Título: As Intermitências da Morte
Autor: José Saramago
Sinopse: "No dia seguinte ninguém morre." Assim começa este romance de José Saramago. Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.
Opinião: Saramago não pára de me surpreender. A cada livro que leio descubro particularidades novas, e apesar de este ser apenas o terceiro livro que leio dele (e todos este ano!), acho que já tenho o direito a afirmar que Saramago é dos meus autores favoritos.
Nesta obra são visíveis todas as marcas (acho eu), da típica escrita saramaguiana: o estilo oralizante, a pontuação pouco ortodoxa, os apartes, os diálogos "corridos"... Enfim, tudo aquilo que é diferente em Saramago e que tanto contribui para o reconhecimento que tem, tanto a nível nacional como a nível mundial.
E esta história é particularmente... Nem sei, fascinante? Bizarra? Mesmo ao meu gosto? Um bocado de tudo isso e muito mais, suponho. Ao contrário do Evangelho e do Memorial, autênticos romances históricos especulativos com um pendor de realismo mágico (especialmente o Memorial), este livro é um tipo de livro bem diferente. Não é propriamente uma alegoria, talvez seja mais uma fábula... É um estilo muito próprio do autor, que consegue misturar vários tipos de histórias e de formas de as contar, baralhando e misturando e criando coisas novas a cada linha que passa.
Neste caso trata-se de uma história que se inicia de forma abrupta, como me parece ser costume nos livros de Saramago, com uma frase bastante simples, mas que acarreta as mais variadas implicações: "No dia seguinte ninguém morreu.". A partir deste momento, e numa primeira parte, o autor escreveu quase que um ensaio especulativo, em que imagina um acontecimento e desenvolve as consequências dessa situação, num país sem nome, com personagens sem nome, o que acaba por universalizar a história, não ocorrendo em nenhum sítio em especial, com nenhuma população em particular, mas sim em todos os sítios e com todas as populações. As Intermitências da Morte, enquanto livro, é, nesse aspecto, bastante abstracto.
Numa segunda parte, a morte decide dar uma reviravolta ao assunto, assumindo publicamente, através de uma carta, que aquele interregno de mortes tinha sido uma mera experiência que não tinha corrido bem e que, portanto, iria voltar ao sistema antigo, embora com algumas alterações. Novamente o autor desenvolve as consequências desta mudança, a todos os níveis, do Clero ao povo, incluindo as casas mortuárias, os hospitais, os lares de idosos, a máphia (com ph sim senhor)... E depois, por fim, uma terceira parte, final, em que a morte enfrenta uma situação bizarra que vai ter que resolver, acabando por haver uma reviravolta final deveras emocionante.
Nas duas primeiras partes, como não podia deixar de ser, o autor desenvolve toda a sua crítica, ironia e o seu humor mordaz, espingardando para todos os lados, atingindo todas as camadas da sociedade e revelando aquilo que há de pior (e, em casos excepcionais, de melhor) em todos os grupos sociais. Na terceira parte já há uma narrativa mais típica, com personagens, ainda sem nome, a morte, com letra minúscula, sempre, e o violoncelista. Bem, talvez a morte seja a única personagem com nome, mas ela própria assume que esse é apenas o nome pelo qual é conhecida, não sendo exactamente o seu nome.
Gostei muito, como é óbvio. As críticas de Saramago são sempre certeiras, acertando em cheio na ferida, esfregando-lhe sal e despejando-lhe álcool em cima, de tal forma que é quase doloroso assistir à desconstrução sistemática das convenções sociais, revelando aquilo que cada uma tem de mais podre. Perdoem-me as analogias demasiado prosaicas, como diria a minha professora de português deste ano, mas esta é a única forma de falar de um autor como este, que se cria enquanto narrador fora do normal, sem medo de dizer as coisas e de acusar quem merece ser acusado, nesta história que começa como crítica mais do que certeira e acaba surpreendentemente doce, com a humanização da morte e revelando, pouco a pouco, a sua necessidade de se sentir amada, até humana.
Aconselho e digo mais, como já disse a Alice, não ler Saramago é crime.