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segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Conversas Imaginárias 2015


Devido às obras na Biblioteca de Telheiras, este ano não foi possível haver Fórum Fantástico. Mas o Rogério Ribeiro e o João Campos, incapazes de estarem quietos, lá se esforçarem para trazer um mini-evento em substituição. Estas Conversas Imaginárias, que pelo que percebi, já se tinham feito noutros anos.

O resultado foi positivo. O espaço partilhado entre a livraria Fyodor e o Café Ideal foi pequeno para tanta gente que lá apareceu de início e que lá esteve durante boa parte da tarde, mas chegou. O único defeito foram mesmo os problemas de som, já que sem microfones, com barulho de pessoas aleatórias a comprar livros na Fyodor, tornou-se difícil ouvir certas partes das conversas.

No entanto foi bom ver António de Macedo a falar bem como sempre, e a anunciar livros e filmes como se fosse um jovem, apesar da saúde fragilizada. Só por isso valeu a pena!

As três conversas, Universos Partilhados, O Fantástico e o Real, e Iniciativas em Comunidade foram todos muito interessantes, com convidados como Luís Filipe Silva, João Barreiros, o já mencionado António de Macedo, David Soares, Carlos Silva pela Imaginauta, o responsável da H-Alt, a Liga Steampunk, Ricardo Lourenço pelo Projecto Adamastor, e João Campos, Artur Coelhos e Cristina Alves a juntarem-se a João Barreiros para a já habitual sessão de recomendações que dura mais do que devia.

Pelo meio houve ainda tempo de se venderem os primeiros exemplares da Colecção Barbante, que inclui um conto meu, muito convívio e muitas conversas entre partes de uma comunidade que gosta de se chatear consigo própria, mas que não resiste a estes momentos de autêntica confraternidade.

Pela minha parte comprei livros recomendados pelo Luís Filipe Silva e editados pelo João Barreiros (A Pegada, de Larry Niven e Jerry Pournelle, ambos os volumes) e um livro aprovado por Rogério Ribeiro (Under Heaven, de Guy Gavriel Kay), recebi uns marcadores impressos em 3D pelo professoris excepcionalis Artur Coelho (duas Enterprise e um Dalek, para partilhar com a namorada) e conheci amigos virtuais (Luiz, foi um prazer).

Uma tarde bem passada, e a prova de que basta esta malta juntar-se que acontecem coisas porreiras.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Sepulturas dos Pais


Argumento: David Soares
Arte: André Coelho


Opinião: Abençoados sejam os deuses que vocês preferirem: mais uma obra recente de David Soares que me agradou! A arte de André Coelho, excelente, contribuiu bastante, mas o argumento agradou-me genuinamente.

Começando pela pior parte, vou já deixar bem claro que detestei o final. Para mim foi como ver um sketch de humor que não sabe quando acabar, e continua e continua e continua, bem para lá daquilo que é engraçado - ou, neste caso, daquilo que é bom.

Mas pronto, deixemos isso. Vamos focar-nos no enredo, interessante, retorcido e negro, mas também esperançoso, de certa forma. Nunca nada é demasiado explicado, nem nunca nada fica muito claro, mas as narrativas entrecortadas funcionam bem e contam a história toda. Pelo menos a que o leitor precisa de saber.

David Soares consegue "brincar" muito a sério com a acto de dar vida, e cria metáforas excelentes com as criaturas de areia que o protagonista consegue criar, de forma tão simples. E mesmo com um tema destas, a história consegue ser surpreendentemente negra e agressiva, como é apanágio de algo escritor por este autor.

A arte de André Marques é um excelente complemento (por favor não se inibam de voltar a colaborar), tão ou mais negra que a escrita de David Soares. Os diálogos sofrem, muitas vezes, de excesso de davidsoarismo, mas já nem é defeito, é mesmo feitio, e como o livro se mantém coerente, isso acaba por não destoar demasiado.

Já a noção que dá origem ao título, as sepulturas dos pais, é um bocado forçada, e acho que o livro só tinha em ganhar se o autor tivesse deixado essa ideia de parte, e se tivesse focado noutras coisas. Felizmente nunca exagera, e esta ideia, ainda que importante e central, mas também vaga e secundária, não polui nada.

Resumindo, é bom ver Soares a produzir material de verdadeira qualidade, depois de algumas francas desilusões. Venham mais assim.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Batalha


Autor: David Soares


Opinião: Finalmente! Após tanto tempo e várias desilusões, um bom livro de David Soares! E cheguei a esta conclusão logo no início do livro, o que parece precipitado, mas não é. Bastou ler algumas páginas, talvez o primeiro capítulo, para ficar convencido de que estava ali a escrita que gosto de ver neste autor, assim como a história e as personagens com a qualidade que sei que ele é capaz.

Tudo isto porque é um livro "simples". Uma fábula bem feita que não se tenta enrolar nela própria, e que não é muito prejudicada pelos exagerados devaneios filosóficos do narrador, que são, felizmente, bastante ocasionais.

A história é sobre uma ratazana que é encontrada semi morta por uma casal de ratos do campo que a adopta. Cheira mal, cresce mais que os pais, é apelidada de Caganeta e mais tarde auto-nomeia-se como Batalha. Além disto, é uma excelente personagem, que não precisa de mais descrição do que aquela que vem na capa, uma ratazana ateia.

É tudo muito triste, mas sem dúvida extraordinário. O percurso de Batalha é fascinante, assim como todas as personagens que encontra no caminho. A constante dúvida sobre "os pais do mundo" e fé é uma das melhores representações do ateísmo puro que já vi: livre de dogmas, recheado de perguntas, com uma curiosidade extrema relativa às crenças que existem, mas sem nunca perder o sentido crítico. Borda o agnosticismo, mas Batalha nunca se deixa cair demasiado nesse caminho.

O livro acaba também por ser uma forte reflexão sobre a vida de uma forma geral, e a importância de cada ser, independentemente da existência dos pais do mundo, ou de algum deus, ou outra coisa qualquer. E isso vê-se na capacidade que os seres têm para comunicar uns com os outros, pois só quando um ser acha o outro relevante, é que o ouve. É por isso que os ratos têm dificuldade em perceber os gatos, mas o arquitecto cego consegue ouvir Batalha. É bonito, vá.

Infelizmente, já muito perto do fim, o autor consegue aparvalhar um bocado e deixa-se dispersar. Perde o fio à meada e consegue assustar-me, ao parecer regredir mais para dentro do seu casulo intelectual do costume. Mas não foi muito grave, e não tenho problemas em classificar este livro como muito bom. Não fosse o narrador, de que não gostei por nunca se decidir quanto a que ponto de vista é que tinha, teria sido um livro excelente.

Sempre achei que ia gostar deste livro, e não me enganei. Agora tenho esperança de que as próximas obras sejam desta qualidade, e que a fase excessiva já tenha ficado para trás, mas a ver vamos.

sábado, 13 de junho de 2015

Feira do Livro 2015 e os Impérios do Mal


Bem-vindos! Os mais distraídos ficam a saber que não só a Feira do Livro já começou, como está prestes a acabar! Há anos em que até costumo avisar e fazer publicidade e isso tudo, mas isto está cada vez mais complicado... Portanto ficam com este aviso para lá passarem entre hoje e amanhã, que já não é mau.

Vamos agora às queixas. Isto da Feira do Livro é uma coisa muito engraçada, com cada vez mais editoras (e a Chiado, também), e gosto de lá ir comprar livros e tudo, mas aquilo é uma desgraça autêntica. Um tipo olha para o mapa e fica com vontade de chorar: bastam três grupos editoriais para preencher quase metade da Feira. Porto Editora, Presença, e o Império do Mal por excelência, a Leya.

Análise de mercado não é propriamente uma das minhas especialidades, mas parece-me óbvio que isto não é bom. Ainda por cima quando é fácil de perceber a falta de escrúpulos destes grupos. São autênticos Golias empresariais que sugam pobres Davids para dentro da sua estrutura livreira e os reconvertem às suas práticas. Uma espécie de Romanos ao contrário.

"Bah, estás a exagerar!"

Ai estou? Digam-me onde anda a colecção azul de FC da Caminho? E os Saramagos sem capas ridículas? E os Argonautas? Onde? Nos alfarrabistas?

Pois é.

E estes são só os casos de que me lembro. E não serão os últimos. Acreditem em mim, isto só vai piorar. Os afluentes editoriais destes Impérios do Mal parecem continuar relativamente independentes, mas não se deixem enganar. Mais dia menos dia e tornam-se indistinguíveis uns dos outros.

(e vou ignorar completamente o facto da Chiado ter uma das maiores zonas da Feira, nem sequer ter na ideia que alguém considera aqui alguma coisa, eu não a deixava ir para lá, ainda para mais para ter aquela caixa ridícula de "deixe aqui o seu manuscrito")

Enfim. Vamos deixar estas coisas para outra altura e passar a falar de livros. Reparem outra vez na foto lá de cima e observem as minhas fantásticas compras. Quero que comecem por notar nos três volumes de História das Ciências que comprei por dois euros cada, e que validam o meu certificado de nerd até ao próximo ano. Depois reparem no King Kong, que me custou outros dois euros, e que valida o meu certificado de geek até ao próximo ano.

Agora o bicho que mais se destaca: A Voz do Fogo, de Alan Moore, que só me custou cinco euros e para o qual me ando a babar há anos. Nem vou comentar, venha ele!

O que sobra? Algo que me deixa muito orgulhoso: quatro livros de autores portugueses, sendo que dois são BD's! Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa vai-se tornar um clássico, não tenho dúvida alguma, e portanto não podia deixar de o ter nas minhas estantes. O Batalha, do David Soares, era olhado com expectativas altíssimas, e agora com umas expectativas mais baixas, mas ainda é um livro deste autor que sempre me deixou interessado. Fábula cuja protagonista é uma ratazana ateia? É que falamos bem.

Por fim, Cidade Suspensa, de Penim Loureiro, e O Baile, de Nuno Duarte e Joana Afonso. O primeiro livro tem um ar fantástico e promete recorrer ao imaginário Fantástico português de uma forma que me deixa muito curioso, e o segundo, enfim, vem das mãos de um dos meus argumentistas portugueses preferidos, e é ilustrado por uma das minhas artistas portuguesas preferidas. É que mal posso esperar!

E com isto tudo, não comprei um único livro que tenha custado mais de dez euros. O total nem chega aos cinquenta! Provavelmente ainda vou comprar mais qualquer coisa (Afonso Cruz, estou a olhar para ti), mas não gasto muito mais.

Da vossa parte, não se deixem intimidar pelas Impérios do Mal e ataquem. Passem na Feira do Livro e percam tempo a procurar e a folhear, que encontram-se coisas muito, muito boas.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Crumbs - An anthology of delicious comics by portuguese toast makers


Argumento: André Oliveira, Fernando Dordio, David Soares, Mário Freitas, Pedro Cruz, Francisco Sousa Lobo, Nuno Duarte, Joana Afonso, Ana Matias, Zé Burnay
Arte: André Pereira, Afonso Ferreira, André Caetano, Bernardo Majer, Pedro Serpa, Sérgio Marques, Pedro Cruz, Francisco Sousa Lobo, Osvaldo Medina, Inês Galo, Joana Afonso, Ricardo Venâncio, Zé Burnay


Opinião: Este livro começa bem logo com esta capa (e contracapa) fantástica de André Pereira e Afonso Ferreira. O tamanho também é qualquer coisa, e se o objectivo era chamar a atenção, bem, sucesso!

Agora, o que já não começa tão bem é logo a premissa. Pelo menos à partida, quando soube que era um livro inteiramente de autores portugueses, mas em inglês, fiquei de pé atrás. Aquele sentido de patriotismo linguístico veio ao de cima e barafustei um bocado mentalmente contra a ideia.

Mas compreendo a escolha. Crumbs é um livro com um propósito muito específico, o de apresentar e representar lá fora o que de melhor se faz por cá. Faz sentido que seja inteiramente em inglês, portanto deixei passar essa resmunguice.

A única coisa que faltava era o livro convencer-me, com a sua qualidade, de que valia a pena. A citação de Cebulski que vem na contracapa, sobre a verdadeira identidade dos autores portugueses de banda-desenhada é verdade, e isso bem aplicado podia originar aqui um livro tremendo. Infelizmente, não é o caso. Já passo à opinião específica de cada uma das histórias, mas fiquem já com a ideia de que ficam aquém. Muito aquém, na generalidade.

E o problema que vejo é exactamente a diversidade de estilos que Cebulski louva. Não que isso seja intrinsecamente mau, mas não é fácil conjugá-los todos numa antologia, que pede o mínimo de coerência. Ainda por cima se o livro fosse em português, talvez não se notasse, mas não sendo, até esse elemento de "portugalidade" se perde, e o resultado são inúmeras histórias completamente diferentes umas das outras. O resultado final é um livro pouco coeso, um bocado all over the place.

Mas vamos lá ver cada uma das histórias. A primeira é Light Bearer, de André Oliveira e André Caetano, que sofre do mesmo mal que sofre Palmas para o Esquilo e que tanto me chateou: arte e argumento não contam exactamente a mesma história, pelo menos não da mesma maneira, e não estão interligadas de forma normal. É um problema pessoal, que não gosto mesmo nada disso, porque acho que se perde muito ao separar as duas coisas em vez de se fazer um esforço para as integrar e usar uma para reforçar a outra. No entanto, e focando-me principalmente na arte, conta uma história interessante e tem um final curioso e inesperado que me agradou.

Depois veio Tunnels, de Fernando Dordio e Bernardo Majer, que tem a premissa curiosa de ilustrar uma música, nomeadamente a Tunnels dos Arcade Fire, e os autores conseguem fazer com que funcione, de uma forma estranha, aleatória e abstracta. Mas não é o meu estilo, e portanto não apreciei devidamente. Já para não falar da arte, da qual não gostei, demasiado simplista e viciada (as caras são todas iguais...).

The Boar-man is getting married, or Leng T'che, de David Soares e Pedro Serpa, tem uma das melhores artes e uma das piores histórias (se é que havia uma) do livro. Volta a aparecer a separação entre escrita e desenhos que me aborrece de morte e tira todo o interesse à história. É uma boa leitura, mas apenas graças à arte de Pedro Serpa, ainda que confesse que a ideia, que deve ter sido 100% do David Soares, é bem porreira!

Em Orwell, the Soviet Cat, é a vez de Mário Freitas, o organizador da antologia, apresentar uma história desenhada por Sérgio Marques. E não tenho muito a dizer para além de "bom título, boa arte, história assim assim". Depois de ler esta história fiquei plenamente convencido que todas as histórias pecam por serem tão pequenas!

Young Enlil goes to Hell, de Pedro Cruz, é um grande cliché em forma de BD, com um final super estranho e que serve mais como "trailer" e publicidade do que outra coisa, e que, portanto, não me agradou minimamente.

A história seguinte, The Green Pool, de Francisco Sousa Lobo, conseguiu algo extraordinário: uma premissa interessante, uma história interessante, um bom argumento e uma arte porreira, que tudo junto dão origem a uma BD mediana. Não sei o que se passou, mas suspeito que, lá está, esta história precisasse de mais espaço para se desenvolver.

Uma das histórias mais interessantes foi definitivamente Low Battery, de Nuno Duarto e Osvaldo Medina, que tem uma boa ideia e uma arte muito boa. Peca um pouco pela forma ligeiramente idiota como se desenvolve, mas é uma boa história que consegue ter um final interessante, apesar do diálogo meio ranhoso, de vez em quando.

Depois há Hanging Garden, de André Oliveira e Inês Galo, com uma boa arte e uma boa história... Se ignorarmos completamente a narração. É outra BD moderna com uma separação entre escrita e desenhos, mas que consegue contar uma boa história. Aliás, uma história muito boa, que perde muito do seu peso por causa da péssima narração que a acompanha.

Um problema que não aflige Joana Afonso, em Ick!, que tem uma das melhores artes do livro, e um dos finais que menos me agradou, apesar de ter uma história bastante interessante. Foi das poucas histórias que conseguiu realmente adaptar-se ao formato e mostrar algo interessante sem cair em idiotices.

In Clouds, de Ana Matias e Bernardo Majer, tem uma certa inocência infantil na forma como conta a história. Os desenhos não são maus, embora sejam de um estilo que não me agrada particularmente, mas a vertente mais infantil dá-lhe outra graça.

Já quase no final, aquela que deve ter sido a minha BD favorita, Omega, de Nuno Duarte e Ricardo Venâncio, que tem bons desenhos, uma excelente história, e um final muito interessante. É uma boa abordagem à escrita, especialmente à escrita de BD, e à forma como é fácil um autor ficar preso a uma personagem, ou a um Universo. Muito bom.

Só tenho pena que para terminar tenha sido escolhido Walpurgis 77, de Zé Burnay. Ou melhor, que tenha aparecido de todo nesta antologia, porque isto não é BD, são desenhos semi-aleatórios, uma história à là Chilli com Carne sem interesse nenhum e que não me fascinou de nenhuma forma. Uma autêntica pena.

Como podem ver, não foi uma má leitura. Até foi bastante boa, tendo em conta que são portugueses a escrever em inglês para apresentar o que de melhor se faz por cá. Só que pronto, tem alguns pormenores que resultam dos autores se perderem, de certa forma. É fácil ficar preso no meio de "tenho de ser diferente!" e "preciso de impressionar" e "modernismo, modernismo, modernismo", e muitas destas pequenas BD's sofrem disso mesmo, o que é uma pena e faz desta uma leitura mediana.

Mas louvo o esforço, o trabalho, a concretização e o resultado final. Apesar da qualidade ficar aquém, é bom ver alguém a mexer-se e a apresentar iniciativas da forma que Mário Freitas e todos estes autores o fazem, e por isso, estão de parabéns.

sábado, 11 de abril de 2015

Mais fácil do que uma crónica [5]


Foi-se um dos grandes. Ainda não lhe li nada, mas tenho o The Colour of Magic muito próximo na lista, numa edição fantástica. Para quem não conhece Terry Pratchett, querem saber quão grande era? Reparem aquiaquiaqui, aqui e aqui. O homem deve ter sido um dos poucos escritores a gozar de tanta unanimidade no respeito e na admiração. E não se preocupem, que ainda há um livro novo para sair em Setembro.

Mas pronto. Avancemos, que é o melhor. Aliviem o luto e espreitem coisas interessantes como esta pequena BD, que é das coisas mais hilariantes (e tocantes) que encontrei nos últimos tempos.

Depois percam algum tempo a maravilharem-se com esta entrevista que o David Soares fez ao António de Macedo. É uma autêntica delícia divida numa, duas, três partes.

E para terminar (tenho mais coisas, mas não tenho muito tempo para as apresentar como deve ser), não percam a última iniciativa da Imaginauta, a Biblioteca Fantasma. Estou a gostar da vitalidade desta iniciativa, que insiste em apresentar coisas novas, diferentes e originais. Incansáveis!

Desta vez é tudo, prometo para a próxima tentar fazer algo mais completo. Mas só naquela entrevista de Soares a Macedo já têm pano para mangas...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A Sombra Sobre Lisboa [2/3]


Autores: Rogério Ribeiro, Safaa Dib, Luís Filipe Silva, João Henrique Pinto, David Soares, João Seixas, António de Macedo, Rhys Hughes, José Manuel Lopes, Fernando Ribeiro, Yves Robert, Vasco Curado, João Ventura, João Barreiros
Tradutor: João Henrique Pinto (para o conto do Rhys Hughes)


Opinião: Continuando a opinião a este livro, está na altura de falar de O elefante e o cavalo, de David Soares. O conto é muito estranho, como seria de esperar, e tem uma escrita muito boa, bonita mesmo. Tem a felicidade de ser duma fase deste autor em que ele ainda não caía no exagero que lhe aponto nas suas obras mais recentes.

O começo é das coisas mais arrepiantes que li nos últimos tempos, assim como o aproveitamento e aportuguesamento dos mitos lovecraftianos, também é muito interessante. Tudo neste conto cativa, e os pormenores são fascinantes, como os Miri Nigri, criaturas horríveis que nascem desdentadas e que portanto usam cacos de vidro e pedaços de madeira e pregos cravados nas gengivas para fazer de dentes. Fascinante!

No entanto, e apesar de tudo isto, acho que a parte da conclusão deixa muito a desejar. É que é tudo muito interessante, mas também demasiado ambicioso. De tal forma que no fim a história cede sob o seu próprio peso, e preciso de todo um capítulo no fim altamente explicativo, para que tudo faça sentido. E não fica a fazer!

A seguir vem As sombras sobre Lisboa, de João Seixas, que é um autêntico festival de arcos narrativos. Ou melhor, de personagens. Mas é importante é notar que uma das personagens é nem mais nem menos que Eça de Queirós. Sim, esse Eça de Queirós. E que bem retratado que está!

Todo o conto é bastante agradável, especialmente a escrita, apesar de alguns momentos menos felizes - "o jardim para onde a coluna de granito era vomitada" - em que parece esforçar-se demasiado. No entanto, como já disse, Eça é uma excelente personagem, assim como Fradique, imponente e praticamente um herói de acção. E a história envolve zombies! Voodoo! Ctulhu e R'lyeh! Assassínios! Mistério! Traições! Tanta coisa!

A partir de certa altura, infelizmente, só consigo sentir-me assoberbado com tanta coisa. O conto tenta acompanhar tanta coisa que se torna demasiado disperso. Não deixa, no entanto, de ser uma boa leitura!

Depois vem António de Macedo. Vénias se faz favor. Muito bem. O título é A Dama do Espelho Negro e é um conto incrível, como sempre. A escrita não é a melhor que já lhe li, mas é boa, e ao início fiquei honestamente espantado, sempre que virei uma página, ao aperceber-me da capacidade do conto em manter-me interessado, apesar de ser tão dolorosamente expositivo.

Um espelho misterioso e uma intriga retorcida, é tudo o que o Macedo precisa. Mas nem este fantástico autor consegue escapar a um fim desapontante para este conto, demasiado confuso para o meu gosto. A mestria com que conta a história, no entanto, é qualquer coisa de especial.

Arroz de Abominação é uma pequena batota neste livro que incluo na minha temporada temática actual, Lusofonices, pois não foi escrito por um autor lusófono, mas sim por Rhys Hughes (de quem consegui um autógrafo, neste livro, graças ao Fórum Fantástico!). Mas façamos de conta, sim?

Deliciosamente irónico do princípio ao fim, todo o conto é muito bom, e termina da melhor forma possível. Acho espantoso que este conto tenha sido o mais profundamente português de toda a antologia! Eu estou com vontade de vos contar o que se passa, para além da caricatura de Lisboa com embaixadas secretas dentro de embaixadas secretas que ficam dentro de embaixadas secretos no interior de embaixadas secretas, que nem sei. Só lendo, mesmo!

Para terminar (por hoje) há As Confissões de Walter Reis, de José Manuel Lopes, do qual gostei, mas que sofre um bocado por ser uma memória, a história fica demasiado parada, por vezes. Mas este é um conto excepcional, pois consegue a impossível tarefa de escrever Lovecraft sem ser propriamente um conto de terror.

Toda a atmosfera e a história é muito atípica no meio desta antologia, pois isto é claramente Lovecraft, desde a estrutura aos temas abordados, mas não há terrores inomináveis nem desgraças inolvidáveis: há, isso sim, uma certa leveza e frescura que me deixou, como já disse, honestamente surpreendido. Vale muito a pena!

E pronto, como podem ver a minha opinião melhorou. Continuo a encontrar vários problemas, mas alguns são coisas pequenas, mais embirranço, em dois ou três casos, do que outra coisa qualquer. Por esta altura só tenho é de referir o excelente trabalho da Saída de Emergência em reunir esta antologia, que não é perfeita, mas me enche as medidas!

sábado, 13 de setembro de 2014

Entrevista a David Soares

David Soares é um autor que exerceu um estranho fascínio sobre mim antes mesmo de lhe ter lido o que quer que fosse. Foi um estranho efeito, que apelidei, de forma bastante original, de Efeito David Soares, e que se viu justificado quando comecei a ler as suas obras.

Autor com provas dadas numa variedade enorme de formatos, começou por publicar BD's e recebeu vários prémios nacionais e internacionais, tendo inclusivamente obtido algum destaque em França com algumas das suas primeiras BD's.

Além disso é uma pessoa fascinante. Quer se concorde ou não com ele (e eu muitas vezes não concordo), e quer se goste ou não da forma como diz as coisas (por vezes também não sou muito fã), vale sempre a pena ouvi-lo/lê-lo. As suas obras mais recentes têm-me deixado desapontado, por uma série de razões, mas tenho alguns dos seus livros entre as minhas obras favoritas de sempre e considero-o um autor de enorme talento e que ainda me vai proporcionar excelentes leituras.

Podem conhecer melhor o autor e o seu universo autoral no seu blog, Cadernos de Daath, e na entrevista que lhe fiz por e-mail, em que não só tentei fazer perguntas interessantes sem bater sempre na mesma tecla, como ainda aproveitei para satisfazer alguma da minha curiosidade pessoal relativamente a certas coisas que tenho a certeza interessam a mais gente.

Nas proximidades temporais não percam Sepulturas dos Pais, com lançamento previsto para 25 de Outubro, pela Kingpin Books, e mais alguns projectos mencionados na última pergunta da entrevista.


O David tem uma presença muito distinta: barba comprida, cabelo comprido, roupa escura, muitos anéis, uma maneira de falar diferente, pausada, ponderada, enfim, digamos que se destaca. Isso podia, no entanto, ser uma persona, um David-Soares-escritor diferente do David-Soares-homem. Daquilo que eu conheço da sua obra e das ocasiões em que o ouvi, não acho que seja o caso, mas essa diferença existe, mesmo que de forma inconsciente e mais subtil?

Desde os tempos helénicos que a Prudência, uma das quatro virtudes cardinais, é representada pelos artistas e descrita pelos escritores como sendo uma mulher a olhar-se ao espelho enquanto agarra uma serpente: esta simboliza a Sabedoria, enquanto o espelho representa a Verdade. Acredite-se ou não, esse é o modo arcaico pelo qual me oriento em questões de gestão de imagem pessoal: com prudência, lá está!, tento mantê-lo no domínio privado. Ou seja: enquanto autor, o único elemento que deverá interessar aos leitores é, evidentemente, a minha obra. Sob esse ponto de vista, penso que a minha imagem não tem importância nenhuma para a maneira como os meus leitores observam a minha obra.

Compreendo que não é fácil perceber onde termina o indivíduo e começa o artista, talvez porque seja impossível separá-los, que nem os Hemisférios de Magdeburgo, mas não penso que a imagem, seja ela qual for, desempenhe um papel preponderante na criação artística, nem que seja pelo facto de que esta é um fenómeno imaginal e a imagem é, por natureza, fenotípica – ou seja, excepto nos casos em que a criação passa, também, pela imagem pessoal do artista, ela pouco ou nada se relacionará com a obra; por conseguinte, poderá ser, somente, uma curiosidade, um faits divers.

O meu discurso é «pausado» e «ponderado», porque, na maioria das vezes, em virtude da minha obra e dos temas sobre os quais escrevo, encontro-me em situações em que tenho de discorrer sobre assuntos complexos e estes, na minha opinião, não devem ser reduzidos ou apressados. Sou um indivíduo que racionaliza tudo, constantemente, e isso afasta-me da frivolidade que, por vezes, o ambiente social cultiva e que parece ser um fabuloso ascensor para um determinado tipo de popularidade que, com toda a sinceridade, não me interessa. Esse tipo de popularidade, assente no efémero e no transitório, não é a minha praia, perdoe-se-me o plebeísmo: estou aqui para a longa-duração e se tiver de sacrificar algumas comodidades para alcançá-la, sacrifico-as. Sou um indivíduo que lê dicionários como quem lê romances: do início para o fim. Há uma certa magistralidade nesta atitude, confesso, mas aquela que advém do puro gozo pessoal sentido por quem, no fundo, não tem interesse absolutamente nenhum naquilo que se diz ou escreve sobre si próprio. Não perco tempo com coisas inúteis e, em definitivo, não peço desculpa por existir: a falsa modéstia não é um dos meus múltiplos defeitos.

Fala muitas vezes da sua voz autoral, quase como se fosse uma entidade distinta. Essa voz nota-se ao longo da sua obra, mas foi sempre assim? Ou seja, quando é que essa entidade nasceu ou, melhor ainda, quando é que se deu conta que ela existia?

A voz autoral relaciona-se com aquilo que um criador tem para transmitir. Se não se for um criador, a voz autoral não existe: será mais recompensador procurar-se por harmonia na música pop contemporânea. Existem vários elementos importantes numa obra literária, como eufonia, respeito pela gramática, arrojo, desrespeito pela gramática, um sentido de missão que quase alcança o significado religioso dessa palavra, mas nenhum é tão importante quanto estes dois: a voz autoral e o tom da obra. A primeira é formada pelo conjunto das mais vigorosas características de um autor e define aquilo que torna singular cada autor. Um autor é um criador que se preocupa com um tema-chave ou vários temas-chave em especial e os vai interrogando a cada nova criação; sendo assim, é fácil entender que os autores se definem pelos seus universos autorais, mas estes desenvolvem-se sempre a partir de um núcleo primitivo de sentimentos, imagens e ideias primordiais que são intrínsecos a diferentes indivíduos. Não se escolhe ser autor: é-se autor.

A minha experiência é esta: sou inquieto, insatisfeito e obstinado. Tenho de agarrar nos meus temas, nos meus desassossegos, e fazer-lhes perguntas. Elas levam-me a sítios inesperados, no entanto a voz com a qual as faço é a mesma. Essa identidade é que oferece autenticidade à obra e faz com que um determinado livro só possa ter sido escrito por um autor em particular. Nesse sentido, aquilo que diferencia um autor de um executante é o seguinte: este, de forma fabricada, vai ao encontro de certa temática numa direcção de fora para dentro – por gosto genuíno ou até por cínica conveniência, isso não interessa para o desfecho –, enquanto o primeiro, de modo inato, vai ao encontro de certa temática na direcção de dentro para fora – por inteira inquietação, porque entre temática e indivíduo não existe distância nenhuma. Os autores são os seus temas.

Sempre observei a arte do ponto de vista de um criador, de um autor, e, por essa via, consciencializei-me muito cedo que esse ponto de vista era peculiar e, por natureza, desigual do ponto de vista de um destinatário. Os tons das obras sempre me fascinaram e aprendi, desde cedo, a apurar os sentidos para compreendê-los – e para capturá-los nas minhas obras. O tom de uma obra é a sua voz, que fala em paralelo com a autoral. Uma obra tem sempre duas vozes: a do autor e uma própria. Enquanto autor, cada nova obra que faço é sempre construída com base no tom: o tom é o sustentáculo de tudo e cada parcela tem de harmonizar-se com ele. Pensem naquilo que Rick diz a Louis no final de «Casablanca», mas, mais do que uma «bonita amizade», tem de existir uma simbiose perfeita entre o tom da obra e a voz autoral. Normalmente, quando uma obra fracassa em transmitir uma mensagem ou uma ideia é por culpa de problemas de tom. Esta qualidade, tão transparente e tão tangível quanto celofane (que, por acaso, é uma das minhas palavras preferidas), é difícil de apurar. Já abandonei a escrita de livros, porque tive dificuldades em apurar o tom certo que tinha em mente, por exemplo. Há livros que a gente abandona e, mais tarde, reencontra, com outra idade e outro ponto de vista, mais adequados ao tom que, originalmente, se tinha em mente. Um escritor não é um futebolista, cuja carreira termina aos trinta anos de idade: tem-se dezenas de anos para reencontrar ideias e aperfeiçoá-las. Quem não for paciente, nunca poderá ser escritor.

Tendo em conta essa voz autoral e o seu universo autoral específico, muito visceral, filosófico e muito pouco aconselhado a crianças e pessoas sensíveis, como é que deu consigo a escrever um livro infantil (O Homem Corvo, Saída de Emergência), e como é que foi essa experiência?

Não tenho muitas ideias que possam servir de ponto de partida para livros infantis, mas, ainda assim, vou imaginando algumas. Acho que as crianças adoram histórias negras, histórias perigosas – somente têm de ter um enorme sentimento de faz-de-conta, senão as ideias negras e perigosas podem tornar-se muito duras. Desde que as ideias mais heterodoxas sejam expostas de um modo que faça as crianças sentirem-se num mundo de faz-de-conta total, que poderão abandonar por uns instantes e, em seguida, regressar quando quiserem, tudo resultará bem e não haverá lágrimas, nem equimoses. Psicologiza-se demasiado sobre se certas referências serão ou não boas para crianças e, às vezes, investe-se num discurso paradoxal, quando, no fundo, a verdade é que basta transmitir-lhes, claramente, a noção de que é tudo a fingir. Recordo que as crianças seiscentistas rebolavam a rir a ver gatos reais a serem incinerados em massa em fogueiras no meio das praças e, contudo, cresceram e tornaram-se adultos responsáveis e empáticos – algumas até se tornaram autores de títulos maiores da literatura ocidental. Há trezentos anos, há duzentos anos, o entretenimento popular, impresso em folhas volantes e folhetins, era mais violento que as imagens televisionadas das guerras contemporâneas e, não obstante, a sociedade é obcecada em censurar imagens cada vez mais depuradas, o que é particularmente patético no que concerne à ficção. Dito isto, «O Homem Corvo», que é uma fábula bem inocente, transmite um elevado sentimento de faz-de-conta.

Esse livro partiu de uma ideia para uma história que andava há anos na minha cabeça e que acabei por concretizar somente para colaborar, propositadamente, com os ilustradores, porque tivemos vontade de fazer um livro juntos. A criação foi uma experiência agradável e acho que algumas coisas que estão no livro resultaram muito bem. As ilustrações são admiráveis.

Tenho uma ideia para criar outro livro infantil, que será diferente de «O Homem Corvo» – mais alienado, com maior propensão para o antilogismo e para o grotesco –, mas ainda não encontrei um estilo de ilustração adequado a essa história.

Como se pode ver pela sua incursão no livro infantil, nos álbuns de spoken word, nos romances, contos, ensaios e livros de BD, não tem qualquer problema em experimentar diferentes géneros. Ou melhor dizendo, linguagens. Imagino que não tenha problemas em, um dia, escrever um guião duma curta-metragem ou de um filme, se a ideia lhe surgir com esse formato, mas como reagiria a uma proposta de adaptar um conto ou um romance seu para uma curta ou um filme? E qual seria o seu envolvimento num eventual projecto?

Sei como se escreve um argumento de cinema e já escrevi argumentos para projectos de curtas-metragens que nunca se concretizaram, mas não foi algo que eu gostei de fazer. Gosto de cinema, enquanto espectador: enquanto criador, não gosto dessa linguagem e não tenho nenhum interesse em ver obras minhas adaptadas a ela. Se alguém quiser fazer um filme a partir de algum dos meus livros, tudo bem, faça-o, mas se isso não acontecer não me irei aborrecer. O que se passa é que o mundo pictórico não me magnetiza: prefiro palavras. Isto poderá parecer estranho, porque escrevo banda desenhada – e já desenhei bandas desenhadas –, mas, para mim, a banda desenhada é uma linguagem narrativa, não é pictórica. A ilustração, a pintura são pictóricas. Em oposição, a banda desenhada é literária. Todas as diferentes linguagens com que vou desenvolvendo as minhas obras são literárias.

A liberdade que eu sinto em ser capaz de trabalhar em linguagens literárias diferentes é embriagante e aquilo que, constantemente, aprendo numa, acaba sempre por ser útil em outra. Neste momento, três das minhas obras mais-queridas, «Palmas Para o Esquilo», um livro de banda desenhada, «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense», um disco de spoken word, e «Batalha», um romance, representam, para mim, o antídoto ideal para aquilo que Baldassare Castiglione cunhou com o nome de sprezzatura: o ar de desprendimento que um artista dá diante da complexidade que deu criar a obra. Ou seja: a maioria do público acha que é fácil ser-se escritor, porque alguns, para efeito de achegamento comercial aos leitores, dão a impressão propositada de que escrever é divertido e simples, quando, na verdade, é árduo e arriscado. Escrevo profissionalmente há catorze anos e só passado este período é que dei por mim a escrever textos com os quais me sinto totalmente identificado, como os de «Palmas Para o Esquilo», «Os Anormais» e «Batalha», obras que qualifico como sendo as minhas melhores. O meu gosto literário inclina-se para o pirotécnico, para o estilo que os gregos chamaram de auxesis e os romanos de amplificatio: gosto de palavras sesquipedálicas, gosto de inventar palavras – todo o léxico ocidental foi inventado por escritores, para começar. Essa é a tradição de que faço parte. Não me insiro na tradição do entretenimento.

À vista disto, só posso sentir desconsideração por quem trata com leviandade a arte da escrita, menosprezando a importância das palavras e escrevinhando aquilo que eu apelido de filmes disfarçados de livros. Na verdade, não os considero, de todo, escritores. Para mim, ser-se escritor é ser-se erudito, é ser-se alguém para quem o conhecimento e as palavras são as coisas mais importantes do mundo. Pense-se em escritores como Robert Burton, Cervantes, Nabokov, Laurence Sterne, William Gass, Alexander Theroux, entre outros. A literatura anda há demasiado tempo demasiado perto da indústria do entretenimento e precisa aproximar-se, novamente, do conhecimento e das palavras. Precisamos de recuperar a tradição do romance macrocéfalo, enciclopédico. Precisamos de mais macroficções e de menos microficções.

Esta versatilidade de formatos permite-lhe ter uma abrangência fora do vulgar, em termos de público, mas a sua escrita e o tipo de histórias/ensaios que escreve são claramente dirigidos a um público muito específico. Mas também tem uma posição muito forte quanto ao estado da Cultura na sociedade de hoje. Não acha que obras mais acessíveis – não necessariamente dumbed down, atenção – seriam úteis para atrair mais pessoas e, de certa forma, educá-las?

Não acho que a arte tenha de educar ninguém. Pelo contrário: acho que a arte tem de deseducar toda a gente.

Tenho absoluta consciência que a minha obra não é para todos, mas seria incapaz de tornar-me um executante e fazer algo mais comercial, que reunisse com rapidez superior um maior número de leitores. Junte-se um grupo heterogéneo de pessoas numa sala e tente-se encontrar um consenso entre elas: esse consenso terá de ser muito simples, porque, em virtude da multiplicidade de gostos e de opiniões manifestados, apenas uma percentagem reduzidíssima de referências será partilhável. Ao criar-se uma obra com base nessas referências ela será, certamente, gostável pelo grupo inteiro, mas, infelizmente, também será pobre em conteúdo, por culpa da redução de opções que lhe está na origem. Ou seja: as obras mais populares costumam ser, em regra, muito simples. Não estou a imprimir sobre estas obras nenhuma avaliação quanto à sua qualidade, apenas quanto à sua popularidade. No meu caso, as minhas obras contêm sempre um grau elevado de complexidade que advém do facto de eu ser um indivíduo incapaz de fazer coisas simples.

Não estou a ser airoso, estou a ser o mais franco possível. Tenho vocação para complexificar as coisas e criar obras polissémicas que são ariscas a leituras e leitores impacientes. Aliás, os leitores que se aproximarem da minha obra em busca de se entreter e passar um bom bocado farão melhor se pensarem duas vezes e irem procurar outras coisas. Entreter não é comigo, como diria o Léon Bloy: «o autor nunca prometeu divertir ninguém – prometeu até o contrário e cumpriu fielmente a sua palavra». A minha substância não é a de simplificar. Em consequência, tive de aprender a aceitar a realidade de que aquilo que escrevo será sempre para leitores que pensem da mesma maneira que eu; ou, no mínimo, para leitores que gostem de ler sobre os temas que compõem o meu universo autoral, que gostem de conhecimento e que gostem de palavras.

Se a maioria do público não tem vontade ou capacidade de ler obras complexas, isso será um problema que não me diz respeito, assim como acho que não deva ser problema de nenhum autor. O público gosta de ser crítico e de exigir melhores escritores e melhores livros, mesmo que a sua concepção de “melhor” seja discutível, por isso não vejo por que razão é que os escritores não devam exigir leitores melhores: leitores corajosos que, de facto, gostem de ler bons livros. Eventualmente, cada indivíduo procurará obras que o seu gosto e as suas limitações lhe permitam apreciar, por isso sinto-me satisfeito por saber que os meus leitores são pessoas inteligentes, originais e com disponibilidade para aprender.

Continuando na mesma linha, já disse em várias ocasiões que não gosta de feiras de livros nem de bibliotecas. Porquê?

Não aprecio feiras do livro, é verdade, mas entenda-se que o meu ponto de vista é persuadido pelo facto de ser autor. Na verdade, compro dezenas de livros cada vez que vou a uma feira do livro, logo do ponto de vista comercial sou um magnífico cliente.

No entanto, nunca disse que não gosto de bibliotecas: simplesmente, disse que não sou fã de ir a uma biblioteca para ler ou consultar livros, porque prefiro comprá-los e tê-los. Só vou a uma biblioteca consultar um livro se não conseguir comprá-lo nos alfarrabistas ou pela Internet. Para mim, os livros são ferramentas e, assim sendo, preciso de tê-los à mão, preciso que o conhecimento esteja imediatamente acessível. Tento evitar no máximo das minhas capacidades interromper o meu estudo ou a minha escrita durante umas horas ou uns dias só porque me falta um material bibliográfico de consulta em especial: se o tiver em casa não preciso de interromper coisa nenhuma, basta-me ir às estantes. Construo um espaço mental para os livros com base na minha biblioteca pessoal e preciso de ter, em todos os momentos, essa relação de proximidade com eles. Logo, observo as bibliotecas como uma espécie de “disco externo”, que ligo de vez em quando. Mais uma vez, sublinho que o modo como eu olho e vivo este mundo é muito diferente do modo como um leitor o olhará e viverá. O modo como eu lido com os livros será outro, também.

Há pouco falei no conceito renascentista de sprezzatura e, em paralelo, vale a pena recordar que, também para efeito de aproximação comercial ao público, muitos artistas dão uma imagem propositada de que são parecidos com o público, o que não pode estar mais longe da verdade: se os artistas fossem parecidos com o público, eles seriam público. E não são. O público precisa de entender que os artistas não são pessoas normais. Os artistas vêem as coisas de um modo diferente e pensam de modo diferente. É por essa razão que são artistas e são capazes de criar arte.

Também já mencionou algumas vezes que cada vez lê menos ficção. Não será contraditório que um autor que escreve ficção leia pouca ficção?

Não sei se será contraditório, mas sei que é muitíssimo comum: existem inúmeros escritores que não lêem ficção, pelos mais diversos motivos. Alguns até por snobismo – que não deixa de ser um motivo legítimo, note-se. No meu caso, para ser brutalmente sincero, não tenho tempo, nem motivação, para ler histórias, porque, na maioria das vezes, isso é-me desconfortável: a ficção é demasiado cristalina para mim, demasiado atingível. Assim, no que concerne à ficção, somente vou comprando os novos livros escritos por autores que eu admiro e todos os clássicos que, até hoje, ainda não tive oportunidade de ler.

Mesmo lendo pouca ficção, vai acompanhando o que se faz em Portugal?

Essa pergunta fará mais sentido para um leitor. Os leitores é que acompanham as novidades, os novos autores, os novos livros. Isso é um comportamento de fã. Eu não sou um fã, mas um autor. Não acompanho nada: escrevo e os meus livros são publicados. É tão simples quanto isso.

Falando da sua BD, demonstra sempre uma grande admiração pelo traço do Pedro Serpa, com quem já participou em duas BD (O Pequeno Deus Cego e Palmas para o Esquilo, ambas da Kingpin). Acha que a simplicidade e a clareza do traço dele são o contraste ideal para a sua escrita complexa?

Admiro o Pedro Serpa pela qualidade do seu desenho, que considero um dos melhores da nossa actualidade, e pelo facto de ele ser temerário e não resmungar quando lhe peço para desenhar um dragão deitado em centenas de caveiras, todas diferentes. Mas gosto de trabalhar com ele no mesmo feitio que gosto de trabalhar com outros desenhadores que compreendem os meus métodos.

Os meus livros de banda desenhada são imaginados, escritos, planificados e esboçados por mim antes dos desenhadores serem convidados a concretizar a minha visão. No meu caso, as parcerias surgem somente da minha necessidade de ter desenhadores que dêem corpo às minhas visões, não preciso de ninguém para criar uma história a meias. Quando entrego as histórias aos desenhadores para serem desenhadas elas já estão fechadas e planificadas. É óbvio que os desenhadores têm liberdade para criar; em especial, na caracterização de personagens e de ambientes, desde que as suas escolhas gráficas não se intrometam na montagem das sequências e dos planos, porque, como penso nos livros como um todo, uma ténue mudança de plano ou de sequência numa parte, não fará sentido narrativo com outras partes que surjam adiante. É por isso que peço aos desenhadores para seguirem escrupulosamente as minhas planificações. O que não invalida que eles tenham boas ideias que sejam aplicadas: o Pedro Serpa, por exemplo, em «Palmas Para o Esquilo» decidiu que nenhuma personagem deveria ter sombra, excepto as que defini no argumento como sendo essenciais para a história. Foi uma excelente ideia, que fez todo o sentido no livro em questão, tornando-o mais misterioso – o leitor até pode não se aperceber imediatamente desse pormenor, mas ele irá criar uma sensação perturbante na leitura. O André Coelho, em «Sepulturas dos Pais», livro que iremos publicar este ano pela Kingpin Books, também teve boas ideias para a construção gráfica de ambientes que tornaram o resultado final ainda mais perturbador. Esse tipo de sinergias e de troca de boas ideias é que, para mim, são as verdadeiras colaborações. No fundo, quando toda a gente envolvida no projecto é profissional e segura em relação às suas qualidades o resultado final só pode ser bom. Infelizmente, já tive de cancelar colaborações com alguns artistas que apenas queriam inventar as suas histórias a partir das minhas ideias, porque, convenhamos, criar algo a partir de uma história já escrita e planificada é muito mais fácil que imaginar uma a partir do zero. Não tolero esse tipo de parasitismo e falta de talento.

Aquilo que a maioria do público não se apercebe é que quem deseja escrever não escolhe, à partida, a banda desenhada, que é uma linguagem abordada, em primeira instância, por quem quer desenhar. Todavia, querer desenhar é muito diferente de fazer banda desenhada, que é uma linguagem narrativa. A maioria dos desenhadores não quer transmitir ideia nenhuma: somente quer mostrar que desenha bem – é por isso que quase todos os livros de banda desenhada criados, em exclusivo, por desenhadores são maus de um ponto de vista literário. Em essência, nesses livros cada vinheta transforma-se numa tela para mostrar virtuosismo gráfico, em vez de consistir parte de uma sequência harmoniosa, pensada para integrar-se num todo. De facto, são livros muito mal sequenciados. São raros os artistas que têm boas competências narrativas e existem muitos desenhadores que só estão interessados em colaborar com um escritor se este se limitar a dar umas ideias para esses, depois, desenharem o que quiserem.

Ora, eu não poderia trabalhar de forma mais diferente, porque não sou um simples argumentista: sou um autor, o que, à luz do que disse anteriormente, significa que tenho um universo autoral próprio, estruturado numa obra que já conta com quase vinte livros, de banda desenhada e prosa. Daí que quando convido um desenhador para dar corpo à minha visão, ele é que tem de adaptar-se ao meu universo e não o contrário.

Além da escrita, outra marca distintiva da sua obra são os temas, frequentemente macabros e sempre pesados, ou tratados de forma pesada. Não há lugar para ligeirezas, no tema ou na linguagem. Claramente são temas que de certa forma o preocupam, mas disseram-me uma vez algo muito interessante e que espero ainda me lembrar como deve ser: numa entrevista que nunca consegui encontrar, o David disse que ficava obcecado com um tema, escrevia três coisas sobre o assunto, para o encerrar, e avançava. É de facto assim?

Essa é uma leitura incorrecta de algo que eu disse algumas vezes e que é o seguinte: a minha obra vai sendo criada através de fases diferentes. O que acontece é que eu observo os meus temas de um determinado ponto de vista autoral e essa observação pode demorar-se por dois, três livros, quatro livros, nunca sei quanto tempo vai durar. Em seguida, esgoto esse ponto de vista – temporariamente ou em definitivo – e encontro um novo. Imagine-se que os meus temas são um modelo e eu vou desenhando à volta desse modelo, de acordo com diversos pontos de vista: o modelo é sempre o mesmo, os pontos de vista é que vão mudando. São assim, os meus livros: são observações, interrogações que eu faço aos temas que me deslumbram e que me inquietam.

Essas várias fases diferenciam-se por tónicas, certas insistências semânticas ou técnicas, pendores, dimensões. Pode acontecer que, em determinado momento, me encontre mais preocupado com um ponto de vista alegórico, por exemplo, em oposição a um ponto de vista realista. Os meus romances «A Conspiração dos Antepassados» e «O Evangelho do Enforcado» têm um pendor mais realista que «Batalha» ou «Lisboa Triunfante». Este vai mais ao encontro da autenticidade, sem querer, de facto, ser realista, embora, na minha cabeça, pertença ao mesmo ponto de vista que «A Conspiração dos Antepassados» e «O Evangelho do Enforcado». Bandas desenhadas como «Mucha», «O Pequeno Deus Cego» e até «Palmas Para o Esquilo» são mais alegóricas que bandas desenhadas como «Mr. Burroughs» ou «Sammahel», que estão mais preocupadas em explorar os mecanismos da criação artística. «A Última Grande Sala de Cinema», «Os Anormais» e «Palmas Para o Esquilo» são uma variante de uma preocupação autoral minha que eu apelido de Teoria do Todo: são visões que partem do microcosmos para o macrocosmos, obras em que eu começo por falar sobre assuntos muito próximos de nós para, num ápice, estar a discorrer sobre física, cosmologia, história e a interligar esses elementos num todo coerente e fluido. No primeiro caso, o ponto de partida é o cinema; no segundo, a deformidade; no terceiro, é a loucura. «Batalha» é, sobretudo, um romance sobre linguagem, sobre palavras. Cada livro tem preocupações distintas e observa os meus temas de um ponto de vista diferente.

E qual é exactamente a sua relação com a religião e o oculto? Afinal, é ateu, mas não me parece que tome uma posição excessivamente crítica. Também ainda não li o Batalha, confesso, portanto esta questão já pode estar respondida, mas tanto em A Conspiração dos Antepassados como em O Evangelho do Enforcado (os três livros são da Saída de Emergência), há uma identificação, ou pelo menos ligação, entre a arte e a religião. Porquê?

Não vejo essa ligação apontada entre a arte e a religião e tenho alguma dificuldade em ver onde é que ela poderá existir, mas estou aberto a essa possibilidade. A minha relação com a religião e com o oculto é baseada no puro interesse histórico. Sou um estudante desses temas e gosto de escrever sobre eles, mas não acredito em nenhuma manifestação do sobrenatural, seja de ordem religiosa ou mágica. Aliás, a magia é, ela própria, uma crença. Com efeito, sou ateu, nem sequer sou agnóstico. Para a maioria das pessoas é provável que a dimensão humana não seja suficiente, mas para mim é. Todavia, reconheço que a espécie humana é a da transcendência: precisamos dela e é por essa razão que inventámos a arte, a ciência e a religião. O problema é que a ciência é demasiado complexa para ser acompanhada pela maioria das pessoas e, por culpa disso, não as faz sonhar. Por outro lado, as religiões e o oculto são sistemas muito simples, estruturados em conceitos basilares fáceis de perfilhar e interpretar. Não deixa de ser irónico que as leis da magia sejam em número idêntico às quatro forças físicas: são a lei da similitude, a lei da contrariedade, a lei do contágio e a lei da contiguidade. Com estas quatro leis, formuladas desde os tempos clássicos, gregos e romanos, estrutura-se, praticamente, todo o edifício do ocultismo ocidental. A maioria dos indivíduos precisa de ideias previsíveis e de um sistema previsível, porque o mundo e o universo são altamente imprevisíveis, embora não pareçam. A ciência é um sistema que, volta e meia, é revisto, quando surgem novas descobertas que tornam obsoleto ou incompleto o conhecimento anteriormente adquirido. Esse labor de revisão é anátema para qualquer religião revelada, porque uma religião revelada ergue-se sobre verdades imutáveis. A autoridade das religiões reveladas consiste na sua imutabilidade e essa qualidade é que conforta os seguidores.

Posto isto, acho que a separação de magistérios, chamemos-lhe isso, entre ciência e ocultismo, nem sempre foi clara e linear. No campo da medicina, por exemplo, somente a partir da aceitação da teoria dos germes é que as práticas médicas se foram, gradualmente, desenvolvendo numa esfera apartada das crenças mágicas e ocultistas. Nos séculos XVII e XVIII não existia grande diferença entre a medicina e a magia. O ocultismo ocidental contemporâneo é uma herança do revivalismo ocultista europeu da segunda metade do século XIX, que foi um movimento contracultural anticientífico. Na verdade, a partir desse período é normal encontrar-se ocultistas que rejeitam, liminarmente, a ciência e cientistas que repudiam, veementemente, o oculto, mas nos séculos anteriores ambos os sistemas estavam mais próximos e era comum encontrar-se cientistas-ocultistas e ocultistas-cientistas. A fronteira entre o ocultista e o cientista era mais delgada, ambos partilhavam mais travejamentos.

Até agora, todas as histórias que li suas me pareceram fechadas, com um princípio, um meio e um fim, sem pontas soltas relevantes. Considera que é assim, ou acha que há espaço em algum trabalho para algum tipo de regresso?

Não tenho ideias de regressar a nenhum dos meus livros para criar uma sequela, uma prequela, um remake ou um reboot. Como disse, cada livro é uma observação pensada num determinado momento e, sendo assim, não faz sentido refazer uma observação: faz sentido fazer observações novas, com novos pontos de vista.

Aligeirando a conversa, o que é que pode dizer sobre Sepultura dos Pais, que já tem lançamento anunciado para Outubro? Pelas imagens que já divulgou, parece-me mais próximo de Cidade-Túmulo e A Última Grande Sala de Cinema (ambos da Círculo de Abuso), pelo menos em termos visuais.

«Sepulturas dos Pais» é um livro sobre o fracasso. É muito duro, mas encerra na perfeição uma das minhas obsessões autorais: a de que entre o lixo mais sórdido se encontram as flores mais maravilhosas. Gosto de trabalhar esses conceitos antagónicos e de perceber até que ponto se podem aproximar sem se anularem. Basicamente, é agarrar na miséria para descobrir magia e agarrar na magia para descobrir miséria. Muitas vezes, basta somente mudar a fonte ou o grau de iluminação para que uma se transforme na outra. O desenho do André Coelho é perfeito para esta história e transmite uma força e uma negrura que, espero, impressionarão os leitores. De um ponto de vista da técnica do desenho, o André faz coisas espantosas com o preto-e-branco: as texturas que criou para «Sepulturas dos Pais» são de uma organicidade como raras vezes tenho visto. Gosto muito de trabalhar com o André, com quem já colaborei num dos capítulos de «É de Noite Que Faço as Perguntas» e recomendo vivamente o seu livro «Terminal Tower», feito em colaboração com Manuel João Neto.

E para terminar, que perspectivas há de outros trabalhos futuros?

Estou a trabalhar, alternadamente, num romance, num livro de não-ficção e num livro de banda desenhada. O romance seguirá a fase iniciada com «Batalha», mas numa toada muito mais niilista. O livro de não-ficção é um trabalho de longa-duração sobre um tema que eu conheço muito bem e sobre o qual irei apresentar algumas visões heteróclitas sobre temas que muita gente pensa estarem esclarecidos. A banda desenhada intitula-se «O Poema Morre» e consiste numa história negríssima e duríssima sobre guerra.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Que as citações nos caiam em cima [39]


"As nossas vidas estão riscadas nas palmas das mãos, como verdascadas de água na superfície da terra.

Então, batemos palmas para baralhar a vida, à espera que a vezada seguinte seja mais venturosa.

Viciámo-nos nesse jogo.

No entanto, as linhas das mãos são foscas como as faces dos fetos. Não se pode baralhar a vida. Só se pode vivê-la.

Adaptamo-nos desde a infância àquilo que nos foi talhado por forças imperceptíveis.

Obstar seria mergulhar onde babujam miseráveis cardumes. Seria húbris.

Loucura."

Palmas para o Esquilo
David Soares

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Palmas para o Esquilo

Título: Palmas para o Esquilo
Argumentista: David Soares
Desenhador: Pedro Serpa
Legendagem: Mário Freitas

Opinião: Este é um livro muito estranho. Confesso que tive que o ler 2 ou 3 vezes seguidas. Já conhecia o trabalho conjunto de ambos os autores, em O Pequeno Deus Cego, e a primeira impressão foi a de que este Palmas para o Esquilo é um livro radicalmente diferente desse.

Há pontos em comum, pois como o David Soares disse no lançamento, as suas obras têm vindo a evoluir e a aproximar-se cada vez mais da alegoria. Desse ponto de vista é possível ver claramente as tendências alegóricas de ambos os livros, e a forma visceral como exploram os seus temas.

Mas se O Pequeno Deus Cego se passa numa China feudal, este passa-se nos dias de hoje, em Portugal (ainda que isso não seja especificado, e se possa considerar que ocorre num sítio qualquer). E se o primeiro já impressiona, não só pela escrita de David Soares mas também pelo traço de Pedro Serpa, este ainda causa uma impressão mais forte.

A sensação que tive foi a que tenho ao ver uma curta-metragem sem som a ser comentada pelo realizador. Acho que os desenhos de Pedro Serpa contam perfeitamente uma história por si só, assim como o texto de David Soares nos obriga a pensar, sem mais nada. A junção das duas dá um resultado curioso, em que as duas coisas são facilmente discerníveis, mas dificilmente separáveis.

Ou seja, embora ambas as coisas se aguentem sozinhas, e não precisem uma da outra para terem valor próprio e fazerem o seu trabalho de forma coerente, depois as ver juntas é muito complicado imaginar uma sem a outra.

A história passa-se num asilo, e as personagens loucas são um dos pontos fortes desta BD, de tão bem retratadas que estão. A principal, então, que quase não fala, é bastante expressiva nas suas acções e nas suas memórias. A loucura, ou imaginação, que o assola, tem uma evolução rápida ao longo das páginas, e vê-lo a cair no abismo da sua mente é indescritível.

Só há uma coisa neste livro que não me agradou por aí além, e que não sei se se justifica completamente. O vocabulário usado por David Soares. Eu bem sei que a sua escrita é tipicamente assim, e já estou mais do que habituado a ter um dicionário por perto quando o leio, mas acho que neste caso talvez tenha exagerado.

A sua escrita habitualmente complexa e trabalhada, chega a ser quase incompreensível nalgumas passagens, sem o auxílio de um dicionário a cada 2 palavras. Isso tem um propósito e faz parte do estilo do autor, mas a mim dificultou-me a leitura, e não me deixou envolver tão completamente como podia ter acontecido. É um caso em que acredito que uma escrita mais simples provavelmente tornaria o livro melhor.

Mas fiquei bastante agradado na mesma, especialmente com os desenhos de Pedro Serpa. Nota-se uma evolução, e as suas imagens fortes desenhadas de forma simples são claramente uma imagem de marca, com todo o seu traço a contrastar fortemente com a escrita de David Soares, e a criar um efeito bastante interessante.