sábado, 31 de outubro de 2015

Suspensão da crença: a importância da coerência e a irrelevância do realismo

O título é só para parecer mais intelectual. A sua tradução para português-não-snob é algo como: "quero lá saber se está errado, quero é saber se faz sentido". O que também não parece ter muita lógica, mas eu passo a explicar.

Imaginem que pegam num livro que diz, logo na primeira página, que a civilização ruiu completamente no meio de um apocalipse zombie. Imaginem agora que alguns capítulos à frente os protagonistas vão tomar um café ao último Starbucks funcional do mundo. Ou estamos perante uma comédia que tem consciência do ridículo do que nos está a contar, ou isto é estúpido.

Agora imaginem que o livro em que pegam a seguir vos diz, também na primeira página, que a sociedade do livro se governa à base de duelos, e que depois um cliente de um restaurante desafia o cozinheiro para um duelo porque a comida estava salgada. É idiota? É. Mas é minimamente coerente!

Pronto, está bem, estes dois exemplos não são muito razoáveis, mas foi o que se arranjou sob pressão. Conhecem o significado da palavra extrapolar? Pois extrapolem. Extrapolem à força toda. Ignorem os detalhes dos meus exemplos, e percebam a ideia que quero passar com cada um deles.

Muitos dos livros que leio estão muito longe de serem denominados realistas. Ora dá para viajar mais depressa do que a luz (algo que talvez não seja assim tão irreal, num futuro não tão distante quanto isso), ora existem criaturas sobrenaturais estranhíssimas, ora é possível consumir vários tipos de metal para se ter algum tipo de poder especial... Uma série de coisas impossíveis bastante óbvias, e outras menos óbvias.

Estes são alguns dos motivos favoritos de muita gente, incluindo algumas pessoas que conheço, para dizerem que não gostam de ler o tipo de coisas que eu leio normalmente. Se bem que eu leio tanta coisa que não é fácil fazer uma média. Dizem que aquilo não é real, e que portanto não tem valor literário. E outras coisas que tais.

Eu normalmente pergunto-lhes se só lêem autobiografias e relatos históricos, mas como já não me levam a sério à partida, limitam-se a achar que estou a gozar com elas, e ignoram-me. O tom de voz repleto de basófia com que costumo fazer essa pergunta claramente não tem nada a ver com essa reacção das pessoas.

O que faço a seguir é assumir a premissa dessas pessoas - que estas histórias não são reais - e explicar-lhes calmamente que isso não interessa para nada. Idealmente, a seguir a isso eu explicaria o meu raciocínio, mas não costumo sequer chegar a essa fase. Para perceberem, vamos assumir um leitor hipotético, o Sr. Burro da Silva.

Este nosso amigo abstracto diz-me algo como "Sabes lá o que é ler um bom livro, nem me venhas com essas tuas conversas." e eu olho para ele com um ar sábio, calmo e ponderado e respondo com um tom de voz apaziguador: "Olha lá, cara de rabo, quem é que tu pensas que és? Já devo ter lido mais livros este ano do que tu na tua vida toda!"

Ajuizado como sempre. É então que o Sr. Burro da Silva decide começar a disparar nomes de escritores clássicos e obscuros a uma velocidade impressionante. Após uns vinte ou trinta nomes, lá se lembra de um que não conheço e exclama, hipoteticamente triunfante: "AH! AH! Como é que queres dizer que és um leitor a sério, nem conheces a [inserir nome de autora que ninguém conhece]!"

A minha hipotética reacção é enfiar o Sr. Burro da Silva numa caixa, fazer uns buraquinhos para as orelhas e começar a minha calma e completa dissertação sobre técnicas narrativas e coerência de enredo.

Em termos muito simples, aquilo que eu comecei por dizer é a mais pura das verdades. Um livro não tem que fazer sentido per se, nem tem que aderir às leis da Natureza que nós conhecemos. Apenas tem que ser coerente com a utilização das suas próprias regras. A chamada suspensão da crença (suspension of disbelief) depende, e muito, disso mesmo.

Muitas vezes até nem é de forma óbvia e particularmente explícita, mas as pessoas reparam que está ali algo que não faz muito sentido. Quebrar as regras internas da história é dizer às pessoas que o mundo e a história que estão a conhecer é uma falsidade completa, e ainda por cima mal feita, pois nem tem a capacidade de distrair alguém.

Um excelente exemplo de como a coerência narrativa é importante e adiciona uma quantidade de dimensões a um livro que fariam invejar qualquer tesseracto que se preze, é Brandon Sanderson e os seus sistemas de magia. Têm regras, e têm limitações. E se uma personagem tem a capacidade de empurrar metal, pode saltar alturas inimagináveis, e até quase voar, desde que a peça de metal em que se está a apoiar seja mais pesada, esteja mais fortemente fixa, ou tenha um apoio tal que a torne mais pesada do que a pessoa que está a usar o poder.

Fantástico! Coerência! Curiosamente, e acho que as pessoas que acusam o Fantástico e afins de falta de realismo deviam tentar perceber isto, este tipo de coisas acaba por dar credibilidade à história. Torna-a mais realista. Não no sentido de "isto até podia acontecer", mas no sentido de "isto é uma realidade paralela em que isto é possível, e tudo bate certo com isso". O que, só por si, já é impressionante!

Por isso é que não me importo de ler uma história em que alguém tenha conseguido neutralizar a gravidade no nosso planeta, desde que as coisas comecem a flutuar pelo espaço fora. Se houver coerência, não me custa nada aceitar a história, algo que já é bem mais difícil de acontecer se a história é apenas estúpida.

Até o hipotético Burro da Silva acena que sim. Se bem que, possivelmente, por medo, mas isso já são pormenores.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Scott Pilgrim Contra o Mundo (Scott Pilgrim #2)


Autor: Brian Lee O'Malley
Tradutor: Renato Carreira


Opinião: Continua divertido, exagerado e meta, mas sofre ligeiramente de ser mais do mesmo. As personagens não evoluem grande coisa, e tudo acontece simplesmente porque sim, de forma aparentemente aleatória, incluindo as decisões e acções das personagens.

Desenvolvem-se algumas histórias secundárias deveras interessantes, para compensar. Adensam-se as relações amorosas, com praticamente toda a gente a já ter sido namorada/namorado de toda a gente.

E os namorados maléficos continuam a aparecer. Scott continua a vencer na vida ao ser ao mesmo tempo um tipo sortudo, estranhamente competente, e uma enorme besta no que toca a raparigas: começa a namorar com Knives, apaixona-se por Ramona, namora as duas ao mesmo tempo, acaba com a primeira e depois deixa-se afectar, e de que maneira, pela ex-namorada Envy Adams. Ridículo. Se fosse eu, batia-lhe.

Aliás, a personagem de Scott é o chamado panhonha, um tipo inútil e ligeiramente morto por dentro, incapaz de fazer alguma coisa para além de se queixar, mas tem todas as raparigas atrás dele. E consegue sempre o que quer. Isto faz dele uma personagem no mínimo peculiar, com a qual é difícil de simpatizar.

Mas há pormenores interessantes que prometem, portanto apesar de ter sido uma pequena desilusão, tenho alguma confiança no que vai sair daqui. A ver vamos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Children of Men (2006)



Tremendo. A história cativante e emocionante não põe de lado o vasto worldbuilding, complexo e ainda mais fascinante do que o que quer que seja que aconteça. Não que a história não seja interessante - como já disse, é cativante e emocionante - mas há uma história a ser contada em dois níveis diferentes: a óbvia, que acompanhamos de forma directa no ecrã, e a menos óbvia, que nos é contada nas entrelinhas e através do mundo que é representado.

As camadas de simbolismo são óbvias, embora os significados não o sejam, e tudo isso se conjuga para contar uma história poderosa,  com um tom muito intenso e até pesado, sem que fique exageradamente heavy-handed (está-me a faltar a expressão certa em português). Ou seja, é um tema complicado, num futuro distópico e deveras complicado, com uma mensagem forte e pesada, mas nunca é feito de forma desastrada, nem à bruta.

Em termos simples estamos a falar de um futuro que vê a Humanidade a ficar infértil quase de um dia para o outro, e todas as consequências possíveis desse facto. Tornamo-nos, efectivamente, numa espécie em vias de extinção. A vida que as pessoas levam é mecânica, cinzenta e sem grande esperança do que quer que seja. Ligam-se emocionalmente à pessoa mais nova do mundo, que tem dezoito anos, e choram colectivamente a sua morte.

Enquanto isso há uma crise de refugiados que parece ecoar, antes de tempo, a que se vive hoje em dia, mas levada a um extremo controlador e segregativo. Isto resulta, obviamente, numa série de facções em jogo, todas com objectivos muito próprios e invariavelmente egoístas. Nem toda a gente se resigna, existem rebeldes com um plano e uma esperança.

O protagonista, Theo, antigo activista, é involuntariamente arrastado para o meio de tudo e torna-se numa espécie de herói resignado. Este herói tem como característica mais curiosa um constante problema de calçado: vai perdendo o que tem nos pés, fica muitas vezes ferido, acaba sempre com os pés mergulhados em água quente, para descansar, e passa muito tempo do filme descalço, a fugir de, ou para, algum sítio. Camadas de simbolismo intermináveis.

É também impossível não notar que todos os heróis deste filme surgem dos lugares mais improváveis, e o protagonista apercebe-se disso mesmo, bem como do facto de serem precisos sacrifícios por um bem maior, uma noção que o faz resignar-se ao seu papel de herói.

Por outro lado, e aqui é que está a genialidade do filme, a recusa da câmara em acompanhar o protagonista, como seria normal noutro filme qualquer, permite mostrar o mundo e, no fundo, contextualizar todos os acontecimentos. Acontece muita coisa em pano de fundo, e há até momentos em que mesmo que o foco esteja no protagonista, a câmara não se centra nele, e a história não está particularmente interessada nele, pois está ocupada a desenrolar-se noutro plano.

É uma forma inovadora de contar uma história, que adiciona várias camadas de emoção e de envolvimento do espectador, que se sente parte daquele mundo, tão credível por não fazer do protagonista alguém particularmente especial, nem em termos de história, nem em termos de enquadramento. Para uma discussão mais desenvolvido do assunto, aconselho-vos vivamente o vídeo no final deste texto.

As sequências de acção também são frenéticas, e os planos longos durante todo o filme aumentam a intensidade ao obrigar-nos a focar, ao puxar-nos e a não largar. O resultado é um filme excelente, e com um óptimo final, em que tudo fica bem... Mais ou menos!

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Scott Pilgrim na Boa Vida (Scott Pilgrim #1)


Autor: Brian Lee O'Malley
Tradutor: Renato Carreira


Opinião: Divertido até ao tutano, exagerado e bueda meta. É assim o primeiro volume. A história de Scott Pilgrim, um rapaz estranho que só quer é ter uma vida calma. Vive com um amigo gay, dormem na mesma cama, mas não se envolvem. Scott começa a namorar com Knives Chau, uma rapariga de 17 anos que se torna rapidamente a maior fã da sua banda, os Sex Bob Ombs, juntamente com o vocalista (que deve ter um nome mas não é uma personagem particularmente memorável) e Kim, a baterista mais badass de sempre.

Mas tudo muda quando Scott começa a sonhar com Ramona Flowers, uma misteriosa rapariga com vários ex-namorados maléficos.

Só que as coisas ficam muito rapidamente muito estranhas com a Ramona a dizer, do nada, que ela lhe aparece em sonhos porque há uma autoestrada subespacial que passa pela cabeça dele. Foi assim que percebi que não estava apenas a ler uma BD, mas uma BD hiperactiva.

Com a vantagem de também ser bueda meta, graças a uma discreta self-awareness das personagens de que estão dentro de um livro.

Infelizmente, no meio disto tudo, o autor até tem um mundo (relativamente) consistente e convincente, só que decide que, do nada, o Scott é o melhor lutador das redondezas, depois de se demonstrar completamente inepto a praticamente tudo. Soa estranho.

Enfim, tirando essas coisas, é um livro porreiro, com um storytelling muito ao meu estilo, e um humor delicioso. Depois de ler este livro fiquei com a ideia de que os seguintes iam precisar de uma pequena volta na estrutura e na forma de contar as coisas, para não cometerem os mesmos erros que este volume.

Mas a esperança ficou, pois Scott Pilgrim na Boa Vida é um bom começo de saga.

sábado, 24 de outubro de 2015

[Projecto Adamastor] - Votação «Os Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa»



É sempre bom falar do Projecto Adamastor. Uma das iniciativas com mais potencial e mais qualidade que me lembro de ver no panorama literário português. E inteiramente sobrevivente à base de voluntariado, boa-vontade e, tenho a certeza, alguma (abençoada) carolice!

Quando o projecto foi lançado, entrevistei o Ricardo Lourenço, o culpado da sua existência. Desde aí tudo evoluiu e o projecto passou a incluir uma colecção de ficção especulativa, a Colecção Génesis, uma fantástica adição ao já fantástico catálogo.

(De notar as impressionantes capas!)

Agora há um novo objectivo: o de elaborar uma lista dos melhores romances em língua portuguesa. Mais uma iniciativa de louvar e em que vale a pena participar.

Fiquem também com uma nova  e pequena entrevista a Ricardo Lourenço, que merece a minha admiração pela forma como tem guiado e desenvolvido o projecto.

Há quase um ano o Projecto Adamastor passou a incluir uma colecção de Ficção Especulativa, a Colecção Génesis. Sei que era o objectivo inicial do Projecto, mas o que permitiu que isto fosse finalmente feito?

Creio que o que nos permitiu esse regresso às origens foi o facto de termos estabelecido as bases do projecto. A experiência acumulada ao longo dos primeiros dois anos de actividade abriu-nos novos horizontes e pareceu-nos uma boa oportunidade não só para diversificarmos o nosso catálogo, mas também para divulgarmos obras que muitas vezes acabam por ser menosprezadas devido ao género literário em que se inserem.

A colaboração dos membros do grupo Tr­­ëma foi também essencial, tanto na selecção das obras da colecção, como no processo de revisão das mesmas.

O Projecto continua a viver exclusivamente de trabalho voluntário? Como é que tem sido essa experiência?

Sim, continuamos a depender de trabalho voluntário. Não existindo qualquer remuneração, os colaboradores contribuem essencialmente por gosto, demonstrando uma dedicação louvável. Nesse aspecto a experiência tem sido bastante agradável.

No entanto, como seria de esperar, este modelo implica também algumas limitações: por um lado porque a disponibilidade de cada um varia consoante os seus compromissos pessoais e profissionais, por outro porque os custos associados ao projecto, embora não sejam excessivos, têm de ser suportados por nós.

Qual é a tua posição actual sobre o Novo Acordo, em termos de o incluir nos lançamentos do Projecto?

De momento a nossa posição mantém-se inalterada: continuaremos a publicar os nossos eBooks sem aplicar o Novo Acordo. Caso este venha a ser ratificado por todos os países de expressão portuguesa, voltaremos a debater internamente esta questão.

Como é que tens visto a abertura e o interesse das pessoas neste Projecto?

Em geral a resposta tem sido positiva e acredito que, à medida que o mercado digital se for desenvolvendo no nosso país, tenderá a melhorar. Apesar disso, desde o início da nossa actividade temos vindo a lutar contra um certo preconceito: refiro-me à noção de que aquilo que é gratuito é necessariamente de qualidade inferior. Tentamos contrariar essa ideia a cada novo lançamento, através de um trabalho rigoroso, tanto a nível de revisão como de design.

Para terminar, qualquer pessoa pode ajudar? Como?

O único requisito é mesmo o gosto pela literatura. Aos interessados costumo recomendar a leitura do nosso Guia do Colaborador, para terem noção das tarefas envolvidas na produção das nossas edições digitais e, assim, decidirem qual a melhor forma para contribuírem. Acreditamos que essa liberdade de escolha é importante; também não existe qualquer imposição em termos de prazos, pelo que cada pessoa pode trabalhar ao que ritmo que julgar mais apropriado.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Da Vinci's Demons [T2]



Eu queria mesmo muito gostar deste programa. A sério, adorava. A vida de um jovem Leonardo Da Vinci, a personagem histórica que mais admiro? Siga!

Mas a primeira temporada não me convenceu. A personagem é uma caricatura romantizada de Da Vinci, o que se podia justificar tendo em conta que é um programa de televisão, pronto. Mas o seu génio é encarado quase como uma série de inspirações semi-divinas que o deixam capaz de fazer coisas literalmente impossíveis.

Todas as outras personagens à sua volta só lá estão para realçar o quão espectacular ele é, mesmo os vilões e as personagens ambíguas, que ainda são a melhor parte do elenco. E tudo isto falha espectacularmente, com desenvolvimento atrás de desenvolvimento que não fazem ponta de sentido.

"Mas ainda pode melhorar!", pensei eu, ingénuo. Nope. A segunda temporada eleva o ridículo a novos níveis que eu achava impensáveis. O resultado é uma sequência de episódios com o enredo mais idiota que eu já vi num programa de televisão, e um herói que resolve todas as situações possíveis e imaginárias das formas mais idiotas que eu já vi num programa de televisão.

E eu sou um fiel seguidor de Doctor Who, em que a personagem principal às vezes derrota inimigos só de gritar com eles, e que no último episódio usou enguias eléctricas para derrotar uma raça de guerreiros alienígenas que se estavam a disfarçar de deuses nórdicos, no meio de uma aldeia Viking.

Da Vinci's Demons tem menos credibilidade do que isso. Ninguém é capaz de acreditar nas resoluções da personagem principal, que aprende a falar uma língua que nunca tinha ouvido, completamente diferente de todas as línguas existentes no mundo que conhece, em meia dúzia de horas.

Aquela coisa chamada suspensão da crença? Aqui não existe. E portanto, por muito que os vilões até sejam interessantes (um papa maléfico que é na realidade o irmão gémeo do verdadeiro papa e que o tem preso para lhe roubar o lugar? contem-me antes essa história!!!), e que a série ainda tenha algum potencial (muito, muito pouco), para mim acaba aqui, e com uma prestação absolutamente miserável.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

True Detective [T2]



A primeira temporada desta série é extraordinária. Matthew McConaughey e Woody Harrelson fazem um duo perfeito, em papéis excepcionalmente bem interpretados, inseridos numa história que cativa do princípio até ao fim, e rodeados de um elenco secundário igualmente bem trabalhado.

Mas tendo em conta o formato de antologia da série, com tudo a mudar de uma temporada para a outra - excepto a equipa técnica e o tema principal, polícias e detectives a fazerem as suas coisas de polícias e detectives - tudo podia correr mal aqui. Mas o elenco anunciado revelou-se cada vez mais forte, e o argumentista, Nic Pizzolatto, prometeu seguir a mesma fórmula em termos de ambiente e caracterização das personagens.

Levantei as expectativas. E fiz bem. A segunda temporada é tão extraordinária como a primeira, e até me cativou mais. Tiraram-se os longos monólogos da personagem de McConaughey, que por muito interessantes e fascinantes que fossem de acompanhar, matavam completamente o ritmo, e em vez disso introduziu-se um enredo mais denso, mais política palaciana e uma maior ambiguidade moral em todas as personagens.

Era isto que faltava. Uma maior representatividade de vilões, e a explicação de que nem sempre os maus das histórias são os vilões. Ou que há vários níveis de vilões.

O enredo até perde relevância quando o que temos no ecrã são personagens brilhantemente caracterizadas, como: o detective corrupto, mas com boas morais que luta contra o vício e só quer ser um bom pai; o mafioso mais mafioso de sempre, completamente entregue ao seu papel de mau da fita para conseguir sobreviver; a detective com estranhos fetiches sexuais e um passado complicado, adepta de fazer o bem, mas que está constantemente a lutar por se fazer valer num mundo de homens; e o polícia justo que é tramado por uma celebridade e que luta contra os seus impulsos homossexuais.

Dito isso parece só um desfilar de desgraças, mas acreditem que os actores e actrizes trazem estas personagens ao ecrã com uma densidade e um realismo que só é possível fora da vida real. São, quase literalmentes, personagens larger than life. Cada uma a representar os seus próprios demónios. E é espectacular vê-los em acção, ou a trabalhar em conjunto por causas comuns.

Quem é quer saber de um enredo sobre negociatas de terrenos e linhas de caminhos de ferro e estradas e auto-estradas e sei lá mais o quê, uma história que os próprios episódios deixam bem claro que é secundário? O que é realmente importante são as personagens e as relações entre elas.

E o final? Oh, o glorioso final, em que tudo faz sentido, excepto a vida (toquem os tambores do dramatismo). A sério, as peças encaixam todas, e a grande conclusão é que a morte não perdoa, e isso nem sempre é mau. O que significa que vou ficar ansiosamente à espera da próxima temporada, porque a fórmula funciona!

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Living Will #1


Argumento: André Oliveira
Arte: Joana Afonso


Opinião: Esta pequena BD já há muito que olhava para mim. A arte de Joana Afonso é um dos melhores chamativos que conheço, e o baixo preço (que é relativo, pois isto é minúsculo) convenceu-me.

O que descobri foi um dos poucos casos em que é legítimo julgar um livro pela capa. Talvez o melhor caso possível: o traço típico da artista, estilizado mas realista o suficiente, com os detalhes certos nos sítios certos que obrigam a focar onde é preciso, parece indicar um livro visualmente extraordinário. E é exactamente esse o caso.

Em termos de argumento não é mau, mas é uma parte demasiado curta de uma história que não é propriamente original, e portanto é difícil de fazer grandes julgamentos. Mas pesa o facto de estar em inglês - uma daquelas escolhas que continuo a achar difíceis de justificar, obras portuguesas escritas em inglês - e o facto de alguns dos diálogos serem estranhos.

Ou seja, no fim salvam-se os desenhos, com um excelente uso da cor para determinar o tom e o ambiente, e uma excelente caracterização de cada uma das personagens e situações. É possível perceber claramente o que se passa através dos desenhos, pelo menos em termos emotivos, que é o ponto forte desta pequena história.

Aliás, esta BD só tinha beneficiado de não ter diálogos: o traço de Joana Afonso é forte e expressivo o suficiente para contar a história só por si, como a artista já provou noutras alturas.

Não tinha expectativas formadas para esta leitura, para além do aspecto visual, e fiquei agradavelmente surpreendido. Falta-me agora continuar a comprar os outros livros e acompanhar a história de Will, o triste viúvo que decide fazer alguma coisa com o tempo que lhe resta...

sábado, 17 de outubro de 2015

Polícia Bom, Polícia Mau - não se esqueçam deste nome


Eu sei que o símbolo tem um ar estranho, especialmente em junção com o título. Mas tudo tem explicação. Eu acho que já falei aqui deste grupo de que faço parto, Polícia Bom, Polícia Mau (PBPM para os amigos), a evolução natural da Oficina de Escrita Fantástica da Trëma. É como grupo que nos encontramos todos os meses com novas histórias escritas e novos comentários a fazer. E é fantástico.

Ultimamente também já degenerámos ligeiramente num grupo de apreciação gastronómica e cultural, mas isso são consequências de além de colegas de escrita, sermos bons amigos. A dinâmica do grupo é espectacular, e acho que pelo menos alguns de nós já não escreveríamos com tanta regularidade (ou de todo) se não fossem por estes encontros.

O nome é apenas uma homenagem cómica aos mentores originais da Oficina de Escrita, Luís Filipe Silva e Rogério Ribeiro, que tinham basicamente esse papel: um era mais assertivo e mais crítico, com foco em apontar as falhas, mas sempre no espírito de se poder melhorar o texto; e o outro era mais fã de divagar um pouco, realçar o que funcionava e sugerir soluções para os problemas.

O primeiro não ia na conversa de "somos todos amigos, vamos lá encorajar", porque queria era ler material de qualidade, e o segundo não resistia a envolver-se com as nossas histórias e a sugerir que matássemos o protagonista. Ambos tiveram um papel essencial na génese do grupo, e um papel importante na nossa formação enquanto escritores (alguns mais amadores do que outros).

Agora deixo ao vosso critério descobrirem quem é que era o Polícia Bom e quem é que era o Polícia Mau.

Mas o nome pegou, de qualquer forma, e o Luís Melo, extraordinário artista e membro original do grupo (agora está de sabática), criou o logo e a coisa ficou. Não nos arrependemos.

O que interessa é que hoje venho apresentar-vos a mais recente evolução do grupo: depois de muito debate e de muita conversação, lá concordámos nos moldes em que íamos fazer isto, e lançámos o nosso blog e respectiva página do Facebook, onde vão poder acompanhar as nossas peripécias, conhecer os sítios (normalmente fantásticos) onde nos reunimos, e ler um pouco dos nossos textos. É uma forma de divulgação que, na minha opinião, já era mais do que merecida.

Aquilo que queremos é dar-nos a conhecer. Achamos que já temos material e qualidade mais do que suficiente, e que pode realmente haver interesse das pessoas. Acompanhem!

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Naruto [T2]



Já revelei que Naruto é um guilty pleasure, e até já deixei bem explícito o quão mal dividida a série está em termos de episódios/temporadas/história, portanto não vou continuar por aí. Embora devesse.

Deixem-me antes focar no quanto os fillers e o esticamento de situações já conseguiram testar até a minha paciência. Chega ao ponto de, nos últimos episódios, um tipo ter uma espada enfiada no peito do de outro tipo, lentamente a aumentar a pressão, durante uns cinco ou seis episódios, tudo para dar tempo de mostrar o que todas as personagens estão ao fazer ao mesmo tempo.

É triste, e faz a série perder muitos pontos. Por outro lado, a história está muito mais focada nesta temporada, e é interessante ver que as personagens realmente evoluem. Parecem desenhos demasiado abonecados para terem um desenvolvimento decente, e os constantes exageros da animação para efeitos cómicos levam a acreditar em algo parecido.

No entanto, e espantem-se à vontade, as personagens estão fantasticamente bem construídas, assim como o universo onde vivem. Se esta série falha em alguma coisa, é na estrutura narrativa e no ritmo, que se fosse uma função teria o gráfico mais esquizofrénico possível, mas todos os elementos de caracterização são espectaculares.

Cada informação sobre a personagem é introduzida da forma mais eficaz possível, embora nem sempre da forma mais eficiente. Por muito útil que seja ter um flashback da infância da uma personagem secundária, tanto em termos explicativos como emotivos, fazer esse flashback ocupar 75% do episódio é abusar da sorte.

Para compensar, esta temporada introduz uma das personagens mais espectaculares que já vi, Jirayia, o eremita pervertido cujo manancial de técnicos envolve muitas vezes invocar sapos de todos os tipos, tamanhos e feitios.

Falta ver como é que a história evolui daqui para a frente, e se consegue manter-me interessado. Eu tenho alguma confiança de que no final das cinco temporadas que, supostamente, constituem a série de Naruto original (depois passa-se para Naruto Shippuden, o que quer que seja que isso signifique), tenham uma história relativamente fechada e agradável. Os sinais por agora não estão promissores, mas as personagens em jogo são e estão cada vez melhores, portanto nem tudo é mau.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

The Day of the Triffids


Autor: John Wyndham


Opinião: Um livro excepcional e tremendamente britânico. O ritmo é praticamente o oposto de frenético e funciona muito bem, como só poderia acontecer num livro britânico. Lida-se, basicamente, com um apocalipse, mas só nos apercebemos do horror do que está a acontecer quando pensamos nisso, porque o tom da narrativa é extremamente cuidadoso e aparentemente calmo.

Em termos de história pensem em Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, mas com menos fezes nas paredes e mais plantas carnívoras que andam.

Essas plantas são as Triffids, que em muitos aspectos da sua história me fizeram lembrar um episódio de Doctor Who, The Power of Three, em que acontece uma invasão lenta do planeta Terra. É exactamente isso o que se passa, ainda que os três principais acontecimentos deste livro (a cegueira, as Triffids, e uma misteriosa epidemia) não tenham qualquer tipo de explicação para a relação entre eles.

Talvez não haja nenhuma, e o Mundo tenha colapsado sobre si próprio numa metáfora da instabilidade e falsa confiança em que vivemos hoje em dia. Ou talvez não seja preciso sermos tão picuinhas e intelectuais, e possamos apenas ver isto como uma série de coincidências dickensianas. Não sei bem o que pensar, mas o resultado é surpreendentemente bom.

De forma muito simples, há um evento cósmico que cega quase toda a gente no planeta, a sociedade vai por água baixo de forma bastante activa, e as Triffids, usadas há uns anos para extrair combustível, conseguem soltar-se e andam pelas ruas e campos fora atrás de pessoas para chacinar e digerir.

O protagonista é um homem que não cega, graças a ter os olhos tapados por ter sido submetido a um tratamento qualquer à visão, o que significa que não viu o evento cósmico. O banal começo de homem-sozinho-num-mundo-apocalíptico-sem-saber-o-que-aconteceu é intercalado com o extenso contexto que a personagem nos dá enquanto narra a história, e portanto não perde o sentido nem o interesse.

Depois acontece tudo de forma relativamente expectável, com a formação de tribos, as tentativas de criar novos sistemas governativos e comunitários, os inevitáveis confrontos, enfim, o costume. Mas a escrita de Wyndham consegue que nada se torne aborrecido, inclusivamente quando alguma personagem, ou o próprio narrador, começa a discorrer sobre alguma coisa.

No fim, a mensagem é curiosamente optimista e a única parte verdadeiramente inesperada de todo o livro. O ambiente durante toda a história é algo negro (disfarçado, graças a britanismo) e pessimista, com desgraça atrás de desgraça, e falhanço atrás de falhanço. E depois o final é o que é, e funciona estranhamente bem.

Não achei uma autêntica obra-prima, mas é um óptimo livro, e uma fantástica comparação com o já mencionado Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, que ainda por cima já foi bem explorada pelo David Soares, leitura que aconselho vivamente, assim como a deste livro.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Doctor Who [T9]


Esta temporada está exactamente a meio da era Pertwee enquanto Doctor. Com duas temporadas já feitas e duas por chegar, estas talvez sejam as histórias mais neutras em termos da posição do actor no universo de Doctor Who. Não acabou de chegar, nem está prestes a sair. É apenas mais uma temporada rotina, com a personagem já bem explorada e background suficiente para que as interacções e as reacções pareçam mais genuínas.

Por isso não é de estranhar que a qualidade seja acima da média para praticamente todas as histórias. Jon Pertwee é um excelente Doctor, completamente diferente dos seus antecessores, com a coragem de se diferenciar ainda mais do que a transição Hartnell-Troughton, mas a habilidade de ainda assim se manter fiel à personagem.

Fala-se muito de como o Second Doctor foi essencial (mais ainda do que o First) para estabelecer a personagem do Doctor. A forma como Troughton pegou na personagem e lhe deu uma direcção nova, com uma personalidade completamente diferente, é normalmente vista como o momento mais importante da série clássica, ou pelo menos um dos mais importantes.


Mas acho que o Third Doctor ainda foi mais importante. Bem vistas as coisas, o Second foi uma versão mais jovem e amigável do First, enquanto o Third passa bem por ser uma pessoa completamente diferente. A encarnação de Pertwee retém a moral e o mistério sobre a sua pessoa, mas de velho rezingão e manipulador, e de jovem hiperactivo e manipulador, o Doctor evoluiu para um herói de acção com instintos diplomatas, e muito mais capaz de inspirar confiança com o seu carisma natural do que os dois Doctor anteriores.

Os argumentos também ajudam, e isso é algo que se nota muito claramente nesta temporada. Com a equipa criativa já muita segura dos conceitos base da série, usam e abusam deles, introduzindo cada vez mais noções e costumes da ficção científica.

É por isso que a primeira história, The Day of the Daleks, apesar de recheada de gerigonças palermas e confusões temporais igualmente palermas, tem uma narrativa relativamente consistente que podia ter funcionado muito bem. Aliás, não tenho dúvidas de que este é uma daquelas histórias que o actual argumentista-chefe, Steven Moffat, já viu e reviu.



Infelizmente esse enredo não é sólido o suficiente, apesar de repetir contexto da conferência internacional e alguém em perigo, e de usar os Daleks, uma aposta segura. A certa altura ambas as facções em jogo queriam chacinar a mesma pessoa, basicamente da mesma forma, por motivos completamente diferentes, o que não faz qualquer sentido. Mas pronto.

A vantagem é que a partir daqui é sempre a subir! A história seguinte, The Curse of Peladon não só é um bom conjunto de episódios, como adiciona mais um tijolo importante às fundações da série: o regresso dos Ice Warriors... Como seres pacíficos! É verdade, e deve ter sido preciso uma dose massiva de coragem para incluir isso neste argumento, porque não é, de todo, algo expectável, ainda para mais quando a evolução da raça se faz completamente off-screen.

O único ponto fortemente negativo é o facto do rei de Peladon ser um completo idiota: basta imaginarem que um dos pontos importantes é a existência de uns túneis secretos por baixo de todo o castelo, e nunca uma vez o rei diz "mostrem-me!". Tudo se tinha resolvido em dois ou três episódios.


Mas depois vem The Sea Devils, uma história competente a todos os níveis, com um argumento forte, um excelente regresso do Master e uma óptima evolução dos acontecimentos. Os primos dos Silurians são vistos alternadamente de forma negativa e positiva, e são de facto ambíguos para o espectador, e pelo meio há duras críticas às forças governamentais e militares, sempre mais amigas do "explodir primeiro, perguntar depois".

A história seguinte, The Mutants, é peculiar no sentido em que a ideia é fabulosa, mas a execução de algumas coisas deixo algo a desejar. O Doctor é novamente enviado pelos Time Lords para servir de pau mandado junto de mais uma situação perigosa, sem qualquer indicação do que está a acontecer, para onde está a ser enviado, nem do que é suposto fazer. Apenas tem uma encomenda que só se abre para a pessoa a quem é destinada, uma boa ideia só por si.

O ritmo é bom e tudo culmina num clímax alargado em que nos apercebemos, juntamente com as personagens, que nada do que pensávamos saber está certo. Os mutantes do título têm mais do que se lhe diga, e isso é um desenvolvimento deveras interessante. O final mantém a qualidade, e só falha na estranhíssima evolução de uma das personagens que... bem... é idiótica. Mas tirando isso, uma história de qualidade.


Por fim, The Time Monster, com o Master de volta com um dos seus pseudóminos mais famosos, Professor Thascalos, com muita conversa inconsequente sobre fluxos temporais e Atlântida (já começa a ser um fetiche, esta civilização ser retratada na série). Felizmente a história tem qualidade, e as brincadeiras temporais estão bem feitas, incluindo a Tardis do Doctor a aterrar dentro da Tardis do Master, enquanto a Tardis do Master aterra dentro da Tardis do Doctor, e todas as consequências disso. Muito interessante e inovador para a época, de certeza.

Acho que já deu para perceber que esta é realmente uma temporada de qualidade, com um Doctor e uma companion no seu melhor, a UNIT a ter um papel relevante e bem integrado, e todos os conceitos de FC a serem misturados e usados de forma bastante eficaz. Fica a excitação para a próxima temporada, que começa com o especial dos 10 anos da série, The Three Doctors, a primeira história com vários Doctors e que marca o regresso de William Hartnell e Patrick Troughton ao papel.

sábado, 10 de outubro de 2015

Originalidade


Ser original não é muito fácil. Fazer algo novo, diferente o suficiente do que já existe, e ainda assim interessante o suficiente para cativar a audiência... É trabalho complicado. Eu ainda por cima estou na situação privilegiada de estar activamente envolvido em dois mundos em que isso é notório, bem como as suas consequências: a ciência e as letras.

Há um enorme cuidado no que a originalidade diz respeito, não só a nível de trabalho, mas também a nível de artigos científicos e até do próprio desenvolvimento das ideias. E, claro, a literatura também tem os seus polícias do plágio enraizados em cada leitor, sempre à cata da mais pequena falha desse género.

Mas é preciso esclarecer já que falta de originalidade não implica plágio. Uma coisa é não saberem o que escrever a seguir, e então escrevem algo previsível, simples e que já foi contado milhares de outras vezes em tantas outras histórias; outra é chegarem à mesma situação, pegarem num livro das vossas estantes, e copiarem meia dúzia de parágrafos e declararem-nos como vossos.

A primeira opção é fraca e pouco interessante, mas a segunda é criminosa e imoral!

No entanto também é preciso ver que isso da originalidade não cai do céu. Não é difícil que pessoas parecidas, a passarem pelo mesmo tipo de ambiente social e tudo o mais, acabem por escrever coisas parecidas. E isso não é plágio, como devem imaginar. Também tenho dificuldade em chamar-lhe "falta de originalidade", mas na verdade é o que é.

Esse conceito, para mim, significa algo tão simples como "dadas as mesmas condições, arranjar uma solução diferente". Pode fazer mais ou menos sentido, e dependendo do que estivermos a falar, ser mais ou menos legítimo enquanto solução, mas isso é quase secundário. Burocracias mentais, se assim quiserem.

E é exactamente por isso que é tão complicado ser-se original. É preciso ter uma mente que nos permita ver para lá daquilo que os outros vêem. Ou pelo menos é preciso ter a mente suficientemente aberta a que isso aconteça.

Como isso dá algum trabalho, as pessoas caem facilmente nos facilitismos. Para um cientista/engenheiro/pessoa genérica de ciências, há confiança de que um professor não vai verificar todas as referências e  não vai dar conta que lá no meio do texto aparecem dois parágrafos novos que resolvem tudo. Portanto é muito fácil ir buscar os ditos parágrafos a quem já o disse, e melhor, e simplesmente usar.

Isso é plágio. Depois há aquilo a que eu chamo de plágio moral, que é o que o Fifty shades of grey é em relação ao Twilight. A história, mesmo tendo em conta pouco mais do que as sinopses, são sobre uma rapariga peculiar de alguma forma que se apaixona por alguém "superior" a ela e aceita as condições dele sobre a relação, sem ai nem ui.

Felizmente isto são coisas (relativamente) isolados e (relativamente) pontuais, o que quer dizer que o que não falta por aí são livros de qualidade. Já se são originais ou não, deixo ao vosso critério.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Que as citações nos caiam em cima [66]


"His eyes did not do anything that shock normally describes. No snapping, slapping, no jolt. Those things happen when you wake from a bad dream, not when you wake into one. No, his eyes dragged themselves open, from darkness to dim. It was his body that reacted, shrugging upwards and throwing out an arm, to grip the air."

The Book Thief
Markus Zusak

The Book Thief


Autor: Markus Zusak


Opinião: Nunca é fácil escrever sobre a Segunda Guerra Mundial. E ao mesmo tempo é demasiado fácil. É um assunto pesado e delicado que apesar de já estar semi-banalizado, não deixa de ser complicado de abordar. Ainda há muita gente sensível ao assunto, até porque não foi assim há tanto tempo quanto isso.

Mas também é uma nota fácil de tocar para chamar a atenção e para puxar a lagriminha. Falo disto porque senti isso com este livro. A história que conta é interessante, está bem explorada e, acima de tudo, muito bem contada, especialmente por causa de um certo factor de que já falo. No entanto, e apesar de estar feito com muito respeito pelos acontecimentos relatados, não é difícil começar a ouvir violinos daqueles que só tocam nos filmes durante as cenas mais dramáticas.

Nem sequer acho que o autor o tenha feito de propósito. Ou melhor, descaradamente de propósito. Parece-me mais que Zusak queria contar uma história triste, mais do que queria contar uma história sobre a Segunda Guerra Mundial. Teve a sorte, e o talento, de conseguir com que ambas as coisas encaixassem na perfeição, mas estão a perceber, não estão?

De qualquer forma, o livro é bom. Lê-se muito rápido, graças aos capítulos curtos e à escrita cativante, e embora siga muito claramente a vida de uma personagem, Liesel Meminger, a book thief do título, o livro apresenta uma visão muito mais alargada e abrangente do que seria de esperar. E isso deve-se ao pormenor de brilhantismo que Zusak deu ao livro, que é identificar o narrador com a Morte, com a sua voz muito característica e a sua forma muito específica de ver e de olhar para as coisas.

Foi uma forma de criar um narrador desapaixonado, distante, mas capaz de se interessar e de se fascinar da mesma forma que um avô se fascina pelos seus netos saltitantes a fazerem coisas que ele não consegue compreender.

Também faz com que o foco esteja em muitos pormenores que normalmente não veriam a luz do dia: as cores, as ligações entre cenários e personagens, e a evolução de cada uma dessas personagens, por mais secundária que fosse.

É claro que um livro destes não podia passar sem as suas críticas ao nazismo e a Hitler e afins, mas ao de leve, sem exagerar nem estragar a história com mensagens político-morais. O autor podia ter sido muito óbvio, mas prefere deixar a cada leitor a ligação que existe entre a história destas personagens, a da Liesel em particular, e a Guerra que acontece em pano de fundo.

Essa parte, pelo menos, não é defeito que se possa pôr. Está tudo muito bem retratado, desde a dor à tristeza, ao patriotismo exacerbado de parte da nação e acima de tudo à indiferença que tomava conta das pessoas, pelo menos durante algumas alturas.

The Book Thief foi sem dúvida uma óptima leitura, que acho que peca por, de certa forma, ter sido tão fácil de imbuir com um nível de tragédia suficiente para apelar a quase toda a gente.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Hannibal [T2]



Ah, Hannibal. Uma personagem que entra naquela categoria de vilões dos quais é impossível não gostar. Desde Anthony Hopkins que o psiquiatra canibal está bem destacado no nosso imaginário colectivo. O receio de fazer uma série com outro actor e novas abordagens a várias das histórias não era completamente infundado. Foi um risco enorme, mas um risco que valeu a pena.

A execução de cada cena e de cada linha narrativa é tão perfeita que mete dó. Toda a série tem um aspecto visual grandioso e espectacularmente bizarro. Cada cena parece uma obra de arte, não só pela qualidade mas com a convicção com que aparece no ecrã.

No entanto é a história e a opressão psicológica que as personagens exercem umas nas outras (e no espectador) que faz com que isto valha mesmo a pena. A narrativa enrola-se sobre si própria e produz algumas das maiores reviravoltas que já vi numa série.

E mais do que isso, os momentos de tensão são verdadeiros momentos de tensão extrema, durante os quais tudo ajuda, desde os planos que duram até ao ponto do desconfortável, a música agressiva, sinfónica e claustrofóbica, e as metáforas visuais extremamente perturbadoras.

Ainda há melhor, no entanto! Todas as personagens, todas, mostram uma evolução real e significativa. A quase descontrolada descida à insanidade de Will Graham, a forma super controlada como Hannibal Lecter navega no meio de toda a gente, enfim, fantástico a todos os níveis!

Cada episódio é tão intenso, que chega a ser mentalmente extenuante acompanhar a série. Entre pessoas que morrem, dramas vários que se desenrolam, e a noção de que há uma personagem, Hannibal Lecter, que sabe mais do que nós, que estamos a ver tudo, é impressionante.

No fim é uma série que vale bem a pena e que é sem dúvida uma das melhores séries de sempre. O que levanta a questão de porque raio é que foi cancelada, mas enfim. Vejam!

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Batman: Gótico (Batman #5)


Argumento: Grant Morrison
Arte: Klaus Janson, Steve Buccellato
Tradução: José de Freitas, Filipe Faria


Opinião: A minha impressão deste livro é que não ia ser grande coisa. A capa parecia-me banal, o título pouco chamativo, e a sinopse pouco avançava que me cativasse por aí além. Mas assim que comecei a ler, mudei de opinião. Isto é interessante!

Grant Morrison é um bom contador de histórias, e claramente muito bom a representar o Batman. A personalidade do Cavaleiro das Trevas, embora não seja o ponto alto, é sem dúvida uma das coisas mais bem feitas nesta BD.

O ponto alto é fácil de apontar, e dá-me uma nova opinião da capa: o ambiente. O gótico, que assenta tão bem neste super-herói, é o foco não só da arquitectura mas de praticamente todos os panéis, muito escuros, mas muito detalhados, ominosos e grandiosos.

A falha vem na história em si, que é deveras interessante, mas não para o Batman. Nem sequer para a DC, que sempre foi mais virada para a ficção científica mais dura. É que esta é uma história que envolve um oculto muito estranho e que fica muito por explicar. Não me agradou, essa parte. Especialmente o facto do Batman aceitar tão bem essa versão dos factos.

De resto só tenho a apontar a enorme coincidência que é o vilão ser quem é, e isso estar ligado de forma tão íntima à infância de Bruce Wayne e à origem do Batman. Eu não teria feito essas ligações, mas eu também não teria contado uma história do Batman que envolve ele aceitar que o vilão é um tipo que fez um pacto com o Diabo para ser imortal durante três séculos.

No fim não é uma má leitura, e a arte realmente ganha muitos pontos a seu favor, portanto não liguem demasiado aos defeitos que apontei, e pelo menos experimentem!

sábado, 3 de outubro de 2015

Esforcei-me para falar de livros, a sério que me esforcei

Mas está-me a parecer impossível fugir ao tema do momento: as eleições de amanhã. Aquele momento que muitos esperam com ansiedade, e que outros tantos apelidam de "o momento em que vai ficar tudo na mesma". Amanhã é o dia em que é suposto levantar o rabo do conforto precário para pôr uma cruzinha num quadradinho.

Para quê?, perguntam os muitos que não vão votar, Não há ninguém que valha a pena!, exclamam aqueles que votam em branco, Nem sei bem, são todos tão iguais..., balbuciam os indecisos, VOTA NO MESMO QUE EU!!!, berra quem já escolheu partido e o vai defender com unhas e dentes.

E no fim o mais provável é que realmente fique tudo na mesma. A dicotomia PS-PSD (agora com uma indecente, desavergonhada e descarada contribuição do CDS) é a telenovela favorita dos portugueses, e uma que promete longevidade. E é um facto inegável que esta luta de poder é uma coisa entre centro e direita, com o PS já muito esquecido das suas raízes de esquerda e mais entregue às directivas europeias, que continuam a virar à direita, sem qualquer pudor.

A esquerda lá fica esquecida, renegada por um povo que deve a sua liberdade à coisa mais esquerdista de sempre: uma revolução militar pacífica para derrubar um governo quase abertamente fascista. Claro que a esquerda de antigamente não é a esquerda de hoje, embora andem aí a surgir algumas caras que se esforçam, mas dá que pensar.

Antes de avançar gostava de fazer a ressalva que aquilo que eu percebo de política advém de três fontes: as notícias que vejo ao jantar, livros de ficção (normalmente medievais), e humoristas como o Jon Stewart do The Daily Show e os Gato Fedorento, que parecem gostar mesmo dessa coisa de gozar com políticos.

Dito isso, acho triste que no meio deste aparato todo, as pessoas se vão esquecendo daquilo que deviam discutir: as ideias. Toda a gente fala da pizza do Sócrates, ou da mulher doente do Pedro Passos Coelho, ou de como a Catarina Martins é a única mulher candidata ao cargo e outras mil coisas, mas ninguém fala das ideias que estão por detrás desta gente todo.

Também toda a gente ignora a figura abjecta, labrega, descarada e completamente despropositada que é o Paulo Portas. A sério, estamos a falar de um tipo cuja contribuição para a história política do país é um conto de corrupção que termina em águas de bacalhau por obra e graça do espírito santo, e que num dos momentos mais críticos da nossa História promete instabilidade política se não o promoverem de Ministro duma porcaria qualquer a Vice-Primeiro-Ministro. O que é que ele queria, um gabinete maior? Um carro mais bonito?

A sério, digam-me qual é o trabalho dele? Acenar com a cabeça quando o primeiro-ministro fala? Servir como embaixador do poder em todas as feiras portuguesas possíveis e imaginárias? Se há tipo que me enerva no panorama político actual, é este. Nunca vi ninguém tão sedento de poder e tão explícito quanto a isso.

Não tenho ilusões, e sei que a maior parte dos políticos são exactamente assim, mas ao menos disfarçam um bocadinho. E sou perfeitamente capaz de conceder que para umas coisas precisamos de ideologias de direita e para outras precisamos de ideologias de esquerda. Nada contra. Eu também não vou dar consultas ao hospital, nem um médico vai tentar construir um electrocardiograma com o que quer que eu tenha ali na gaveta. Mas o Paulo Portas é a personagem manhosa da história, aquela pessoa que anda lá sempre, de sorriso em punho, sem qualquer vergonha quanto à sua inutilidade.

Ainda por cima isto é algo que funciona muito bem em democracia: diferentes opiniões e diferentes perspectivas a trabalharem em conjunto para um bem comum. É por isso que as decisões são tomadas no Parlamento, com representantes de todos os partidos. Ou pelo menos era isso que acontecia se estivessemos de facto a viver numa democracia. O que acontece é que o Parlamento não é mais do que um recreio gigante com 230 cadeiras para onde os partidos vão jogar Risk.

É por isso que é notícia quando há pessoas como a Mariana Mortágua, a Catarina Martins, a Heloísa Apolónia e outros tantos, que se levantam e fazem o que é suposto: argumenta, contra-argumentam, chamam imbecis e nomes vários a algumas pessoas, dizem o que têm a dizer, e depois sentam-se tranquilamente. Só que até isso é transformado num circo, e se querem provas basta relembrar o historial de insultos infantis e de infelizes demonstrações de imaturidade que se revelam no Parlamento.

Só que quer dizer, isto é pouco, não é? O desconhecimento das pessoas em geral deste tipo de coisas é assustador. A quantidade massiva de pessoas de todas as idades que não faz ideia do que raio se está a passar a nível político no país é mais do que preocupante. Não, não é só jovens, é mesmo gente de todas as idades. As massas são abanadas pelas demagogias dos partidos, que são cada vez mais descaradas, e optam pelas saídas fáceis: ficar em casa ou votar nos mesmos. Já que tanto faz, ao menos que seja um a quem eu já conheça as manhas, não é?

Não, não é. Mas eu nada sei disto, e pouco posso fazer para além de votar bem. O que é essa coisa de votar bem, que alguns partidos até usam como slogan para dizer que votem neles? Votar bem não é votar em A, B ou C, especificamente. Votar bem é não só votar, mas votar em consciência, para que os resultados sejam de facto representativos daquilo que Portugal quer, e não daquilo que 30% de Portugal quer.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Que as citações nos caiam em cima [65]


"Animals are what most call living creatures not outwardly capable of speech or mathematics."

The Jedi Path
Daniel Wallace

The Jedi Path


Autor: Daniel Wallace

Sinopse


Opinião: Este livro foi uma prenda de anos (em 2014)! E só pela edição vale a pena, garanto-vos: capa dura, com baixo-relevo pintado a prateado e com imitação de páginas antigas. Uma delícia de se ter na estante.


Mas é depois de o abrir que começa ficar verdadeiramente interessante. A primeira coisa que salta à vista é uma lista de donos do livro: Yoda, Thame Cerulian, Dooku, Qui-Gon Jinn, Obi-Wan Kenobi, Anakin Skywalker, Ahsoka Tano, Darth Sidious e Luke Skywalker.

Sim, eu sei que já passei a fase dura da adolescência, e que claramente não sou uma rapariga numa fila para o concerto - inserir moda musical idiota do momento -, mas acreditem quando vos digo que a minha mente fez a sua melhor imitação de uma a guinchar.

É o risco de se ser fã e, pior, um geek/nerd. Somos uma raça à parte que se alimenta destas coisas. E este livro, só por existir, pela edição, e por essa lista de donos, é um banquete. Depois começa a leitura e descobre-se que o que temos nas mãos é nada mais nada menos do que um guia para se ser um Jedi, anotado por todas aquelas personagens que foram donas do livro.


Enfim, o sonho de qualquer geek/nerd que se preze, diria eu. Mas tudo isto podia ser uma grande barracada: bastava o livro ser pouco mais que lixo numa capa bonita, ou não conseguir cumprir as altas expectativas que induz assim que se olha para ele. Mas o autor consegue dar a volta e escrever quase uma mini-enciclopédia dos Jedis, com toda a informação possível sobre as hierarquias existentes, os tipos de lightsabers, as várias técnicas e estilos de combate, enfim, quase tudo o que consigam imaginar.

A melhor parte, como é óbvio, são os comentários dos ficcionais donos do livro, muitas vezes em resposta uns aos outros. É possível em quase todos perceber a personalidade de cada personagem, o que é um pormenor fantástico, já para não falar de que muitos dos comentários adicionam informação de que tivemos conhecimento através dos filmes, fornecendo aquelas dicas das coisas na prática que emprestam realismo a este livro teórico.

No final é um bom livro, que dá para entreter, mas que só tem valor real para um grupo específico (ainda que cada vez maior) de pessoas.