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sábado, 15 de agosto de 2015

Presenças tangenciais

Ah, piadas matemáticas, são sempre tão... derivativas.

Há coisas na Literatura que me fascinam. Não falo apenas de uma escrita particularmente bonita, como a de Mia Couto, ou de histórias particularmente cativantes, como as Stephen King, nem sequer de livros tão próximos da perfeição que até metem medo, como muita coisa de Saramago, muita BD de Neil Gaiman e Alan Moore e O Conde de Monte Cristo. Falo de pormenores, muitas vezes técnicos, que me deixam rendido.

Por exemplo, quem ler histórias minhas rapidamente se apercebe de que gosto de narradores peculiares. É algo complicado de manipular, de um ponto de vista puramente técnico, mas que pode ter efeitos espectaculares.

Algo que cai nesta categoria é algo a que chamo presenças tangenciais. O nome é bastante auto-explicativo, mas estou a falar de personagens que são importantes, muitas vezes até fulcrais, para a história, mas que aparecem muito, ou muito de raspão. Tangencialmente.

Também não é fácil, em termos técnicos, e torna-se particularmente difícil de conseguir em termos narrativos. Como raio contar uma história em que uma personagem importante mal aparece?

Leia um dos vários livros em que isso acontece, para perceber. Que tal O Assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, que tem ao mesmo tempo um narrador interessante e um Poirot que mal aparece que mas que resolve o mistério (a autora deve ter escrito este livro a pensar em mim)? Todo o livro se lê como uma história normal de Poirot mas com o ponto de vista retirado a Poirot e ao seu fiel companheiro, Hastings, e entregue a uma das personagens secundárias.

É espectacular, e embora o ponto forte do livro seja o narrador e a revelação final (pois é, ainda por cima tem um plot twist de fazer corar muitos plots twists, obrigado Agatha Christie), esta presença tangencial de Poirot é importante para que o livro funcione.

O mesmo se podia de muitas das histórias da saga Sandman, de Neil Gaiman, em que Morpheus e Death, que me lembre, aparecem em várias histórias como personagens meramente tangenciais, completamente de raspão, mas acabam por ter um impacto enorme, como não podia deixar de ser. O segredo aqui é a arte de contar histórias de Gaiman, mas isso redundou nessas presenças tangenciais de duas das personagens mais importantes desse universo

De uma forma menos óbvia, podemos falar do que se passa em O Conde de Monte Cristo, livro imenso no qual o Conde de Monte Cristo do título é uma personagem tangencial durante muito tempo. A história do livro é a sua vingança, a sua vida é a motivação de tudo o que acontece, e todos os acontecimentos narrados são de alguma forma relevantes para ele ou por sua causa. E no entanto passamos longas páginas sem ter notícias dele, e quando aparece, muitas vezes disfarçado e com um nome e título diferentes, tem um papel secundário para a acção. Aqui foi novamente a mestria de Dumas que possibilitou esta presença tangencial, mas não deixa de ser impressionante a forma como o fez.

Mas querem dois exemplos a sério de personagens que praticamente não aparecem mas que são as mais importantes no meio daquilo tudo? Comecemos pelo Comediante de Watchmen, então, que morre nas primeiras páginas mas que tem um grande impacto em tudo o que se segue. Foi das coisas que mais me intrigou, quando li o livro, esta capacidade de não estar lá mas influenciar tudo, e é preciso abençoar Alan Moore pela capacidade que teve de fazer isto tão bem feita na brilhante desconstrução dos super-heróis que é esse livro.

O outro exemplo é parecido, mas ainda mais extremo: em Lágrima, o mais recente livro do meu primo André, há uma personagem tão tangencial que nunca chega a aparecer no livro. Os protagonistas são o pai e a mãe dessa personagem, um miúdo que morre antes dos acontecimentos narrados no livro. Mesmo assim, esse miúdo, ou mais propriamente, a sua morte, é o tema principal do livro em redor do qual tudo se desenvolve.

Também em leituras mais recentes, há uma personagem que me cativou e que teve o azar de cair numa série de livros que achei menos bem conseguidos, por um motivo ou por outro: Gued, o Gavião do Ciclo de Terramar, de Ursula K. Le Guin. Extraordinária feiticeiro, faz uma série de coisas para lá da compreensão humana e no fim mantém-se humilde e sábio como ninguém. O primeiro livro é do seu ponto de vista, e é claramente um protagonista muito presente, assim como no terceiro livro, mas a sua presença no segundo e no quarto livro é, durante muitas páginas, tangencial. E isso só faz dele mais interessante, pois adiciona mistério a uma personagem que podia ter sido muito banal.

Mas por falar em mistério, sabem onde é que estas presenças tangenciais caem muito bem? No género do terror e em vilões de uma forma geral. Veja-se quase tudo o que Lovecraft escreveu: o medo e as sensações de horror são transmitidas não pela presença, mas pela ausência. Como o próprio Lovecraft afirma, o medo mais antigo é o do desconhecido. É por isso que nos seus escritos são as sombras que dominam, e também aquilo que se consegue ver, mas não apreender.

Aliás, muito do horror é feito exactamente assim, através do desconhecido e muitas vezes através de personagens tangenciais. Como acontecem com Misery, de Stephen King, em que o protagonista ocupa sozinho uns 80% do livro, enquanto a sua enfermeira psicótica, a impulsionadora de tudo o que acontece, aparece de vez em quando, e quase sempre de raspão. Dá-lhe um ar mais instável e não nos deixa confiar naquilo que vemos: como é que podemos ficar a conhecer uma pessoa a vê-la durante cinco minutos de cada vez?

Tenho a certeza de que existem muitos mais exemplos, mas estes são só os que me lembro claramente, de olhar para a lista de livros que já li. Acho interessante, e é algo que ainda tenho que fazer com sucesso numa das minhas histórias, mas agora que já vos apresentei o conceito e alguns exemplos, lembra-se de mais algum caso? Seja para me relembrar, ou para me dar a conhecer, agradeço!

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Dream Country (Sandman #3)

Título: Dream Country
Argumento: Neil Gaiman
Arte: Kelley Jones, Charles Vess, Colleen Doran, Malcolm Jones III

Opinião: Dividido em histórias que passam por contos em formato BD, Dream Country é o terceiro volume da brilhante saga The Sandman, de Neil Gaiman.

Infelizmente não gostei tanto como dos outros dois. Mas mesmo assim foi uma leitura bastante agradável. Estranha, como não podia deixar de ser, com histórias bem estruturadas que apenas não se tornaram assim tão interessantes quanto isso.

Em todas elas, Morpheus, o Sandman, é apenas uma personagem secundária, na melhor das hipóteses. Ou pelo menos aparenta. Eu cá digo que ele aparece na mesma bem representado em todas, só que sem ser fisicamente. Afinal, ele é o senhor dos sonhos e, de certa forma, os sonhos assim. E estas histórias são todas mágicas, de alguma forma, não propriamente sonhadas, mas quase.

A primeira é Calliope, em que a musa da literatura é feita prisioneira por um escritor sem escrúpulos que a viola repetidamente para obter ideias para os seus livros, fazendo sucesso à sua custa. Com um ritmo lento e escondendo a personagem mais interessante (a musa) durante a maior parte do tempo, a história nada perde com isso. E a certa altura aparece o próprio Morpheus, chamado de Oneiros por Calliope, e a mostrar o seu lado mais frio e perigoso, muito perigoso...

De seguida vem A dream of a thousand cats, a primeira das histórias deste livro com uma estrutura deveras invulgar: é contada do ponto de vista de gatos. Neil Gaiman é de certeza uma cat person, porque embora sabendo o quão independentes e altivos são os felinos, a forma como aqui são retratados é mais humana que outra coisa. Temos direito a um Morpheus felino, também, e embora não tenha achado a história extremamente interessante, ganha uns pontos pelo ponto de vista peculiar e pela hipótese assustadora que apresenta.

A midsummer night's dream, a segunda história com uma estrutura invulgar, já não consegue ser tão interessante, apesar da ideia curiosa de basicamente ter, digamos, "pessoas" a assistirem a uma peça de teatro sobre eles próprios. As personagens não passam de "potencialmente interessantes", provavelmente por causa do fraco desenvolvimento. Além disso o entrelaçar da história com a peça de teatro não corre lá muito bem.

Por fim a minha história favorita, Façade, a mais estranha e que tem o bónus de ter a irmã de Morpheus, Death, na sua versão mais adorável. Estas poucas páginas lêem-se quase como um ensaio sobre a morte, tanto a definitiva como a que se processa enquanto estamos vivos e sozinhos, por uma razão ou por outra. Muito interessante, até pela forma como aborda a personagem principal, Element Girl, uma personagem obscura do mundo da DC.

Em suma, este é um livro interessante, mas não tão interessante quanto isso.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

The Doll's House (Sandman #2)

Título: The Doll's House
Argumento: Neil Gaiman
Arte: Mike Dringenberg, Malcolm Jones III, Chris Bachalo, Michael Zulli, Steve Parkhouse

Sinopse: Rose Walker finds more than she bargained for in The Doll's House - long lost relatives, a serial killers convention and, ultimately, her true identity. The master of dreams attempts to unravel the mystery, unaware that the hand of another, far closer to home, is pulling the strings.

Opinião: Muito bom. Não achei tão fantástico como o Preludes & Nocturnes, mas gostei bastante de qualquer forma.

Morpheus é uma personagem absolutamente fascinante, bastante poderosa e que transmite muito bem esse mesmo poder. Acho difícil não se ficar fascinado pela sua intensidade.

É agradável ter um pequeno sneak peak ao resto da família dos Endless, bem como a alguns episódios do passado de Morpheus, que desvendam mais pedaços do seu carácter.

O prólogo, da rainha Nada, é um bom começo, e faz depois uma boa ligação com o conteúdo do livro.

Os companheiros de casa de Rose (Hal, Barbie and Ken, Chantal e Zelda, e Gilbert) são todos bastante curiosos. Jed, o irmão de Rose, está envolto em mistério desde o início.

A fúria de Morpheus é assustadora. Os quatro sonhos perdidos (Brute e Glob, The Corinthian e Fiddler's Green) também são um aspecto curioso do livro.

As imagens fortes são já uma imagem de marca e sempre bastante marcantes e visualmente impressionantes. O breve interlúdio em que Morpheus visita o mesmo tipo, que se recusa a morrer, de 100 em 100 anos, diz mais sobre a personagem e a história do que aquilo que se poderia pensar.

A cereal convention é um nice touch, e uma das partes mais violentas e perturbadores do livro, até porque é um bocado inesperada.

O despertar do vórtex, com os sonhos estranhos dos companheiros de casa de Rose a juntarem-se e a misturarem-se é fascinante e poderoso!

A parte final é de certa forma mais etérea e terra a terra. Ver a raiva fria de Morpheus dirigida a Desire... Caraças. Aí está uma coisa à frente da qual não me quero meter de certeza.

Um bom livro, muito bom, até, mas falta-lhe qualquer coisa para chegar ao nível do primeiro.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Nocturnos (Sandman #1.2)

Título: Nocturnos

Argumento: Neil Gaiman
Desenho: Sam Kieth, Mike Dringenberg e Malcolm Jones III
Cor: Robbie Busch
Tradução: Pedro Vieira de Moura

Sinopse: Sandman: Nocturnos prossegue a saga de Morfeu, o Senhor dos Sonhos, em busca dos atributos que lhe permitirão restaurar o seu poder, ao mesmo tempo que se dá a conhecer ao leitor outro membro da família dos Eternos, a Morte.

Opinião: Gaiman consegue, mais uma vez, escrever uma BD fantástica, com uma arte irrepreensível, especialmente as cores (again!), da parte de Sam Kieth, Mike Dringenberg, Malcolm Jones III e Robbie Busch.

A busca de Morfeu continua, desta vez pelo seu rubi, detido por um tal de Doutor Destino, vilão clássico da DC e visto duma perspectiva bastante interessante e tenebrosa, com direito a 2 capítulos verdadeiramente excepcionais.


O capítulo em que se fecha num café com quem lá está, e usa os poderes do rubi para controlar tudo o que lá se passa, roça o genial.

Assustador e com momentos verdadeiramente psicadélicos e violentos, esse capítulo tem algumas das melhores páginas de BD que já me passaram pelas mãos, com a brutalidade a escalar e a surpreender-me a cada virar de página.

E isso foi, se não superado, pelo menos igualado, com o capítulo seguinte, em que Morfeu luta com Destino no Reino dos Sonhos, para reaver o rubi. As ilusões do vilão, os seus sonhos, os seus pesadelos, os seus desejos, tudo isso faz deste capítulo outro grande momento do livro.

Depois o capítulo final introduz a Morte, a irmã mais velha de Morfeu e outra dos Eternos. Morte é uma personagem caricata, tem o aspecto de uma jovem mulher, de pele pálida e cabelos negros, como os olhos, à semelhança de Morfeu, e transmite a mesma aura de mistério e poder que o irmão.

No entanto é muito diferente do Senhor dos Sonhos. Enquanto este é calmo e melancólico, paciente até, Morte é impulsiva e perde as estribeiras com facilidade. E como se isso não fosse suficiente, parece perfeitamente capaz de oscilar rapidamente entre essa personalidade explosiva e uma personalidade mais como a do seu irmão, mais calma e assertiva.

Suponho que isto reflicta as naturezas daquilo que representam: Morfeu tem um carácter etéreo, claramente não pertence ao nosso plano de realidade. É calmo, ponderado e sábio, ao mesmo tempo que é aterrador. Como os sonhos e os pesadelos.

Já a Morte é como a morte, ora repentina e demasiado rápida, ou lenta e ponderada, mas sempre fria, distante e dolorosa para alguém.

Neil Gaiman consegue assim construir duas personagens muito interessantes, que se juntam ao resto das personagens que têm aparecido ao longo destas páginas, algumas criadas outras emprestadas, mas todas bem aproveitadas.

E o resultado de misturar essas personagens com a sua história fantástica, e com a arte fabulosa daquela equipa de artistas ali em cima, é um livro excepcional.

domingo, 7 de julho de 2013

Que as Citações nos Caiam em Cima [35]


"Dizes que não tenho poder aqui? Talvez seja verdade... Mas que os sonhos não o têm? Então diz-me, Estrela da Manhã... Perguntem-se todos vós... Que poder teria o Inferno se aqueles que aqui são prisioneiros não pudessem sonhar com o Paraíso?"

Morfeu em Prelúdios
Neil Gaiman

sábado, 6 de julho de 2013

Prelúdios (Sandman #1.1)

Título: Prelúdios

Argumento: Neil Gaiman
Desenho: Sam Kieth e Mike Dringenberg
Cor: Robbie Busch
Tradução: Pedro Vieira de Moura

Sinopse: Sandman: Prelúdios introduz os leitores no universo misterioso e mágico de sonhos e pesadelos que é o domínio de Sandman, Senhor dos Sonhos, e dos restantes Eternos.

Opinião: Digo-vos, bastaram algumas páginas para ficar rendido. Gaiman conseguiu criar uma história interessante, aproveitando o Universo dos super-heróis da DC, uma história estranha, ainda por cima.

Os heróis e vilões pouco ou nada aparecem, tendo apenas papéis menores ou aparecendo só de raspão, mas há excepções, como John Constantine, que tem um papel mais preponderante.

Mas concentremo-nos no protagonista, Morfeu, o Rei dos Sonhos, capturado e mantido cativo durante décadas, sem dizer uma palavra que fosse até chegar a altura certa. O objectivo era capturar a sua irmã, a Morte, mas o ritual falhou por algum motivo e os mágicos humanos ficaram o Sonho aprisionado numa grande redoma de vidro.

Tiraram-lhe os seus artefactos (o elmo, o saco de areia, e o rubi), e Morfeu parte em busca desses artefactos, quando se vê livre. Interage com humanos, nomeadamente com Constantine, e vai até ao Inferno para recuperar as suas coisas, sempre a emanar uma aura de mistério e de poder que apenas cresce à medida que o tempo passa.

Essa sensação de poder calmo é aumentada quando consegue parar uma horda inteira de demónios só com algumas palavras. Não houve magia, nem qualquer truque ou luta. Limitou-se a falar. Morfeu tem um poder que transcende as suas habilidades sobrenaturais, um poder inato e um carisma poderoso. É um dos Eternos, seres praticamente omnipotentes, e isso nota-se bem.

No entanto o que mais me fascinou não foi a personagem, o ambiente, o mundo ou a história. Nada disso. Aquilo que me deixou realmente impressionado foi a arte. Os desenhos encaixam muito bem na história, e as cores são surpreendentemente vivas e vibrantes.

Com uma história de carácter negro, e personagens que, pelo menos na maior do tempo, ainda são mais negras, estranhei bastante a vida que as cores transmitiam. Eram vibrantes e diversas, um mundo colorido a partir de uma larga palete de cores intensas, e não de cores escuras nem à volta dos cinzentos e dos pretos, como podia ser de esperar.

Só por isso o livro já era capaz de levar quase a nota máxima, e depois ainda se tem em conta a história interessante, as personagens curiosas, como Morfeu, Abel, Caim, Constantine, o Triunvirato que governa o Inferno (ideia genial) e outras que tais, e o resultado é uma nota máxima bem esgalhada.

E se ignorarmos tudo e nos focarmos apenas na história e no enredo, aquilo que encontramos é terror, mistério, humor leve e humor negro, coisas estranhas, desenvolvimentos inesperados e um enredo cativante, de uma forma geral.

No fundo, uma boa introdução à saga de Sandman, um óptimo livro que serve de facto como prelúdio: prepara a história, dá alguns desenvolvimentos e ajuda a assentar o ambiente, negro e ao mesmo tempo estranhamente colorido.