Autor: Miguel Real
Opinião: Começo-me a sentir como aqueles professores que dizem "eu gostava era de vos dar boa nota a todos, ou melhor, nem sequer vos avaliava". É o que eu sinto com livros de autores portugueses. Como fã e defensor da nossa literatura, assim como aspirante a fazer parte dela, como podem comprovar amanhã, ou comprando o livro em pré-venda (é assim que se faz publicidade subtil, não é?), gostava mesmo que todos os livros de autores nacionais fossem espectaculares.
Infelizmente deparo-me frequentemente com desilusões, seja mais um livro incoerente do Gonçalo M. Tavares, ou um incompreensível tomo do David Soares, parece que nada se safa. Não é fácil encontrar algo agradável.
Foi com algum alento que ouvi falar de uma distopia portuguesa! Ligeira excitação que só durou até ver a capa e ler a sinopse. Calma que não é uma distopia, é uma utopia. E não é ficção científica, é um ensaio filosófico sob a forma de prosa de ficção.
A sensação imediata foi a de FC com vergonha de ser FC. Algumas páginas depois de começar a ler, a suspeita acentuou-se: isto é ficção científica com vergonha de o ser, por algum motivo. Não sei se puro marketing, se por vergonha intelectual de escrever num "género menor".
O Último Europeu conta a história de um futuro não tão distante quanto isso, em que supostamente tudo é fantástico. E quando digo tudo, quero dizer que a Europa está dividida entre tribos de bárbaros que aderem aos velhos costumes, e enormes conglomerados populacionais, chamados... Conglomerados, onde as pessoas são livres. Dentro de certos limites.
Nesta Nova Europa não há conflitos, nem insatisfação. Todos os habitantes dos Conglomerados têm um chip implantado no cérebro que lhes permite comunicar através do Grande Cérebro Electrónico, um computador central que domina toda a população. Toma as decisões pelas pessoas, ajuda a inibir as emoções e que simula a satisfação de um certo desejo/vontade, caso não possa ser realmente satisfeito.
Já não há comida, há pó alimentício, já não há pais, mães e filhos, mas sim crianças que nascem de forma artificial, a partir de material genético extraído dos cidadãos e combinado da melhor forma.
Também não há nomes, abolidos em nome (eheh) de um sentimento de comunidade. Tudo funciona às mil maravilhas e tudo é basicamente electrónico. Até ao dia em que os malvados chineses (a sério) os isolam das centrais geotérmicas que lhes dão toda a energia de que precisam. Uma civilização tão avançada que se esqueceu de ter mais do que uma tomada por perto, caso uma avarie.
É então que são lentamente invadidos pelos malditos chineses (a sério), que vaporizam pessoas com os seus raios lasers, lhes sugam as partículas e depois os enviam para o espaço, uma ideia que é muito repetida. A única solução para os Novos Europeus é fazerem um acordo com uma tribo de bárbaros europeus para que alguns consigam fugir e recomeçar.
Parece interessante? Isto é menos de metade do livro. O resto do tempo é dedicado às agruras de começar uma civilização do nada, recorrendo apenas a um grupo de pessoas maioritariamente inútil, de tão pouco que se fazia na Nova Europa.
Se a história já não me estava a convencer, ainda pior fiquei quando ouvi o autor falar, na sessão para a qual fui convidado pela biblioteca da minha escola. Começou logo bem, quando nos apresentaram um ao outro, no meu caso com a indicação "está a ler o seu livro tal e tal", que obteve como resposta, "estás a perceber aquilo? é a utopia-distopia, tens que perceber".
Certo. Ok.
Tudo piora quando lhe pergunto, durante os autógrafos, se rejeita o rótulo de FC. Nem me deixa acabar a pergunta "já tive esta discussão muitas vezes, durante muito tempo", óptimo, diga de sua justiça, "isto não é FC!". Mas... "não tem batalhas galácticas nem intrigas laboratoriais". Ah, agora tudo faz sentido, "não é tanto Clarke, ou Asimov, como Ballard", agora já não, "o que é que chamas ao 1984, do Orwell?", "bem, FC", "pois, não... não tem intrigas laboratoriais", "pronto, está bem, tenha um bom dia", "não fiques chateado, eu sei que quando somos novos não lidamos bem com estas coisas, mas um dia percebes."
Enfim, estão a ver a peça. Pretensiosismo mascarado de intelectualidade. FC é naves e vírus mortais, Orwell não é FC, provavelmente porque é literatura a sério, ou outra coisa do género, e eu sou demasiado novo para perceber estas coisas.
Escusado será dizer que, por muito boa vontade que eu tivesse, o resto da leitura teve direito a uma visão mais dura e mais crítica. E como resultado, não fiquei nada satisfeito. Numa história que usa (mal) conceitos e invenções tecnológicas e científicas para explorar vários aspectos da mente/vida/sociedade humana, de forma bastante óbvia e gritante, tenho que acreditar que isto não é FC, é uma dicotomia utopia-distopia que retrata um ponto de vista filosófico sobre a natureza do ser humano.
Poupem-me. Um dia ainda gostava de conversar com este senhor, para ele perceber bem o que é a FC. E para lhe dizer que este livro é aborrecido, desconexo, repetitivo e incoerente!
4 comentários:
curiosamente, já lhe expliquei o que era a FC, quando o morales me desafiou a ir falar com miúdos na lourinhã (eu era a segunda escolha, claro).
ah, e isto é o que acontece quando a malta mainstream se mete com a FC. pensam que sabem, mas não conhecem as estruturas e conceitos, e sai patetice desta: "Nesta Nova Europa não há conflitos, nem insatisfação. Todos os habitantes dos Conglomerados têm um chip implantado no cérebro que lhes permite comunicar através do Grande Cérebro Electrónico, um computador central que domina toda a população. "
Epah, vergonhoso... Ouvi-lo foi como ouvir o estereótipo do intelectualóide. Essa citação nem é das piores coisas!
Que mais há a dizer? Já a Atwood afirmava que os livros dela também não são FC, porque não teem polvos e foguetões...estamos feitos com esta gente.
Nunca vou perceber o medo e o desconhecimento intencional que as pessoas insistem em ter sobre FC e outros géneros que tais. Especialmente grave quando essas pessoas são escritores!
Enviar um comentário