Escrever não é fácil. Sei-o por experiência, a pouca que tenho. Um leitor muitas vezes não tem noção das horas, dias, semanas, meses e até anos que estão por detrás de determinado livro. Lemos, descansadinhos da vida, sentados no sofá ou deitados na cama, e criticamos uma vírgula mal posta ou uma personagem mais fraca com a facilidade e o desprezo de quem fazia melhor.
E se calhar até fazíamos. Eu, que tenho problemas em usar as vírgulas da melhor maneira, e que tenho um dom para a ocasional personagem unidimensional, dou por mim a ler algo e a pensar “que caraças, isto devia estar de outra forma”. E até tenho razão algumas vezes, como a maior parte dos leitores tem muitas vezes. Se há erros e coisas mal feitas, é preciso apontá-las, para que possam ser melhoradas. Sem sombra de dúvida!
Mas também é preciso ter noção que a escrita não é pêra-doce. Enfrentar uma página em branco, já a saber que cada palavra ali escrita há-de ser lida e escrutinada por alguém, não é uma tarefa simples. Acabar um texto, seja um conto de duas páginas ou um romance de quinhentas, pode ser ao mesmo tempo um alívio e uma enorme causa de ansiedade.
No entanto, se querem algo mesmo complicado, experimentem escrever a chamada “literatura de género”, que é assim chamada porque já sabemos que só os livros intelectuais que retratem dramas da vida real com palavras delicodoces é que são dignos de serem literatura a sério, e estão sempre tão perto de serem obras-primas que nem se inserem num género.
Enfim. Como estou a escrever para pessoas inteligentes, vamos usar os nomes certos: experimentem escrever dentro do Fantástico. Seja ficção científica, fantasia, terror, ou qualquer subgénero e/ou variação que conheçam, descubram, ou inventem. A primeira dificuldade é que não há muitos leitores casuais inseridos nestes géneros (nem gosto de lhes chamar géneros por si só, mas isto é conversa para outra altura), da mesma forma que os há na literatura mainstream (espero que gostem de ser todos enfiados no mesmo saco de desprezo, como costumam fazer aos outros).
Estamos a falar de literaturas de nicho, apreciadas por um grupo mais restrito de leitores, mas também por isso, mais selecto. Pessoas de gostos apurados, frequentemente especializadas numa ou duas vertentes do Fantástico, que conhecem e já leram muita coisa.
É fácil de perceber: imaginem que escreveram um livro. Acham que é a vossa obra-prima, o livro que vai perdurar na História da Humanidade muito depois de vocês e os vossos descendentes desaparecem da face do planeta (isso é que são expectativas altas!). Estão plenamente convencidos de que o livro está perfeito e que vai vender que nem paus de selfie no Bairro Alto. Quem é que preferem que o leia? Um leitor casual, que lê dois ou três livros por ano, todos durante o Verão, na praia, com um olho no livro, outro nos corpos desnudados, os pés na água e uma bola de berlim na mão; ou o leitor obsessivo, que já despachou uns vinte calhamaços e ainda nem entrou de férias, capaz de recitar todos os punks por ordem alfabética, de applepunk a zebrapunk?
Escolham como quiserem, mas ficam a saber que se escolherem a segunda opção vão ter uma avaliação muito mais completa e, sem sombra de dúvida, muito mais picuinhas. Vão-se arrepender da tarde de escrita em que pensaram se “o carro era azul-marinho com tons etéros, ou azul-celeste com laivos aquáticos”, e concluíram que “bem, não interessa, pormenores”. Porque o segundo leitor vai reparar e vai acusar-vos de inconsistência narrativa.
Sim, eu sei que estou a exagerar um bocadinho, mas é só um bocadinho. Os grandes aficcionados de literatura de Fantástica são máquinas de detectar imprecisões, influências e semelhanças. Fazem-no muito bem e isso raramente se torna desagradável, embora as discussões, das bem feias, existam. Nunca me senti mal no meio desta comunidade, nem como ávido leitor nem como aspirante a escritor amador (aspirador a escritor, como diz a minha namorada).
E como tal, a malta que escreve Fantástico é que tem a vida tramada. E porquê? Porque os leitores que enfrentam em maior número são aqueles que acabei de descrever, atentos, rigorosos e que exigem do que lêem uma qualidade equivalente à sua devoção ao género. E porque o fazem com livros com uma forte componente inventada, não no sentido de inventar uma personagem que se apaixona por outra, ou de inventar um acidente que nunca aconteceu, mas sim o de inventar mundos novos, características novas, intricados sistemas de magia, complexa maquinaria e tantas outras coisas que não cabem em simples lugares-comuns.
Todas estas coisas são difíceis de fazer, ao contrário do que se possa pensar. Não é só escrever “e então o meu protagonista genérico usou a espada mágica que não só cortava os malfeitores como tudo o que lhe aparecesse à frente, e que só menciono agora porque não foi precisa até este ponto”. É preciso que a mentira que se escreve, maior do que na literatura mainstream (saco de desprezo, continuam a gostar?), seja consistente. Mais do que credível, consistente com a sua própria lógica. Convenhamos, homenzinhos verdes nunca vão ser credíveis, e muito menos velhotes de barbas compridas a disparar raios de luz das mãos.
Mas se estiverem de acordo com as regras do universo do livro em questão? Basta ser-se meio escritor e cumprir isso, e têm-se os leitores agarrados e a pousarem o livro para discutirem como é que se conseguem fazer viagens inter-espaciais com o vosso sistema de magia.
O que é que isto significa? Que os livros que se consigam descrever como “festivais de magia” ou “feiras de parafernália tecnológica” estão condenados a falhar. Muito simplesmente porque num livro em que a magia seja algo desregrado e aparentemente sem grandes limites, é difícil fazer com que um obstáculo no enredo não seja inverosímil, da mesma forma que num livro em que haja gadget multi-funções para tudo e mais alguma coisa.
É por isso que a consistência é tão importante. E também os limites, como já se percebeu. Podem haver excepções, é claro, mas é difícil. O deus da Bíblia é ao mesmo tempo bondoso, omnipotente, omnipresente e omnisciente, e ainda assim já viram a quantidade de desgraças que há por ali? Não faz sentido! O John Cena, ainda no tempo em que eu acompanhava o wrestling da WWE, não tinha problemas em atirar a montanha que é o Big Show pelo ar, mas caiu várias vezes a tentar fazer o mesmo ao Umaga, bem mais pequeno (mas ainda massivo, sim). Não faz sentido! E nem quero pensar muito em Doctor Who, que deve ter uma das narrativas mais inconsistentes da história da inconsistência.
Em termos simples, é melhor ser-se discreto. Magia, sim, mas com regras, limites e moderação; gadgets, sem dúvida, mas com regras, limites e moderação. E o mesmo se pode aplicar a tudo o resto que possam imaginar. Não é preciso ser-se tão discreto como George R.R. Martin, que tem uma magia tão discreta em A Song of Ice and Fire que os livros até passam por história medieval alternativa, mas que já está a conseguir frustrar os fãs. Mas sim, regras, limites e moderação.
1 comentário:
Tu quando queres escreves uns textos mesmos porreiros. Mas melhor que isso, saem coisas do calibre do meu tornado de purpurinas, porque olha que "vai vender que nem paus de selfie no Bairro Alto" é muito bem apanhado! I'm proud!
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