sábado, 30 de agosto de 2014

Literatura de rua



Lembro-me como se tivesse ontem de aprender a ler. Do espanto que foi quando as letras começaram a fazer sentido. Foi uma sensação fantástica de descobrir um mundo novo espalhado por todo o lado.

O espanto que foi quando se aperceberam que aprendi rápido, e já lia legendas de filmes e textos virados ao contrário mais rápido do que era suposto. Não demorei muito a dizer aos meus pais que já não precisavam de me ler histórias e a pegar eu próprio nos livros, que já conhecia tão bem.

Eventualmente, deixei de me esforçar. Não era preciso. Como acontece com praticamente toda a gente, ler tornou-se um acto inconsciente. Já não via letras, via palavras. Desde aí que tento ver letras de vez em quando, mas não consigo. Já não sei o que é olhar para textos e ver algo misterioso e insondável.

Essa sensação deve ser parecida à de olhar para um texto em russo, ou em japonês, ou outra língua qualquer com um alfabeto diferente, mas não é a mesma coisa. Consigo delimitar palavras, identificar frases, perceber, pelos sinais de pontuação, a estrutura do texto. Com tempo e exemplos suficientes consigo apanhar padrões e até perceber algumas coisas!

Mas antes de aprender a ler não havia nada disso. Não sei descrever essa sensação, mas devia ser de uma estranheza profunda. Ou então era um encolher de ombros para descartar o assunto sem sequer pensar nele.

Quando isso acabou, no entanto, as palavras ganharam um poder incrível. E naquele momento em que ler se tornou natural... Bem, aí nunca mais parei. Para onde quer que olhasse, lia qualquer coisa. Uma das coisas que eu mais gosto de fazer quando estou na rua, é ler tudo o que encontro. Até nomes de loja. Foi quando descobri a literatura de rua.

Já pensaram nisso? Que vão a ler enquanto caminham na rua. Experimentem. Cada nome de loja, cada papel de publicidade, cada graffiti... Histórias! Os cafés têm com frequência nomes bastante engraçados, já tentaram imaginar de onde vêm? Os graffitis, espalhados um pouco por todo o lado, podem ser grandiosas obras de arte ou nomes gatafunhados num canto. Os primeiros são autênticos livros da vida de quem os fez, têm uma mensagem; os segundos demonstram irresponsabilidade e vontade de ser irreverente, mas incapacidade de ter criatividade. Ou talvez sejam mais subtis que os outros.

Da próxima vez que passarem por uma loja e tiverem que especular sobre o nome por faltarem duas ou três letras no anúncio, pensem na razão. É uma loja antiga, talvez passe de geração em geração, lentamente a definhar por ser ultrapassada pelos concorrentes, mais modernos? Será uma loja obscura com sucesso num nicho que não quer saber do anúncio em cima da porta, pois os clientes já fazem da visita à loja parte da rotina? Ou é uma loja recente, vandalizada? Porque é que foi vandalizada? Azar? Motivos pessoais?

As possibilidades são tantas... E ninguém parece prestar atenção. Pensem nisso da próxima vez que saírem à rua, chateados por terem que interromper a vossa leitura para ir comprar pão, ou para ir trabalhar, ou visitar um familiar chato como o caraças: continuem a ler. É só ter atenção.

2 comentários:

pedro disse...

Lembro-me tão bem de quando não sabia ler. O que eu mais queria era aprender. Olhava para as paredes nas ruas, com coisas escritas, e não sabia o que era. Andava sempre a pedir que me lessem, e a desejar fazê-lo sozinho.
Curiosamente, tenho experimentado um bocadinho essa sensação agora que me pus a tentar aprender um bocado de grego e o alfabeto é diferente. E continua a ser uma sensação incrível quando já "não vemos letras mas palavras".
Boas recordações que o teu texto me trouxe ;)

Rui Bastos disse...

Ai está! E ainda bem que te trouxe recordações :)