é? Seja. Mas vou fazer uma pequena batota na mesma. Sim, sim, vou sim, e não quero saber.

Ora bem, vou precisar que fiquem com quatro (conjuntos de) obras em mente: The HobbitParque Jurássico, a Saga Bubu do Dragonball e Lovecraft. Confusos? Óptimo.

A (não tão) pequena batota (quanto isso), é que a parte do canibalismo a que a Alexandra quer chegar, vai ser ligeiramente distorcida. E as três personagens que vou de facto incluir na refeição, são especiais. Mas imaginem o que era comer um bocadinho de carne de Smaug, de dinossauro, ou de uma das entidades cósmicas de Lovecraft? Ah! Carne de dragão deve ser qualquer coisa, e então carne de dragão inteligente com a voz do Cumberbatch... Um petisco!

O livro não tem nada a ver com o título, infelizmente...
Os dinossauros eu sei que não são bem personagens, mas até que são, e eu seria o primeiro na fila para dar uma trinca em carne de dinossauro, porque eu gosto assim tanto de dinossauros.

(Não achavam que eu ia ser amigo de alguém como a Alexandra sem ser eu próprio um bocadinho louco também, pois não?)

As entidades cósmicas do Lovecraft seriam uma categoria à parte. Se calhar nem tinha que as comer literalmente a elas, que seres capazes de criar objectos e cidades inteiras com geometrias não-euclidianas, devem fazer um tesseracto de lasanha do caraças. Ou então comida fractal! Se bem que isso já existe, e chama-se "sandes", porque se cortarmos uma sandes ao meio, as "meias-sandes" são na realidade sandes mais pequenas. Quanto mais cortarmos, mais sandes temos, em ponto mais pequeno. Ah!

Perdoem-me o desvio. Vamos ao canibalismo, então? É aqui que peço ajuda ao Bubu do Dragonball, e à sua capacidade de tornar as pessoas em doces. Tecnicamente é canibalismo, e caía mesmo bem depois duma refeição de dragão, dinossauro, entidades cósmicas e/ou tesseractos e fractais comestíveis. Toma esta, Alexandra!

Gelado de pessoas, alguém quer?
Vá, vou ser simpático e escolher algumas personagens para transformar em doces. Alguém como o Wolverine era o ideal: imaginem um doce com capacidade de regenerar. Uma tablete de chocolate que voltava a ficar inteira depois de cada trinca. Chocolate infinito!

De resto só se forem personagens mesmo muito desagradáveis, das quais me quisesse ver livre. E de momento não me ocorre nenhuma. Raios parta. Mas já escrevi muito, considera-te satisfeita, Alexandra! Agora diz tu de tua justiça. E vocês que estão a ler isto com ar horrorizado, façam favor, também!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Resposta a "Estantes Emprestadas [13]"



Fica aqui o que ela disse, bem dito e tudo, mas vou destacar duas coisas:

Assim sendo não tem um blog fechado, não se limita a escrever e publicar, envolve-se com as pessoas, chateia-as - no melhor dos sentidos - e acaba por arranjar maneira das coisas ficarem mais interessantes e de ainda se/nos divertir com isto tudo.

Obrigado! A ideia é exactamente essa, e ainda bem que é isso que está a passar. Espero que haja mais gente a pensar assim.

Por outro lado pensei que explorasses um pouco mais. Talvez o tentar descobrir qual a melhor forma destas coisas acontecerem, porquê, como, não sei. Mais trabalho imaginativo!

Aqui dou-lhe razão. Acabei por dar mais exemplos do que outra coisa, o que não passou de uma forma (nada) subtil de fugir àquilo que ela queria, este tal trabalho imaginativo. Para ser sincero, eu tentei, mas não consegui pensar em absolutamente nada decente, portanto decidi ter uma abordagem sustentável, que fosse capaz de cumprir, em vez de inventar e não sair nada de jeito.

Para lerem o resto, passem pelo blog dela. É relativamente recente e interessante, independentemente de ela ser minha namorada. Temos gostos parecidos, portanto é fácil eu gostar do conteúdo que ela vai tendo por lá, e vice-versa, mas pronto.

Por agora fica assim o primeiro desafio, destas Estantes Emprestadas 2.0, que se estão a revelar mais complicadas do que a primeira ronda!

sábado, 24 de janeiro de 2015

Estantes Emprestadas [13] - Amálgama de coisas


Sejam bem-vindos ao primeiro Estantes Emprestadas de 2015, já no seu novo formato! Comecei por convidar a Júlia, também conhecida por Jules, porque quem melhor para inaugurar isto do que a minha namorada? Já sabia que ela ia dar um tema difícil, mas interessante, e tinha razão. Até começou por lixar, que primeiro que eu conseguisse começar a escrever... Mas depois tornou-se em algo que me deixou mais satisfeito.

Para quem não se lembra, a ideia desta segunda versão das Estantes Emprestadas é ter bloggers a sugerirem-me um tema, sobre o qual eu escrevo um texto, a que esses bloggers depois têm de responder. É uma experiência de interactividade entre bloggers!

Sem mais demoras, avancemos! Obrigado Jules!

P.S.: Aqui fica a resposta dela e a minha "defesa".

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Conhecendo-te bem, e a mim também, sei bem que gostamos de muita coisa e todas muito diferentes umas das outras. Gostando de tanta coisa acabamos por precisar de vários meios para obter satisfação para todas. Mas e se fosse possível reunir tudo num só sítio? Como é que isso aconteceria? É possível de maneira real e – isto é importante – que faça sentido?

No teu caso, por exemplo, reunir DW, epopeias, dinossauros, livros, mitologia, integrais, crianças pequenas, desgosto por cães, como é que isto tudo poderia ser junto? Resultava? Sendo nós tão ecléticos? E quereríamos que isso acontecesse? Retiraríamos realmente o prazer que retiramos dos pequenos pedacinhos num todo?


Pergunta difícil. A resposta fácil, e mais simples, é que não sei. Não consigo imaginar muito bem algo que conseguisse realmente conter todas essas coisas (e outras tantas) num todo coerente e razoável. Quem me dera a mim! Mas não me parece viável.

Posso, no entanto, falar de alguns exemplos, alguns bem recentes, que considero interessantes e que se encaixam, de certa forma, na tua pergunta.

A começar por Doctor Who. Toda a gente sabe o quanto é que eu gosto desta série, mas poucos compreendem verdadeiramente o motivo: é uma espécie de resposta à tua pergunta. Nunca vi nada que juntasse tanta coisa numa só. Os encontros com a mitologia são frequentes, a ciência é constante, há crianças adoráveis, dinossauros, zombies, naves espaciais, aliens, magia, figuras históricas, enfim, de tudo!


E isto feito de forma coerente, consistente (a maior parte das vezes), com bons elencos e boas histórias. É um bom exemplo de como se pode pegar num conjunto infindável de temas, juntá-los, misturar bem, e ter como resultado algo excelente.

Tu de certo que compreendes, és tão fanática por Doctor Who como eu. Cada episódio é uma pequena obra-prima de diversidade temática, alguns mais bem executados do que outros, mas sempre fascinantes, de uma forma ou de outra. A capacidade que o programa tem de fazer isso e ao mesmo tempo manter-me suficientemente embrenhado para nunca duvidar nem questionar grande coisa, apenas apreciar, é qualquer coisa de especial.

Falemos agora de exemplos mais literários. Há o caso simples, e óbvio, de The League of Extraordinary Gentlemen, que me oferecido por alguém (fazes ideia?) numa edição para lá de lindíssima. A mente irrequieta e arcaica de Alan Moore consegue criar um livro fantástico que mistura várias mitologias e várias ficções (mais ou menos) actuais, numa história coerente e, pior ainda, interessante.


O meu fascínio por este livro já está bem documentado aqui no blog, portanto não me quero alongar demasiado, mas percebem? Tu certamente que percebes, Jules, ainda não o leste e já tens o mesmo fascínio. A sensação que tenho deste livro é parecida com a que tenho da série Sandman, de Neil Gaiman. A mistura entre realidade e ficção é parecida, embora assuma contornos bastante diferentes. E o sense of wonder é exactamente o mesmo nestas duas BD's e em Doctor Who. Algo que nos faz sonhar e acreditar.

Para dar um exemplo mais discreto, deixa-me falar de Flatland. Ainda estou para perceber como é que um livro tão pequeno e aparentemente tão simples consegue exercer um fascínio tão grande sobre mim, mas a verdade é essa.

Nesta curta história sobre um quadrado muito vitoriano que é arrancado do seu mundo bidimensional e levado a conhecer todas as múltiplas dimensões “acima” e “abaixo” da dele, não se misturam muitas coisas: apenas conceitos matemáticos, literatura e crítica/paródia à sociedade vitoriana. Mas o autor consegue fazê-lo de uma forma que me deixou completamente rendido logo na primeira leitura, quanto mais na segunda e na terceira. Não sei se é de ver rigor matemático e explicações geométricas no meio de uma narrativa, mas Flatland é e sempre será um dos meus livros favoritos de sempre.


Agora que falo nele, no entanto, lembro-me de um autor que tenho de mencionar: Jorge Luís Borges. Aquela mistura de ficção com matemática, a sua utilização de conceitos matemáticos para construir uma história, e de usar uma história para explicar conceitos matemáticos, é completamente fora de série. É o tipo de coisa que eu gostava de fazer um dia.

Tenho que falar dos vários contos que envolvem labirintos? Ou uma biblioteca infinita? Um disco que só tem um lado? Um livro de infinitas páginas? O próprio Aleph? Genial não chega para o descrever!

Como vês, existem já vários exemplos de coisas que podem fazer mais ou menos essa enorme mistura de temas. Mas sinto que falta responder à tua pergunta de uma outra perspectiva. O que é que poderia existir que realmente fizesse essa mistura, e com sucesso? Queremos que aconteça?


A resposta à segunda pergunta é: digo-te depois de ler/ver/ouvir. Quanto à primeira... Bem, conheço casos de coisas que tentam fazer misturas e falham redondamente, como Falling Skies, que tenta misturar distopia, invasão alienígena e História, mas apenas consegue ter um professor de História estranhamente competente em termos militares, que aproveita qualquer oportunidade para relembrar toda a gente à sua volta de que era professor de História. É irritante e inútil.

Se queres que te diga, para mim, a única forma de isso acontecer seria em BD. Não há limites de orçamento, o que é um bónus, e não era difícil misturar isso tudo, nem que fosse em pormenores tão palerma como ter uma personagem que, como quase acontece comigo, só tem camisolas nerd/geek. Só isso já dava para introduzir algumas coisas, de forma discreta. O resto era deixar a imaginação correr.

Eu sei que este exemplo parece um bocado palerma, mas tu percebes-me, eu sei que sim. O que é realmente relevante nisto é a imaginação, tão simples quanto isso. É possível? Não tenho a certeza. Seria porreiro? Também não tenho a certeza. Gostava que acontecesse? Claro que sim, mais que não fosse para responder às duas perguntas anteriores, que só gosto de falar de incerteza quando a seguir digo “de Heisenberg” e antes disse “princípio da”.

Como tal, atiro-te novamente a pergunta, o que é que tu achas? E vocês, que estão a perguntar-se o que raio aconteceu à minha memória a longo prazo, para todos os exemplos serem de coisas com as quais lidei no último mês, o que têm a dizer?

sábado, 13 de dezembro de 2014

Estantes Emprestadas [12] - Ciência/Literatura e outras dicotomias


Estou orgulhoso. Aliás, estou bastante orgulhoso. Não só consegui manter esta rubrica durante um ano inteiro, como consegui realmente convencer doze pessoas a participar. Incrível!
Mas avancemos para o texto deste mês, o último deste ano. A autora é a Sandra Martins Pinto, mais uma colega da Oficina de Escrita que se tornou numa boa amiga. Se ainda não perceberam, fica aqui mais uma prova de como este grupo foi das melhores coisas que me aconteceu nos últimos anos.
Bem, logo no primeiro parágrafo a Sandra descreve a crónica que lhe pedi, portanto não me vou alongar. Fiquem a saber que ela escreve bem, é advogada e está a tirar um curso de Informática (nem me vou atrever a dizer o nome certo do curso, tem computadores e envolve programar => Informática!). Por outro lado, a sua escrita cai frequentemente na Ficção Científica, não propriamente dura, mas agressiva, digamos. Ideias fortes, principalmente.
Deixo-vos agora com o texto da Sandra, que tem uma mensagem no final com a qual me identifico bastante. Espero que gostem tanto como eu. Da minha parte, obrigado Sandra!

Habituei-me a seguir religiosamente o Que a Estante nos Caia em Cima quase desde que conheci o Rui, na Oficina de Escrita da Trëma (agora metamorfoseada em Polícia Bom, Polícia Mau), pelo que fiquei muito contente com o convite para escrever esta crónica. Mas confesso que o tema me deixou um pouco preocupada, por não saber ao certo como o havia de abordar: pedia-me ele que falasse da minha “posição privilegiada enquanto estudante de letras e agora de ciências, relativamente à leitura/escrita, talvez com foco na FC, mas não só”.
Ora bem, e por partes: posição privilegiada? Talvez, mas confesso que não é bem essa a sensação do lado de cá. E nem sequer estou a falar da insanidade que representa a tentativa, depois de muitos anos de Direito, de medir novamente forças com a Matemática (que deixara lá para trás há quase quinze anos), ou de tentar espremer o meu cérebro nas máquinas de tortura da Ciência de Computadores. Refiro-me antes à sensação de indefinição que é não pertencer verdadeiramente a nenhum dos lados, pairar entre as letras e os números, saltar entre umas e outros assim como quem saltasse de um marido para um amante sem sequer saber, a cada momento, qual é o legítimo e qual é o emprestado...
Passei uns dias a pensar nisto, e concluí que o binómio Letras-Ciências (que não é tão bonito como o de Newton, mas anda lá perto) espelha outras dicotomias a que me foi habituando na minha vida, e que me foram definindo nesta coisa algo híbrida em que acabei por me tornar. Letras/Ciências. Forma/Conteúdo. Estilo/enredo. Mainstream/género. Feminino/Masculino. 
Binómio de Newton: a nossa noção de bonito
Quando era ainda muito pequena, a minha mãe apresentou-me aos textos, aos poemas, a dezenas de lengalengas que ainda hoje sei recitar de cor e que conseguiram que nunca ficasse pouco à vontade à frente de uma folha de papel e com uma caneta na mão. Aprendi a ler com os gibis da Turma da Mônica, alguns no português adocicado de Vera Cruz, e a partir de então sempre me senti confortável com as palavras; dominava as suas regras, sabia exactamente o que encaixava onde, o que jogava com o quê. Era a minha língua, era a minha praia. Ia pela rua fora e inventava histórias que ia dizendo alto, ou canções, ou recitava os versos – do António Aleixo, da Florbela Espanca - que tinha lido no dia anterior, no livro da estante que estava mais à mão. Ainda hoje essa sensação de facilidade me acompanha, e talvez por isso escolhi uma profissão em que tenho de escrever. Muito.
Mas  depois havia o outro mundo. A razão de ser das coisas, de o sol se erguer de manhã nas montanhas e se ir deitar ao mar. O porquê de o dia se seguir à noite. De haver estações. De o Cola Cao se dissolver no leite. De se ver o raio, e só depois se ouvir o trovão. Havia o meu pai debruçado sobre a mesa a desmontar as rodas dentadas e as resistências e tudo o mais que existia nas entranhas dos meus brinquedos, nos aquecedores e nos ferros eléctricos, comigo a espreitar-lhe por cima do ombro. Houve o primeiro computador, quando eu tinha aí uns doze anos.  Havia os jogos de lógica, os puzzles de Mastermind surripiados à Nova Gente (?!). A beleza fria, perene e elegante de uma prova dos nove, de uma regra de três simples.
Lindo!
Para mim, as letras sempre foram a inspiração, e os números a transpiração. Um 18 a matemática tomava-me dez vezes mais tempo e trabalho do que a mesma nota a Português, mas sempre insisti apesar disso. Talvez mesmo por causa disso. Sou filha de um engenheiro, e companheira de outro há mais de uma década; era inevitável que a forma de pensar deles me acabasse por contagiar.
Cada um é p’ró que nasce, mas às vezes podemos nascer várias vezes na mesma vida. E foi um pouco o que aconteceu quando me vi outra vez nos bancos da Faculdade, em frente a um computador a tentar o primeiro [primeiro meu, que não certamente dele] Hello World!;  por essa altura costumava comentar que quase conseguia ouvir as rodas dentadas a realinhar-se no andar de cima, e era mesmo assim. A forma mentis de um programador não é a mesma de um jurista, ainda que eu tenha constatado, muitas vezes, que também não andam assim tão distantes quanto se possa pensar. 
Foi equipada com esta mente - casada com as letras mas tentada a infidelidades com os números - que fui crescendo como leitora e como escritora, ou arremedo disso. E nos textos (lidos ou escritos) sempre encontrei uma outra dicotomia que, pelo menos na minha cabeça, sempre associei àquela: a que opõe a forma ao conteúdo, o estilo ao enredo.  E, por arrasto, ainda um outro binómio, o que contrapõe o mainstream – aquilo que se costuma designar, de forma algo elitista, por ficção literária – ao género, onde cabem a ficção científica, a fantasia ou o terror.
Apesar de ter a casa recheada das colecções da era dourada da Ficção Científica em Portugal (cortesia do meu pai), o primeiro livro de FC que me recordo de ter lido foi o The Gods Themselves, do Asimov (O Crepúsculo dos Deuses, na tradução em português do Brasil), já devia andar pelos 19 anos. Tinha ido para a praia sem nada para ler, e qualquer leitor sabe que isso fica pouco aquém da definição de inferno.

Antes disso tinha havido fantasia, claro. Desde logo, claro, havia os filmes. Haverá sempre o Neverending Story, por mais kitsch que pareça hoje (Falcor forever!). Além disso, num certo sentido, grande parte da literatura infantil é fantasia.  E havia as Aventuras Fantásticas da dupla Steve Jackson/Ian Livingstone, que me permitiam escolher a minha própria aventura na companhia diária de esqueletos, mandrágoras, basiliscos e feiticeiros de moralidade duvidosa. Em todo o caso, por essa altura, a minha bagagem mainstream era bem maior. Eu lia tudo o que apanhava, desde livros de educação católica aos clássicos.
No meio dessas leituras erráticas, surgiam algumas vezes livros de divulgação científica. Recordo uma tarde passada no Palácio de Cristal a tentar digerir a Breve História do Tempo, do Stephen Hawking, e a atitude desconfiada dos meus pais quando lhes pedi, como prenda de Natal, o Gödel, Escher e Bach do Hofstadter. Às vezes, era areia demais para a minha camioneta. Mas valia sempre a pena pelo gozo da viagem. E, claro – e julgo que com isto me aproximo finalmente do que penso ter sido a ideia original do Rui para este texto -, fui também mergulhando mais e mais na ficção especulativa em geral e na FC em particular. Ainda assim, se bem que já tenha lido hard science fiction e gostado (estou a lembrar-me, por exemplo, do Permutation City do Greg Egan), sempre preferi os autores que dedicavam mais tempo aos aspectos sociológicos e psicológicos dos futuros imaginados do que à ciência pura e dura. 
Curioso também é que, à medida que fui tomando contacto com a ficção especulativa – e nos últimos anos, 80% do que tenho lido (e escrito) enquadra-se nessa categoria  – fui-me deslocando progressivamente no tal eixo forma/conteúdo. Numa história de ficção científica (como literatura das ideias que alguém já lhe chamou, e que efectivamente é), ou mesmo numa história de fantasia, dificilmente a forma vale só por si. Claro, uma estrutura original pode ser uma mais-valia (estou a recordar-me do Flowers for Algernon, mas há outros exemplos mais recentes, e bem mais extremos), mas ainda está ao serviço da história, não se esgota nunca num exercício de estilo.

De qualquer forma, hoje tendo a pensar que essa questão fundamental para qualquer leitor e para qualquer escritor – O que é mais importante numa obra literária: a forma ou conteúdo? – merece uma resposta geral, independente do género.  Parece-me que uma tal resposta se aproximará muito da que vi dada pelo Salman Rushdie, quando o José Rodrigues dos Santos lhe colocou exactamente aquela pergunta a meio de uma entrevista. O escritor respondeu simplesmente, e estou a citar de cor: o que importa é o como (o how, no original inglês). Importa como se conta uma história: não apenas a história em si (que a ninguém encantará se truncada por uma estrutura obtusa ou por uma linguagem atroz), nem tão-pouco a roupagem que se lhe dê (que pode ser bela e original, mas não esconderá o vácuo de uma história desprovida de interesse). Importa a conjunção das duas coisas num storytelling competente. Isto é verdade para os clássicos, como é verdade para o fantástico. Como em quase tudo na vida, é na síntese que reside o encanto e a magia, nos raros momentos em que se consegue o milagre de um todo maior que a mera soma das partes. Com as letras e as ciências, afinal, sucede exactamente o mesmo. O homem do Renascimento sabia-o. Oxalá nós, civilizados e sofisticados, cidadãos do futuro, não o esqueçamos.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Estantes Emprestadas [11] - A narrativa e os RPG's [2/2]


Depois de uma fantástica primeira parte, segue aqui a segunda parte da crónica da Leonor, que até me conseguiu ensinar qualquer sobre o Rothfuss. Deliciem-se!

Se forem como eu e gostarem de um certo nível de veracidade nas histórias com que interagem, isto vai implicar criar uma passado para a personagem jogada que faça sentido. Um guerreiro poderá talvez ser um veterano de guerra que não sabe já fazer outra coisa que não lutar. Uma maga poderá estar na demanda por conhecimento ou poder. Um ladrão pode simplesmente não ter tido outra hipótese senão aceitar a missão quase suicida, quando a opção era a prisão... e todo um sem número de possibilidades, mais ou menos clichés; mais ou menos profundas. 

Para mim, a criação deste passado, este background, a criação da personalidade da personagem e depois o jogar de acordo com isto tudo, é uma das partes mais divertidas do jogo. 

É claro que aqui entra um pouco o meu espírito de escritora. Nem toda a gente joga RPGs com o intuito de seguir uma história ou de saber as motivação mais profundas das personagens.

Vamos ser honestos, o explorar de uma masmorra e o bater e derrotar monstros só por si é bastante divertido. E enquanto que está escrito nas regras que ter as bases do passado da personagem pode ser útil, acho que os criadores do jogo não estão à espera que cada jogador apresente páginas de background e contextualização, nem que todos os Game Masters tenham a paciência para as ler. 

Para mim, para além de ser parte da diversão, esta maneira de desenvolver personagens tornou-se numa ferramenta de escrita. Dou por mim a fazer as mesmas perguntas quando escrevo sobre um alguém imaginário do que quando preparo uma personagens que se vai entreter a mandar bolas de fogo a orcs. E funciona. 


Tenho mencionado ao longo texto vários pormenores de RPG muito ligados aos mundo fantástico, e de facto o primeiro RPG (do tipo que estamos a discutir aqui) que foi criado chama-se Dungeons&Dragons, e ia buscar inspiração a todos os cânones de fantasia a que agora estamos habituados e principalmente, claro a Tolkien. Hoje em dia, no entanto, há um sem número de jogos e sistemas de jogo que podem ser adaptados a qualquer tipo de ambiente e realidade. Há jogos que vão buscar aos autores de horror como Call of Chtulhu que surgiu, claro, dos contos de Lovecraft; há  Warhammer, Dark Heresy, para quem gosta de um mundo futurista, negro e muito perigoso; Há Vampire e World of Darkness para quem gosta de aventuras de sobrenatural mais urbano; existe até um jogo baseado em Doctor Who, mesmo ao gosto do nosso mui-whoviano anfitrião. E um sem número de outras possibilidades. 

Menciono isto porque quero focar aquela que acho que é a maior ligação entre RPGs e a escrita, que é no fundo aquilo que me foi pedido fazer: a imaginação. Independentemente do estilo de escrita que alguém queira desenvolver, e independentemente do tipo de ficção que goste, vai ter sempre de recorrer aos seus músculos de imaginação, para além de qualquer ferramenta técnica de escrita. E jogar RPGs é, na minha opinião, uma das melhores maneiras de exercitar esses músculos. 


Termino então, referindo alguns autores que basearam os seus escritos em RPGs que desenvolveram com amigos ou colegas, e um escritor que apesar de não usar os jogos como inspiração directa, os tem bastante presentes. 

O mais claro exemplo é a a saga Dragonlance criada por Tracy Hickman e Margaret Weiss, livros escritos sobre aventuras jogadas em Krynn um mundo ou setting criado especificamente pelos autores para a empresa de jogos TSR, Inc. 

Outro exemplo é a The Dark Elf Trilogy e subsequentes livros escritos por R.A. Salvatore, que foram baseados num outro setting de Dungeons&Dragons – Fogotten Realms. Note-se que este mundo foi criado ainda por outro escritor, Ed Greenwood que também é autor de vários livros passados nesse mundo. 

Estes dois exemplos são dos melhores que encontro em termos de permeabilidade entre escrita e RPG. Não vou comentar a qualidade de escrita de qualquer das duas sagas, apenas dizendo que se enquadram num subtipo particular de fantasia a que chamam sword and sorcery – um estilo leve que foca principalmente acção e o desenvolvimento de um mundo fantástico pleno de magia. Independentemente dessa questão penso que é interessante ter ambos em conta quando se fala da relação entre escrita e RPGs, principalmente quando se vê como a escrita e o jogo se alimentam mutuamente para criar todo um universo de referência sobre o qual as pessoas podem ler, mas no qual também podem participar. 

Por último, menciono Patrick Rothfuss e a a sua Kingkiller Cronicle. Rothfuss cria todo um mundo original e explora a história de Kvothe, ausa personagem principal. Tudo o que ele escreve é original e sem  objectivo de servir de jogo. Afasta-se totalmente do estilo talvez leve dos outros autores que menciono, e os seus livros estão numa categoria completamente diferente de fantasia. No entanto, o autor utilizou um sistema de jogo já existente para explorar o mundo de Kvothe como personagem e usou-o durante anos para jogar com amigos. E afirma que ter feito isso o ajudou a desenvolver a sua história como nunca teria sido possível sem a interacção que o RPG lhe permitiu.