O título é só para parecer mais intelectual. A sua tradução para português-não-snob é algo como: "quero lá saber se está errado, quero é saber se faz sentido". O que também não parece ter muita lógica, mas eu passo a explicar.
Imaginem que pegam num livro que diz, logo na primeira página, que a civilização ruiu completamente no meio de um apocalipse zombie. Imaginem agora que alguns capítulos à frente os protagonistas vão tomar um café ao último Starbucks funcional do mundo. Ou estamos perante uma comédia que tem consciência do ridículo do que nos está a contar, ou isto é estúpido.
Agora imaginem que o livro em que pegam a seguir vos diz, também na primeira página, que a sociedade do livro se governa à base de duelos, e que depois um cliente de um restaurante desafia o cozinheiro para um duelo porque a comida estava salgada. É idiota? É. Mas é minimamente coerente!
Pronto, está bem, estes dois exemplos não são muito razoáveis, mas foi o que se arranjou sob pressão. Conhecem o significado da palavra extrapolar? Pois extrapolem. Extrapolem à força toda. Ignorem os detalhes dos meus exemplos, e percebam a ideia que quero passar com cada um deles.
Muitos dos livros que leio estão muito longe de serem denominados realistas. Ora dá para viajar mais depressa do que a luz (algo que talvez não seja assim tão irreal, num futuro não tão distante quanto isso), ora existem criaturas sobrenaturais estranhíssimas, ora é possível consumir vários tipos de metal para se ter algum tipo de poder especial... Uma série de coisas impossíveis bastante óbvias, e outras menos óbvias.
Estes são alguns dos motivos favoritos de muita gente, incluindo algumas pessoas que conheço, para dizerem que não gostam de ler o tipo de coisas que eu leio normalmente. Se bem que eu leio tanta coisa que não é fácil fazer uma média. Dizem que aquilo não é real, e que portanto não tem valor literário. E outras coisas que tais.
Eu normalmente pergunto-lhes se só lêem autobiografias e relatos históricos, mas como já não me levam a sério à partida, limitam-se a achar que estou a gozar com elas, e ignoram-me. O tom de voz repleto de basófia com que costumo fazer essa pergunta claramente não tem nada a ver com essa reacção das pessoas.
O que faço a seguir é assumir a premissa dessas pessoas - que estas histórias não são reais - e explicar-lhes calmamente que isso não interessa para nada. Idealmente, a seguir a isso eu explicaria o meu raciocínio, mas não costumo sequer chegar a essa fase. Para perceberem, vamos assumir um leitor hipotético, o Sr. Burro da Silva.
Este nosso amigo abstracto diz-me algo como "Sabes lá o que é ler um bom livro, nem me venhas com essas tuas conversas." e eu olho para ele com um ar sábio, calmo e ponderado e respondo com um tom de voz apaziguador: "Olha lá, cara de rabo, quem é que tu pensas que és? Já devo ter lido mais livros este ano do que tu na tua vida toda!"
Ajuizado como sempre. É então que o Sr. Burro da Silva decide começar a disparar nomes de escritores clássicos e obscuros a uma velocidade impressionante. Após uns vinte ou trinta nomes, lá se lembra de um que não conheço e exclama, hipoteticamente triunfante: "AH! AH! Como é que queres dizer que és um leitor a sério, nem conheces a [inserir nome de autora que ninguém conhece]!"
A minha hipotética reacção é enfiar o Sr. Burro da Silva numa caixa, fazer uns buraquinhos para as orelhas e começar a minha calma e completa dissertação sobre técnicas narrativas e coerência de enredo.
Em termos muito simples, aquilo que eu comecei por dizer é a mais pura das verdades. Um livro não tem que fazer sentido per se, nem tem que aderir às leis da Natureza que nós conhecemos. Apenas tem que ser coerente com a utilização das suas próprias regras. A chamada suspensão da crença (suspension of disbelief) depende, e muito, disso mesmo.
Muitas vezes até nem é de forma óbvia e particularmente explícita, mas as pessoas reparam que está ali algo que não faz muito sentido. Quebrar as regras internas da história é dizer às pessoas que o mundo e a história que estão a conhecer é uma falsidade completa, e ainda por cima mal feita, pois nem tem a capacidade de distrair alguém.
Um excelente exemplo de como a coerência narrativa é importante e adiciona uma quantidade de dimensões a um livro que fariam invejar qualquer tesseracto que se preze, é Brandon Sanderson e os seus sistemas de magia. Têm regras, e têm limitações. E se uma personagem tem a capacidade de empurrar metal, pode saltar alturas inimagináveis, e até quase voar, desde que a peça de metal em que se está a apoiar seja mais pesada, esteja mais fortemente fixa, ou tenha um apoio tal que a torne mais pesada do que a pessoa que está a usar o poder.
Fantástico! Coerência! Curiosamente, e acho que as pessoas que acusam o Fantástico e afins de falta de realismo deviam tentar perceber isto, este tipo de coisas acaba por dar credibilidade à história. Torna-a mais realista. Não no sentido de "isto até podia acontecer", mas no sentido de "isto é uma realidade paralela em que isto é possível, e tudo bate certo com isso". O que, só por si, já é impressionante!
Por isso é que não me importo de ler uma história em que alguém tenha conseguido neutralizar a gravidade no nosso planeta, desde que as coisas comecem a flutuar pelo espaço fora. Se houver coerência, não me custa nada aceitar a história, algo que já é bem mais difícil de acontecer se a história é apenas estúpida.
Até o hipotético Burro da Silva acena que sim. Se bem que, possivelmente, por medo, mas isso já são pormenores.