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sábado, 27 de junho de 2015

Estantes Emprestadas [18] - Literatura e Cinema


Caríssimos, apresento-vos um inédito na minha "carreira" por este mundo dos blogs: uma professora minha do Secundário escreveu uma crónica para esta rubrica! Isto é um marco! Uma vitória! Ainda por cima foi uma das minhas professoras favoritas, Maria de Lurdes Sanches, professora de Português, aturou-me no meu 12º ano e tivemos variadas e produtivas discussões, invariavelmente sobre Pessoa e/ou Saramago. Foi uma excelente professora, que sempre teve mais interesse em cativar a turma para os assuntos do que propriamente em debitar matéria e análises pré-feitas. Preferia que discutíssemos, mesmo que fossem sempre os mesmos, sempre com as mesmas conversas ("a poesia do Pessoa não presta, outro tipo qualquer que escrevesse aquilo não era levado a sério, Saramago é que era, bla bla bla", conseguem adivinhar quem era o chato?)

E pronto, desafiei-a a escrever sobre cinema. Podem ver o resultado ali em baixo: uma cróinca curta, mas interessante, que mostra bem o que é gostar de Cinema, e como é que se lida com as adaptações que se fazem de livros. À professora, muito obrigado (embora eu já soubesse que me ia encher o texto de Pessoa, e por isso ainda me vingarei de alguma forma)!!

“Cuidado, Macacoi, que o gajo 'tá na esquina!”, gritava Sagui, em Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, numa passagem deliciosa de um dos livros que marcou a minha adolescência. E ainda hoje, embrenhada na leitura ou perdida no enredo de um filme, me apetece imitá-lo e avisar os meus heróis do perigo iminente. E é isto a literatura ou o cinema: o transporte para um mundo mágico em que deixamos o que somos atrás da capa ou do grande écran.

Desde que o cinema nasceu, enquanto a Sétima Arte que se juntou às outras “clássicas” seis, o seu caminho foi feito a par dos livros e da escrita revelando um outro olhar ou ficando perto ou alterando o original ou até decepcionando-nos quando nos adultera a nossa impressão de leitor. Ora, creio que o cinema tem mesmo que recriar, que nos alterar a história que tínhamos arrumada e arranjadinha na memória, que fazer jus ao célebre verso “Sentir, sinta quem lê!” que, neste caso, será quem realiza. Confesso que nem sempre é fácil assistir à destruição - ou ao que julgamos ser uma destruição - de uma obra que consideramos intocável. Foi o caso do filme “Amor nos Tempos de Cólera”, de Mike Newell, adaptação de um dos livros da minha vida, perante a qual me senti revoltada ao ver o meu Gabriel reduzido a uns diálogos dignos da pior telenovela mexicana. É que nem a presença de Javier Bardem me aplacou a ira! Mas acredito que terá agradado a muitos e terá levado alguns à descoberta de um autor e originou, certamente, muitas discussões. Porque, indiscutivelmente, livros e fitas são socializadores.

No contexto português, temos inúmeros casos de adaptações de obras de vulto da nossa literatura tanto por realizadores portugueses como estrangeiros, como “Amor de Perdição”, com a primeira adaptação ainda em filme mudo por um realizador estrangeiro, e, mais tarde, por Manoel de Oliveira. Eis um caso singular: um Camilo em registo alucinante, a deixar o leitor cansado de tanto correr atrás daquelas personagens envolvidas constantemente em peripécias, adaptado com a técnica do nosso querido Manoel em planos fixos, de câmara imóvel e em cenários quase exclusivamente interiores. Aqui, ao contrário do exemplo que dei atrás, impera a palavra, ao invés da acção rápida, sobressai o interior das personagens que se mantém as de Camilo. Um outro olhar, portanto. E válido!

Mais recentemente, “O Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa, e “Os Maias”, de Eça de Queiroz, foram sucessos de João Botelho. Em ambos os casos, há uma fidelidade distante às obras. Pelo menos, foi o que eu senti enquanto leitora e espectadora. Se, por um lado, respiramos Pessoa e Eça, por outro, é muito forte a presença da recriação do realizador tanto nos cenários, surpreendentes nos dois filmes, como na opção de fazer sobressair apenas alguns aspectos das duas obras literárias. E não podemos esquecer o “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, adaptado e realizado por Fernando Meirelles, brasileiro, e que contou com um elenco internacional. Poderia continuar a dar aqui exemplos deste permanente diálogo entre a escrita e a imagem mas, por agora, apetece-me ir ver um filme, ler um livro ou ambas as coisas.

Literatura e Cinema: uma forma de arte a proporcionar uma outra e que sorte temos por podermos sentir lendo ou vendo… Mas adoptemos a atitude do Sagui e gritemos aos nossos heróis “Cuidado, Macacoi, que o gajo 'tá na esquina!”

sábado, 30 de maio de 2015

Estantes Emprestadas [17] - "Comunicado"


A crónica deste mês é especial. Talvez seja melhor descrevê-la como peculiar, já que desafiei, nem mais nem menos, do que a malta da Imaginauta, chefiada pelo Carlos Silva e o Vítor Frazão. Por entre várias iniciativas, o objectivo deles é estimular a escrita e a leitura de ficção especulativa. Por cá tenho tentado ajudar, com divulgação em primeira mão de sinopses do livro que depois comprei e li, Comandante Serralves: Despojos de Guerra, que tem contos muito bons e cria um universo partilhado muito interessante; e com a participação na iniciativa natalícia Operação Livros no Sapatinho, que teve direito não a uma, não a duas, mas a três respostas! Isto para além da divulgação que vou fazendo das suas várias iniciativas. Eu bem tento, que se há projecto que merece, é este!

Por agora fiquem com a minha parte do desafio, que esforcei-me. A resposta há-de surgir nas proximidades.



*início de gravação*

Está a gravar? Isto está... Raios parta a gerigonça, está ou não? Onde é que eu meti as instruções... Hum... Aqui... Deixa ver. Carregar aqui, ali, já está, se estiver a luz acesa, está a gravar. Ah!

Desculpe lá isto, mas ainda não me entendo com o hologravador Bem, não interessa. Estou-lhe a enviar esta mensagem porque hoje apareceu um sujeito na minha banca a vender-me uns livros que achei muito estranhos. Aliás, o sujeito também era bastante estranho, e nunca sequer o tinha visto por estas bandas.

Comprei os livros para os manter debaixo de olho, mas ele ainda me disse que depois me arranjava mais. Antes de lhe conseguir perguntar alguma, desapareceu. Esteve o tempo todo com um capacete que não deixava ver-lhe a cara e que devia ter um modulador de voz.

Mas pronto, vamos ao que interessa. Já enviei os livros para o seu gabinete pelo comutador quântico que mandou instalar aqui no meu armazém. De qualquer forma, são os seguintes. "Intermitências da Morte", de um José Saramago, tem um aspecto muito estranho, muito simples, sem grandes desenhos, e pelo que folheei, parece ter texto muito denso.

Há também um muito, muito estranho, um "Terrarium", de João Barreiros e Luís Filipe Silva. Nem sequer percebo como podem duas pessoas escrever o mesmo livro, na altura em que isto foi publicado ainda não existiam osciladores de matéria... Mesmo agora, para fazer alguma coisa assim era preciso ser-se um génio!

O último é o mais chocante. "V de Vingança", de Alan Moore, quase não tem texto. Está é recheado de imagens. Para lhe ser sincero, este assustou-me mais do que os outros. Ainda se as folhas fossem ecrãs orgânicos ultra-finos, mas não, são só imagens estáticas. Nem lhe mexi mais.

Aquilo que acho mais estranho é estarem imaculados, apesar de terem séculos de idade. Por favor diga-me como proceder.

E agora onde é que se desliga isto? Hum... Deve ser aq...


*fim de gravação*

http://imaginauta.net/

sábado, 2 de maio de 2015

Da cegueira à lucidez - o que Saramago viu e o que gostava de ter visto


Esta não é uma crónica fácil. Já há muito tempo que a tenho na ideia, mas tem-me assustado um pouco a noção de analisar dois livros de Saramago ao mesmo tempo. Chamem-lhe o que quiserem, mas mesmo para mim, com centenas e centenas de opiniões já escritas nos últimos seis anos, ainda encaro um livro de Saramago como algo complicado de descrever. Quanto mais dois.

Mas esta é também uma crónica que precisa de ser escrita. Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, tinha ficado com isso na cabeça, mas agora que também já li o Ensaio sobre a Lucidez, tenho a certeza.

Os títulos são a primeira ligação. Quem conhecer minimamente Saramago e a sua obra sabe que raramente deixa alguma coisa ao acaso. É até bastante meticuloso, e tudo dentro de um livro contribui para a mensagem que quer passar e para a história que quer contar. Esta semelhança de títulos é claramente intencional, especialmente com uma escolha tão cuidadosa de palavras: "cegueira" e "lucidez", opostos simbólicos.

A intriga adensa-se quando se conhecem as premissas dos dois livros. No primeiro há uma súbita cegueira branca que atinge, aparentemente, toda a gente menos uma mulher. No segundo há uma súbita lucidez branca, sob a forma de uma quantidade massiva de votos em branco, que ameaça quebrar o sistema político vigente.

Interessante, não? Então e quando se avança na leitura de Lucidez e se percebe que a cidade atingida pela votação em massa dos brancosos, como são chamados, é a capital do país atingido pela epidemia branca em Cegueira? Ou quando as personagens deste começam a surgir naquele?

E há mais a dizer sobre os títulos. Estamos a falar de obras de ficção que se chama "Ensaio sobre...". Nome mais óbvio para dar a um par de alegorias, só chamar-lhes "Alegorias sobre...". Porque é disso que se trata: estes dois Ensaios são um par complementar de alegorias que revelam muito sobre aquilo que o autor pensava, o é habitual em todos os seus livros, mas especialmente marcante nestes, de tão directo.

A parte óbvia desta análise é ver em Ensaio sobre a Cegueira uma crítica à nossa sociedade, com tantos problemas que quando atacada em massa por uma epidemia inexplicável de cegueira branca, rapidamente degenera numa autêntica distopia horrível e perturbadora; e em Ensaio sobre a Lucidez uma outra crítica, desta vez mais dirigida ao nosso sistema político, com tantos problemas quando atacado em massa por uma epidemia inexplicável de votos brancos, rapidamente degenera numa autêntica distopia incompetente e desesperada.

Dá para ver as semelhanças. E também é fácil de ver um ponto essencial, a questão da escala. Saramago descreveu um país inteiro a cegar, mas apenas uma cidade a ficar lúcida. É curioso que esta mensagem, uma das mais poderosas destes dois livros, tenha ecos tão parecidos com a mensagem religiosa, demasiado simplista, de que o mal é fácil, mas o bem dá trabalho. É mais fácil um país inteiro cegar e degenerar, do que uma cidade erguer a voz contra o governo. O que também se nota no facto de haver uma única pessoa a não cegar, mas serem vários os habitantes da cidade que não votam em branco.

Também a rapidez dos conflitos é completamente diferente. Em Ensaio sobre a Cegueira bastam algumas dezenas de páginas para tudo começar a descambar, enquanto que em Ensaio sobre a Lucidez só mais perto do meio do livro é que tudo começa realmente a ficar mais sério. Mais uma vez a questão da facilidade do bem e do mal, ainda que não sejam propriamente estes os dois lados da questão.

Mas tirando o óbvio, o que mais há para ver? Bem, pouca coisa. Ou melhor, alguma, mas nem óbvia nem subtil, são os pormenores. Se há pecado a apontar a estes livros é que são tremendamente óbvios, como as alegorias normalmente são, e embora exista sempre alguma coisa mais do que aquilo que transparece de imediato, as grandes mensagens passam sem problemas. São os pormenores, uma especialidade de Saramago, que contam o resto da história.

Por exemplo, em ambos os livros acompanhamos a história do ponto de vista de uma ou mais pessoas que não foram afectadas pela epidemia. Num livro, esse ponto de vista é apenas o da mulher do médico, a única pessoa a ver naquela terra de cegos, no outro multiplica-se por mais personagens, mas todas a terem em comum o facto de não terem votado em branco (ou pelo menos isso não fica explícito).

Isto permite uma visão muito mais crítica dos acontecimentos, já que, por exemplo, os cegos vivem num mundo branco, dominado pelos cheiros, pelos sons e pelo tacto, e acabam por perder a noção das coisas. O dia passa a ser barulho e a noite, silêncio. Perdem-se os nomes e ganham-se alcunhas. O conjunto de cegos que acompanhamos até ganha uma nova percepção do mundo, que passa a ser confinado às paredes do manicómio abandonado e vigiado por soldados.

Por outro lado, os brancosos parece que tiveram uma epifania e conseguem ver o mundo através de outros olhos, agindo de forma muito mais racional, afável e bem-intencionada. Ignoram largamente o governo e os problemas do país, para se focarem nas suas próprias vidas e no bem-estar de quem os rodeia.

O que a mulher do médico nos mostra é que os cegos vivem numa estranha ilusão de normalidade à qual rapidamente se adaptaram, um mundo estragado para pessoas estragadas, enquanto os protagonistas de Lucidez nos deixam ter a percepção de como os brancosos são artificiais, quase irreais, tão chocantes para uma sociedade normal como um cego a defecar num corredor dum manicómio o é para uma mulher que vê.

E isto rapidamente nos leva a outra coisa. Os cegos são quase opressivos, sempre presentes, constantemente à volta da mulher do médico, a pessoa cujos olhos usamos para ver aquela história, mas os brancosos são sempre pessoas de quem se fala, mas que nunca se conhecem. Vemo-los à distância, ouvimos falar sobre o que fizeram, mas pouco mais.

Quase como se os cegos fossem uma realidade e os brancosos um sonho.

Podem agora perceber o título desta crónica. Os cegos são uma realidade, aquela que Saramago viu na nossa sociedade, com tudo o que possam imaginar de errado. As mortes, a violência, a sujidade, a cegueira são bem reais, mesmo que mais metafóricas do literais. Já os brancosos são de facto um sonho, aquele que Saramago gostava de ter visto concretizado, uma sociedade com consciência, benevolente, que luta contra o que acha errado. Essa lucidez é tudo menos real.

No fundo estou aqui a falar de dois livros que jogam um com o outro como dois lados do mesmo argumento de que algo de errado se passa. O segundo Ensaio, o da lucidez, funciona quase como uma resposta ao primeiro, como se Saramago dissesse a si próprio "vês, há esperança, a mudança é possível, não temos de viver num mundo de cegos". Mas é também uma consequência, algo que só acontece depois da cegueira, uma linha de raciocínio muito comum em Saramago.

Só que vendo assim as coisas é impossível não nos sentirmos desalentados. O próprio Saramago parece ter noção de que as coisas não são propriamente lineares. A cegueira desaparece de forma tão inexplicável como surgiu, deixando uma esperança que se estendeu para o outro livro, mas os brancosos são violentamente reprimidos, e até esquecidos, com a luta a mudar-se para o bode expiatório, figura central de ambos os livros, a mulher do médico. Tudo a culminar num final violento e inesperado para esta peculiar duologia. Um final que, muito sinceramente, me chocou e mudou completamente a visão que estava a ter das coisas.

Podia ainda dizer muito mais sobre estes dois livros, arrepiantes e intensos como são, mesmo que de formas completamente diferentes. Mas acho que podia escrever vários textos a analisar livros de Saramago e fazer disso vida. Goste-se ou não do homem, ele era uma pessoa e um escritor tremendamente inteligente, capaz de escrever obras marcantes a vários níveis, com várias mensagens, sem nunca perder o fio à meada e sempre capaz de misturar essa vertente com uma sensação pura de contador de histórias.

Um escritor impressionante, sem dúvida, e esta duologia, vista como unidade, é Saramago no seu melhor. Um lúcido em terra de cegos.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Ensaio sobre a Lucidez



Autor: José Saramago


Opinião: As expectativas para este livro eram elevadíssimas. Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, e ter adorado da forma que adorei, não podia ser de outra forma. Infelizmente este segundo Ensaio não cumpre, em parte pela simples razão de que estava à espera de demasiado deste livro.

No entanto não foi só isso. Acho que este livro este realmente abaixo da qualidade que Saramago costuma ter. Atenção, o livro é bom, até muito bom, mas não é genial. Não está tão bem construído nem explora tão boa ideia de base.

Em termos gerais, e demasiado simplistas, este livro é uma grande paródia/crítica/sátira (todas as variantes têm o seu momento) à burocracia e aos salamaleques políticos do mundo em que vivemos. Basta ler as descrições das reuniões entre ministros, com diálogos enormes e praticamente vazios de conteúdo, para se perceber como é que esse mundo funciona.

Aliás, o próprio narrador tem um certo exagero da eloquência, narrando a história com frases muito compridas e complexas mas que não dizem assim tanto quanto isso. É fantástico, porque não é aborrecido, e tem um objectivo muito bem definido, que é cumprido. Se há algo que não se pode apontar a José Saramago, é que escrevesse mal.

A situação que representa, no entanto, podia ter sido mais desenvolvida. Ou melhor, podia ter sido explorada de forma mais directa. É uma premissa fantástica, ter uma eleição, de repente, em que setenta por cento das pessoas vota em branco, fazer nova eleição e ver essa percentagem subir para os oitenta e três. Oitenta e três por cento de votos em branco! Sabem o que isto é?

Uma rebelião! Uma a sério, bem feita, como deve ser. Não são pessoas que fazem greve todos os dias (válido, mas pouco eficaz e até contra-produtivo), ou que se queixam de como recebem pouco e têm demasiado trabalho enquanto fazem horas extra, sem serem pagas, de livre e espontânea vontade.

É sempre mais complicado do que aquilo que eu acabei de dizer, mas o relevante é que Saramago apresenta aqui uma cidade que decide usar o sistema para lutar contra o sistema. E funciona! É até extremamente eficaz.

O governo, organizado e completo controlo do país, fica de repente completamente paralisado pelos acontecimentos. Embora uma quantidade massiva de votos brancos seja algo efectivamente possível e abrangido pelo sistema, este não está minimamente preparado para lidar com a situação. A única coisa que o governo consegue fazer, numa série de acções mais ou menos directas que se estendem até ao final do livro, é provar que "democracia" é apenas um nome bonito e essencialmente demagógico.

Qual é a reacção? Isolar a cidade, retirar o governo e todas as forças de segurança, tirar-lhe o estatuto de capital do país, infiltrar agentes com o objectivo de descobrir o foco do problema e organizar uma série de investidas ideológicas agressivas para reformatar as pessoas. Tudo serve, incluindo arranjar um bode expiatório insuspeito, ainda que bastante conveniente.

Inacreditável? Sim. Faz sentido? Também. O que é que se faz quando uma ferida gangrena? Tenta-se parar o progresso do problema e, em último caso, corta-se o braço, ou o perna. Neste Ensaio sobre a Lucidez, Saramago descreve essencialmente isso. A máquina bem oleada, mas negligente, que é o governo, encontra um percalço e entra em pânico. Isola o problema. Tenta acabar com ele. Simples.

Já se poderiam tirar muitas considerações só com isto, especialmente em termos políticos, mas não acho que sejam muito relevantes. Quer dizer, é fácil de perceber que o autor diz que "democracia" é um conceito abstracto que apenas serve como aperitivo para as pessoas. "Democracia? Isso é aquilo da liberdade, quero disso!", quando a realidade é muito mais complicada do que isso.

Mas depois o livro não leva esta exploração às últimas consequências, acabando por se perder no envolvimento com o Ensaio sobre a Cegueira, que surge muito cedo, de forma muito subtil. As comparações entre ambos, ainda que relevantes, não eram o ponto mais importante a transmitir neste livro. Há ali muito potencial para falar de tanta coisa... E Saramago acaba por se restringir a algumas coisas específicas, sem se estender como habitualmente se estende.

Não deixam de ser comparações interessantes. As próprias personagens as fazem, ao dizerem que esta onda de votos em brancos é também uma forma de cegueira, ainda por cima branca, como a anterior. Estão certos, mas não da forma que pensam. As cegueiras têm um pormenor que as torna bastante diferentes: enquanto que a primeira fez com que as pessoas passassem a "ver melhor" as coisas, a segunda é por causa das pessoas "verem melhor" as coisas.

É complicado. Mas enquanto o Ensaio sobre a Cegueira é óbvio e explícito, o Ensaio sobre a Lucidez é subtil e abstracto. Acho que funcionam muito bem os dois enquanto unidade, embora haja um claramente melhor do que o outro.

O final é extraordinário! Ou melhor, a parte final. Extremamente intenso e inesperado. Fiquei honestamente chocado com algumas coisas. E embora não seja o melhor que Saramago alguma vez escreveu, é sem dúvida um excelente livro!

sábado, 9 de agosto de 2014

Blindness



Argumento: Don McKellar
Director: Fernando Meirelles
Principais actores: Julianne Moore, Mark Rufallo, Daniel Glover, Alice Braga e Gael García Bernal

Opinião: Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, é óbvio que era apenas uma questão de tempo até ver este filme. A literatura portuguesa costuma ter fama de não ser filmável, e este livro em particular era o campeão desse adjectivo. Os livros de Saramago não são fáceis de ler, quanto mais de adaptar!

A minha curiosidade era imensa. Seria possível? Seria realmente possível? Eu estava optimista, pois lembrava-me sempre da notícia em que Saramago assistia ao filme e chorava no fim. Ele era um homem difícil de agradar, e um escritor bastante orgulhoso da sua obra, portanto isso só podia ser bom sinal.

Não me enganei. Ainda com o livro fresco na memória, aquilo a que assisti foi a uma das melhores adaptações cinematográficas de livros que conheço. Enquanto adaptação está ao nível de O Perfume, baseado na obra de Patrick Süskind, e na trilogia de O Senhor dos Anéis, baseado na obra de Tolkien. Enquanto filme, no entanto, é bastante superior ao primeiro, ainda que não chegue aos calcanhares do épico de Middle-Earth.


O começo é igualzinho. Bom presságio! Todos os pormenores batem certo, uma tendência que se verifica durante o resto do filme, desde a angústia do primeiro cego ao não conseguir ver o semáforo, até ao acto reflexo de espreitar pelo buraco da porta.

Houve uma coisa que não percebi muito bem, e que não sei se hei-de louvar ou não. O primeiro cego e a mulher são asiáticos, e há algumas personagens negras e latinas, sem que no livro haja qualquer indicação disso. Uma tentativa de introduzir diversidade cultural? É verdade que adiciona uma questão racial à premissa, já de si complexa e com várias camadas, mas não me parece muito necessário.

Mas o resto é impecável: Mark Rufallo, mais conhecido ultimamente pelo seu papel de Hulk, está fantástico como o médico, e Julianne Moore, como mulher do médico, começou por não me agradar, mas é só nas primeiras cenas, em que tem um ar mais estouvado e fútil do que devia. Melhora ao longo do filme e rapidamente é a mulher fria e implacável do livro.


A consistência do filme é tremenda, não há momentos mortos nem desvios narrativos, há uma história para contar, uma grande alegoria executada com mestria, apoiada na excelente matéria prima que é a obra de Saramago.

Os momentos esporádicos de puro brilhantismo são vários, como a cena em que todos começam a cegar, bastante semelhante ao que acontece no livro, que mesmo sendo curta, é tremendamente exasperante. Tem o mesmo papel de pôr o enredo a andar que no livro, servindo de grande ponto final na introdução.

Depois é preciso notar a predominância do branco em todo o filme. Afinal, a cegueira é branca, e esta cor tem grande destaque no primeiro terço do filme, com pelo menos dois propósitos bastante óbvios: como complemento a essa cegueira e como contraste à sujidade que vem depois. Pelo meio há uma série de flashes brancos, bastante ominosos e arrepiantes em vários momentos.


Já fechados no manicómio, acontece mais um daqueles momentos brilhantes, com a mulher do médico a percorrer um corredor que vai mudando lentamente com a passagem do tempo. É aqui que a brancura geral do filme dá lugar à imundície, à sujidade de um mundo de cegos contidos num espaço fechado e deixados ao abandono. Muito bom.

Outro momento fantástico é ver o primeiro cego e a sua mulher a conversarem, sentados num banco de jardim, tudo muito normal, quase um traço de esperança no meio do pânico e do desespero que grassava no manicómio... Só que à frente deles está uma parede de cimento. O simbolismo é óbvio e poderoso.

A partir da segunda metade começam os momentos assustadores e verdadeiramente perturbadores. Até agora há só desespero e o descambar de uma sociedade, mas quando um cego sai da linha de novos inquilinos do manicómio e vagueia, completamente perdido, a pedir ajuda, e leva um tiro que o deixa morto, começa o horror.


O tiro desencadeia o pânico colectivo, e as pessoas começam a correr e a empurrar para entrar. Morrem pessoas, esmagadas debaixo dos pés dos seus iguais. Depois é preciso uma pá para enterrar os mortos, e é arrepiante ver o soldado a guiar a mulher do médico, divertido como se de um jogo se tratasse.

É então que se dá o momento decisivo, aquele pormenor em que se atinge o fundo mais fundo e nós percebemos, em grande parte graças à actuação fantástica de Bernal, que já não há nada a fazer. A personagem de Bernal – a tal que passou curiosamente a ser espanhola – declara-se a si próprio como o rei da ala três e, como tem uma pistola, declara-se também como o guardião e distribuidor da comida.

O riso maníaco que se faz ouvir, acompanhado de palmas e urros dos seus companheiros, é arrepiante. E daí não falta muito para aquela que é a pior cena do livro, de tão intensa e perturbadora: o rei da ala três exige mulheres como pagamento por comida.


Já tendo lido o livro, sei exactamente o que vai acontecer agora, mas isso não torna a situação mais confortável ou menos desagradável de ler. O único pormenor agradável é quando as mulheres vão para a ala três, em fila, mãos nos ombros umas das outras, e há um plano em fundo branco que imita a capa do livro em português. Fenomenal.

Nada do que vem a seguir é fenomenal, tirando as actuações envolvidas. É uma cena tão desconfortável de ver como de ler, e é de louvar a forma como todos os actores cumprem os seus papéis de forma exemplar, uns assustadores, outras submissas.

Depois disto não se pode descer mais, o que se confirma. Não passa muito tempo até o manicómio se incendiar e todos fugirem, embora o grito da mulher do médico, completamente na escuridão, a anunciar a súbita liberdade, não soe tão agradável como devia. Afinal, são um grupo de cegos num mundo de cegos, está tudo perdido, que esperança podem ter? Não vão estar melhores a deambular pelas ruas do que sossegados no manicómio, o que, mais uma vez, se confirma. O mundo é apenas uma prisão maior.


Mas mesmo nos momentos finais, há felicidade. Instalado o grupo em casa do médico, ver as mulheres nuas na varanda, felizes por estarem a chuva e sentirem a água a escorrer por elas abaixo, é tocante. O êxtase quando a visão começa a voltar, aos poucos e poucos a cada uma das personagens, é contagioso.

E depois o final, em que a mulher do médico vai até à varanda, continua a ser arrepiante e nem sei bem dizer porquê. Talvez por resumir em vinte segundos um excelente filme e uma excelente obra, talvez por fazer pensar que tudo continua perdido, mas é de qualquer forma um fim digno deste filme: excelente.


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Que as citações nos caiam em cima [52]


"[...] É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver [...]"

Ensaio sobre a Cegueira
José Saramago

Ensaio sobre a Cegueira


Autor: José Saramago


Opinião: Este não é um livro que aconselho de ânimo leve. Intenso e perturbador são as duas palavras que mais rapidamente me surgem na mente, para o descrever. Eu já sabia isso, e é exactamente parte da razão para ter tanta curiosidade em lê-lo. Aproveitei o facto de ter começado a Temporada Temática "Lusofonices" para satisfazer essa curiosidade de uma vez por todas.

O que dizer deste livro? Claramente uma das obras-primas de Saramago, não é uma leitura fácil e, além disso, já percebi que ou se adora ou nem se consegue passar das primeiras páginas. Nada de estranho com este autor de escrita peculiar, que se presta frequentemente a tratamentos desses.

A verdade é que o estilo de Saramago custa a entranhar para a maior parte das pessoas, mas revela-se muito em linha com a oralidade e a estrutura do próprio pensamento. Ler Saramago, para mim, é como ouvi-lo a contar uma história para si próprio. É claro que isso leva a uma escrita de aspecto denso, muito boa, mas controversa, no mínimo.

Ultrapassada essa barreira (que para mim já não existe), ainda é preciso ter em conta outra coisa: o livro e a escrita são viciantes, e a vontade imediata é sempre ler mais uma página, mas por muito que se queira, e por muito que se esteja a gostar, é preciso fazer uma pausa depois de se ler um parágrafo que dura três páginas.

Esta escrita dá sempre um ritmo bastante interessante aos livros de Saramago, e este não é excepção. A leitura soa sempre bastante pausada, mas quando em embrenhava mais facilmente me perdia e lia vinte páginas num fôlego, vinte páginas em que o enredo ou a acção avançavam de forma estonteante!

Neste livro em específico, ainda assim, o começo imediato é algo morno, muito diferente de outros começos bastante activos, como é o caso do de As Intermitências da Morte. A premissa é logo apresentada, numa transição de normalidade-estranheza muito típica de Saramago, é bastante interessante e, acima de tudo, simples. Um homem fica cego de repente, mas em vez de ver tudo negro, vê tudo branco. Assim, sem mais nem menos.

O trajecto a partir desse momento começa por ser disperso, talvez demasiado, apresentando diferentes personagens em diferentes situações, todas a cegarem da mesma forma. Todas estas personagens são importantes mais à frente, quando descobrimos que são efectivamente os protagonistas (mais ou menos, mas já lá vou), mas confesso que com este começo, a minha ideia foi outra completamente diferente. Pareciam-me apenas casos aleatórios de personagens que não iam ter importância nenhuma à frente, e que talvez nem nunca mais aparecessem. Uma espécie de panorama geral. Mas adiante.

Com a doença a espalhar-se ao longo das primeiras páginas, tudo descamba muito rapidamente. Os cegos são atirados para quarentena forçada e obrigados a viver em condições deploráveis. O lugar escolhido para o primeiro surto, para onde vão as personagens que o livro acompanha, é um antigo manicómio desactivado, onde vai surgir uma espécie de sociedade de cegos, brutal, nojenta e, o pior de tudo, expectável.

Pois é. Eu garanto-vos que tudo o vos possam dizer sobre este livro, o que para mim foi mais perturbador foi o facto de achar normal, por assim dizer, aquilo que foi acontecendo no manicómio. Ou seja, é como se eu soubesse que pessoas, naquelas condições, fossem reagir daquela forma. É por isso que não fiquei espantado com a ditadura imposta por um grupo de cegos mais agressivos, que têm uma pistola. Ou pela brutal e intensa cena de violação colectiva de um grupo de mulheres, única forma de garantirem alimento para o resto dos cegos.

Isto é um ponto sensível. Ainda não me consegui decidir quanto ao assunto do livro. Será que Saramago quis descrever o que acontece a uma sociedade no fim dos seus dias? Ou sobre a Humanidade no fim dos seus dias? Ambas? É esta uma história sobre o caos que temos à flor da pele e que está à espera de romper e se espalhar por todo o lado? Ou será que Saramago, com todo o simbolismo que lhe é característico, escreveu aqui um verdadeiro ensaio sobre a cegueira, em todas as suas formas, causas e consequências?

Não sei. Só sei que conseguiu descrever e demonstrar o que acontece quando a Humanidade, representada por um grupo de cegos fechados num manicómio, se "vê" confrontada com a sua própria queda. A brutalidade, a crueldade, a frieza, a resignação e o caos são meras consequências. Aquilo que Saramago escreve é uma definição da condição humana por oposição.

O contraste é óbvio e bem visível, mais relevante por ser maioritariamente descrito pelos olhos da única pessoa que não cega, a mulher do médico. Esta personagem, extremamente relevante, torna-se nos olhos do leitor, que nunca se identifica com o narrador. Esse é uma entidade à parte, é uma voz que murmura de forma discreta mas eficaz. A mulher do médico é o nosso último reduto, a nossa última esperança. Nossa e dos cegos.

É por isso que alguns dos momentos mais marcantes deste livro sejam exactamente quando esta personagem, tão fulcral, perde a esperança. O momento em que cai de joelhos à chuva, semi-nua, sem forças para carregar os sacos de comida e chora, é intenso. O cão que lhe vai lamber as lágrimas é um benfeitor, mas é incapaz de apagar o que aconteceu. A mulher do médico viu todos os horrores que aconteceram ao mundo, pessoas a morrerem, pessoas a matarem, pessoas a defecarem onde calhasse, foi violada, espancada, cometeu actos horríveis em nome da sobrevivência, tudo isto enquanto o seu marido e toda a gente à sua volta está cego.

E é só depois, quando tudo parece estar encaminhado para melhorar, que quebra. É um momento forte e muito marcante, que arrepia e que Saramago descreve com a qualidade que lhe é característica.

Como já devem ter percebido, gostei mesmo muito deste livro. Vou ter que deliberar um pouco para decidir se se torna o meu favorito de Saramago ou se não é suficiente para destronar O Evangelho Segundo Jesus Cristo. É bem possível que sim, mais que não seja pelo seu carácter mais geral e de reflexão, em vez do ataque dirigido à religião que é o outro livro. Aqui, Saramago parece que se esqueceu de levantar polémicas e escreveu um autêntico tratado sobre a condição humana, mascarado sobre a forma de um livro intenso e com uma escrita excepcional que não é, definitivamente, aconselhável para pessoas mais sensíveis. Leiam-no e vejam por vocês próprios.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O aniversário de uma lenda


Há datas que passam despercebidas, por mais que uma pessoa tente andar atenta. Muitos grandes escritores, nacionais e internacionais, nasceram e morreram, por exemplo, e essas datas raramente têm um grande relevo ou atenção da sociedade em geral.

E contra mim falo, infelizmente. Eu bem que gostava de estar atento e de dizer qualquer coisa sobre escritores que gosto, nessas datas especiais, mas não consigo. Para começar não consigo estar assim tão atento a essas coisas, e depois há o problema de eu gostar de muitos escritores. É que não fazia mais nada.

Mas Saramago é diferente. Sempre polémico, a par de Saramago o escritor e José o homem, José Saramago foi uma personagem. Foi o nosso primeiro (e até agora único) Nobel da Literatura, teve um sucesso além fronteiras dificilmente alcançável por outros autores nacionais, e manteve-se sempre fiel a si mesmo: assertivo, directo, crítico e por aí fora. Extremamente inteligente, Saramago dizia o que tinha a dizer, escrevia o que tinha a escrever, e pouco se importava com as críticas que lhe faziam

O trabalho dele era escrever, desassossegar, nas suas próprias palavras, e ele fazia-o de forma magistral. O resto era paisagem. Mais importante ainda, isso tudo continua vivo. Saramago morreu mas não foi esquecido.

Isso nota-se especialmente num dia como o de hoje, em que Saramago faria 90 anos. Actividades, atenção dos meios de telecomunicação, livros com desconto (yay!), livretos comemorativos... E toda a gente a falar disso, em todo o lado, a maior parte uma cambada de hipócritas que provavelmente nunca leu um livro dele, e que enquanto vivo, sempre disseram que estava bem era em Lanzarote, longe de Portugal, tamanha besta era.

Eu cá junto-me aos outros, que querem manter viva a memória e a presença deste homem e deste escritor. Tecnicamente, e para observadores externos, nada nos distingue dos hipócritas, mas não escrevo isto para observadores externos. Escrevo-o para mim e para aqueles que, como eu, foram, são e serão sempre fãs de José Saramago, o escritor, o homem, o Nobel, o crítico, o pensador, o mau da fita... a lenda.

"Voando a máquina, todo o céu será música"
Memorial do Convento

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Que as citações nos caiam em cima [16]

Como não podia deixar de ser, vim aqui deixar esta citação, uma das mais belas que já vi, e que acho que se aplica a basicamente tudo, como disse na opinião ao livro.

"O caos é uma ordem por decifrar."
José Saramago, "O Homem Duplicado"

O Homem Duplicado

Título: O Homem Duplicado
Autor: José Saramago

Sinopse: Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, vive só, num bairro da cidade sem nome, só com a sua solidão. Um dia aluga um velho filme para ver em casa como repouso do cansaço que lhe deu a correcção dos trabalhos dos alunos. E acontece algo que lhe modificará a vida de solitário e pacato cidadão - um dos actores secundários do filme é exactamente igual a si próprio, é o seu duplo. Inquieto com a possibilidade de existir, eventualmente perto de si, na sua cidade, um outro que é ele próprio, lança-se numa investigação para encontrar esse outro, provocar um encontro, medir-se com ele. Com base neste ponto de partida, com uma intriga complexa conduzida com mão de mestre, José Saramago oferece-nos, com O Homem Duplicado, um dos seus mais belos romances.

Opinião: Saramago é daqueles escritores que acho que nunca me vai decepcionar, leia eu o que leia. Ainda só lhe li 4 obras, é certo, mas cada uma mais genial que a outra, nem sei bem por onde começar quando me perguntam de qual gostei mais.

E se até agora essa minha confusão pessoal já existia, só com 3 livros lidos, este "O Homem Duplicado" vem complicar ainda mais a coisa. Uma história soberba, personagens soberbas, um livro soberbo.

Acho que comprei escolhi comprar este livro, entre vários dele que tinha à escolha, por causa da citação que vem na contracapa:

"O caos é um ordem por decifrar."

Citação que vi pela primeira vez no documentário "José e Pilar", e que idolatrei de imediato, por ser uma frase tão simples e tão paradoxal, por conter nela não uma explicação, mas talvez um apaziguamento no que toca a tentar entender o que quer que seja, desde o acaso do dia-a-dia e das relações interpessoais até à matemática e à física. Genial, sem dúvida.

Pois bem, livro comprado, já nem sequer me lembro quando, e lido algum tempo depois. Não demorei mais do que 3 dias a devorar as 318 páginas da escrita compacta, ainda que não propriamente densa, daquele que é para mim, e para muitos, o melhor escritor português até à data.

Cada vez mais compreendo aquela história de "ou se ama ou se odeia", quando se fala de José, o homem e de Saramago, o escritor, mas quer se queira quer não, a forma como escreve e como expressa as suas ideias é bastante original, quebrou e continua a quebrar barreiras e, além disso, permitam-me aqui a subjectividade, é absolutamente genial. A torrente quase contínua de palavras, aqui aplicada à história de um homem que se vê duplicado noutro até ao mais ínfimo pormenor, é a forma perfeita de misturar uma narração bem feita e bastante pessoal com diálogos elaborados e interessantíssimos, tudo isto enquanto vai de facto contando uma história.

E não posso acabar de dizer que além de todos estes louvores que já fiz, ainda tenho que acrescentar que Saramago não descurava as personagens. A principal, Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, está excelentemente caracterizada, da mesma forma que o seu duplo e Maria da Paz, sua amante. A história em si é uma trama complexa, como o diz desde logo a sinopse, e é de facto guiada com mão de mestre, pelo escritor, que consegue introduzir temas como o desespero pelo contacto real com os outros, o medo da perda da individualidade, a resignação ou a rebelião ao destino e a inutilidade de uma coisa e outra...

Enfim, acho que basta dizer que o Nobel não ficou mal entregue a José Saramago.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Que as citações nos caiam em cima [10]

Tinha que aparecer alguma coisa deste grande escritor, José Saramago. Especialmente depois de ter ficado absolutamente deliciado com esta obra, "As Intermitências da Morte".

"Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberá como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais que isso, os nomes que lhes deste"

José Saramago, "As Intermitências da Morte"

terça-feira, 28 de junho de 2011

As Intermitências da Morte


Título: As Intermitências da Morte
Autor: José Saramago

Sinopse: "No dia seguinte ninguém morre." Assim começa este romance de José Saramago. Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.

Opinião: Saramago não pára de me surpreender. A cada livro que leio descubro particularidades novas, e apesar de este ser apenas o terceiro livro que leio dele (e todos este ano!), acho que já tenho o direito a afirmar que Saramago é dos meus autores favoritos.

Nesta obra são visíveis todas as marcas (acho eu), da típica escrita saramaguiana: o estilo oralizante, a pontuação pouco ortodoxa, os apartes, os diálogos "corridos"... Enfim, tudo aquilo que é diferente em Saramago e que tanto contribui para o reconhecimento que tem, tanto a nível nacional como a nível mundial.

E esta história é particularmente... Nem sei, fascinante? Bizarra? Mesmo ao meu gosto? Um bocado de tudo isso e muito mais, suponho. Ao contrário do Evangelho e do Memorial, autênticos romances históricos especulativos com um pendor de realismo mágico (especialmente o Memorial), este livro é um tipo de livro bem diferente. Não é propriamente uma alegoria, talvez seja mais uma fábula... É um estilo muito próprio do autor, que consegue misturar vários tipos de histórias e de formas de as contar, baralhando e misturando e criando coisas novas a cada linha que passa.

Neste caso trata-se de uma história que se inicia de forma abrupta, como me parece ser costume nos livros de Saramago, com uma frase bastante simples, mas que acarreta as mais variadas implicações: "No dia seguinte ninguém morreu.". A partir deste momento, e numa primeira parte, o autor escreveu quase que um ensaio especulativo, em que imagina um acontecimento e desenvolve as consequências dessa situação, num país sem nome, com personagens sem nome, o que acaba por universalizar a história, não ocorrendo em nenhum sítio em especial, com nenhuma população em particular, mas sim em todos os sítios e com todas as populações. As Intermitências da Morte, enquanto livro, é, nesse aspecto, bastante abstracto.

Numa segunda parte, a morte decide dar uma reviravolta ao assunto, assumindo publicamente, através de uma carta, que aquele interregno de mortes tinha sido uma mera experiência que não tinha corrido bem e que, portanto, iria voltar ao sistema antigo, embora com algumas alterações. Novamente o autor desenvolve as consequências desta mudança, a todos os níveis, do Clero ao povo, incluindo as casas mortuárias, os hospitais, os lares de idosos, a máphia (com ph sim senhor)... E depois, por fim, uma terceira parte, final, em que a morte enfrenta uma situação bizarra que vai ter que resolver, acabando por haver uma reviravolta final deveras emocionante.

Nas duas primeiras partes, como não podia deixar de ser, o autor desenvolve toda a sua crítica, ironia e o seu humor mordaz, espingardando para todos os lados, atingindo todas as camadas da sociedade e revelando aquilo que há de pior (e, em casos excepcionais, de melhor) em todos os grupos sociais. Na terceira parte já há uma narrativa mais típica, com personagens, ainda sem nome, a morte, com letra minúscula, sempre, e o violoncelista. Bem, talvez a morte seja a única personagem com nome, mas ela própria assume que esse é apenas o nome pelo qual é conhecida, não sendo exactamente o seu nome.

Gostei muito, como é óbvio. As críticas de Saramago são sempre certeiras, acertando em cheio na ferida, esfregando-lhe sal e despejando-lhe álcool em cima, de tal forma que é quase doloroso assistir à desconstrução sistemática das convenções sociais, revelando aquilo que cada uma tem de mais podre. Perdoem-me as analogias demasiado prosaicas, como diria a minha professora de português deste ano, mas esta é a única forma de falar de um autor como este, que se cria enquanto narrador fora do normal, sem medo de dizer as coisas e de acusar quem merece ser acusado, nesta história que começa como crítica mais do que certeira e acaba surpreendentemente doce, com a humanização da morte e revelando, pouco a pouco, a sua necessidade de se sentir amada, até humana.

Aconselho e digo mais, como já disse a Alice, não ler Saramago é crime.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Ensaio Sobre a Cegueira


Título: Ensaio sobre a cegueira

Autor: José Saramago

Sinopse: Um homem fica cego, inexplicavelmente, quando se encontra no seu carro no meio do trânsito. A cegueira alastra como "um rastilho de pólvora". Uma cegueira colectiva. (...) Personagens sem nome. Um mundo com as contradições da espécie humana. Não se situa em nenhum tempo específico. É um tempo que pode ser ontem, hoje ou amanhã. As ideias a virem ao de cima, sempre na escrita de Saramago. A alegoria. O poder da palavra a abrir os olhos, face ao risco de uma situação terminal generalizada. A arte da escrita ao serviço da preocupação cívica.

Opinião: Como falar sobre uma obra transcendental? O que me faz pensar que estou à altura de criticar um Nobel da literatura?

Nada, penso. Mas quando um grande homem escreve, é para todos os que o quiserem entender.

É disso exemplo José Saramago e Ensaio sobre a cegueira, lançado em 1995 e adaptado ao teatro e ao grande ecrã.

Demorei bastante tempo a acabar o livro, tendo começado com bastante entusiasmo, mas testes e trabalhos práticos sobrepuseram-se e a leitura foi sendo deixada de lado.

Quando finalmente entrei de férias há cerca de uma semana e meia, decidi recomeçar a ler tudo de novo por respeito tanto ao autor como à obra.

Com esta, duas obras de José Saramago passam a constar da minha biblioteca mental, e penso poder já arriscar afirmar que se trata do meu escritor favorito.

Na verdade, nunca nenhuma narrativa penetrou tanto no meu âmago. Saramago, projecta profundamente em nós a dor, o sofrimento, a mágoa, a ignorância, o medo, o amor.

Em Ensaio Sobre a Cegueira, uma obra extremamente crítica, um abre olhos para a sociedade, todas as fraquezas humanas são exploradas intrinsecamente. A cegueira da humanidade que tristemente a descreve.

Julgo que posso resumir a obra nesta fortíssima citação do final: "Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que, vendo, não vêem."

domingo, 12 de junho de 2011

Memorial do Convento - Novas considerações



Título: Memorial do Convento
Autor: José Saramago

Quando acabei de ler o Memorial do Convento, não fiquei muito bem entendida sobre o seu desfecho, lembro-me até de ter escrito, na minha opinião sobre a obra, aqui no blog, que o fim era um tanto ou quanto subjectivo. "livre das interpretações que cada um faz" disse eu.

Ao estudar a obra nas aulas de Português, percebi finalmente a "subjectividade" que eu atribuíra algures às ultimas linhas daquele extenso livro.

Pois de subjectivo, tem muito pouco ou nada, o amor entre as duas personagens ficcionadas da obra, amor esse inexorável ao tempo, firme, verdadeiro, único, penetrante, supera o inevitável de uma forma mágica e deliciosa, tal como as personagens protagonistas deste sentimento tão fulminante.

Termino por aqui, antes que revele o fim do livro e estrague o suspense  a quem lê ou espera ler o Memorial... Posto isto, reedifico a minha opinião mas só neste aspecto, a subjectividade deu lugar à objectividade mas o encanto e apreciação do livro, mantêm-se intactas sem tirar nem pôr.

Boas leituras!

sábado, 14 de maio de 2011

Que as citações nos caiam em cima [4]

Lembro-me que enquanto estava a ler o Memorial, fiquei encantada com esta frase algures por ali escrita mas entretanto nunca mais me lembrei, até ontem que durante uma aula de português me deparei com ela e desta vez não me escapou:

"Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita."

O Memorial do Convento, José Saramago.

Acho linda esta frase, ou não fosse eu, uma rapariga, um tanto ou quanto feminista e bastante sonhadora...

Já sabem que podem enviar mais citações, contem-nos também um pouquinho do porquê de terem gostado e/ou identificado com ela, teremos todo o gosto em ler e em partilhar! Enviem-nos para queaestantenoscaiaemcima@gmail.com.  

A todos, bons momentos passados com os livros!

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Memorial do Convento

Título: Memorial do Convento
Autor: José Saramago

Sinopse: Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez.

Opinião: O motivo desta leitura foi um bocado ambíguo. Por um lado queria ler esta obra por ter sido escrito por Saramago, escritor que aprecio bastante, mas por outro lado tive que ler esta obra, para a escola.

Mas isso é um pormenor. Sendo do escritor que é, eu já sabia que não me iria desapontar, apesar de ainda só ter lido outro livro dele, e confesso que ia com as expectativas bastante altas. E a verdade é que me desapontei ligeiramente. Não sei se comecei logo por um dos melhores e os outros agora me vão parecer inferiores, mas para ser honesto tenho que dizer que gostei menos do que estava à espera. Gostei muito, adorei a escrita e as personagens e a história e a imaginação, mas não me caiu tão bem como o Evangelho.

Os dois pontos mais positivos, para mim, são mesmo as personagens e a história. Todas as personagens são impecáveis a nível da construção, todas têm uma profundidade e um relevo impressionante, mas falo especialmente de Baltasar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas e do padre Bartolomeu Lourenço, o Voador. Estas 3 personagens são o que este livro tem de melhor, na minha opinião. As suas descrições, tanto físicas como psicológicas são absolutamente soberbas, sem qualquer tipo de falha.

Depois a história, que é algo que eu aprecio sempre muito, é uma história bem contada, que por vezes parece que se torna monótona e que se deixa arrastar, mas são pequenos momentos esporádicos que em nada me afectaram a leitura.

Já a escrita, essa sim apresenta uma dualidade curiosa... É que de certa forma é densa e complicada de ler, mas ao mesmo tempo consegue proporcionar um ritmo de leitura moderadamente acelerado. Como é que eu hei-de explicar isto... Custa a começar a ler, mas depois de se lerem 2 ou 3 páginas é sempre a abrir.

Ou seja, resumindo e concluindo, é uma boa leitura, que não me agradou tanto como eu esperava que agradasse, mas que ainda assim foi das melhores coisas que já li este ano.