Apanhar desilusões é uma coisa tramada. As mais complicadas de gerir devem ser as literárias, que por cada desilusão amorosa que aparece, há duas Margaridas Rebelo Pinto a prometer uma solução via "livro" de capa cor de rosa e título profundo.
Há outros tipos, como é óbvio, mas é melhor ficar-me pelas que caem dentro das minhas especialidades, e já que nunca tive uma desilusão matemática e não tenho tempo para escrever o livro com as desilusões whovianas (provas A, B, C e D de uma longa lista), vamos às literárias.
O que é exactamente uma desilusão literária? Acho que toda a gente sabe. É algo tão simples como gostar de David Soares (o meu novo "alvo" favorito) porque se leu um Os Ossos do Arco-Íris e um A Conspiração dos Antepassados, e depois ler No Muro. É gostar de Saramago por causa de um Evangelho Segundo Jesus Cristo e a seguir pegar num Memorial do Convento. É ficar a gostar de Christopher Moore quando se lê um Guia Prática para Cuidar de Demónios e passado uns tempos agarrar em A Minha Besta.
Podia continuar, mas estão a ver o que quero dizer, não estão? De certeza que já toda a gente se sentiu assim com alguma coisa. É certo que sabemos que os autores de que gostamos não são, de todo, infalíveis, e que se alguém escrever cinquenta livros, é bastante provável que por muito que adoremos determinada obra, existam duas ou três que não nos agradam.
Acho que é que um leitor não está mentalmente preparado para isso. Se gostarmos mesmo de um livro, é muito fácil mergulhar na narrativa e ficarmos emocionalmente envolvidos com a história que o autor está a contar. Falamos das personagens como se fossem pessoas reais, relatamos acontecimentos com a assertividade de quem debita factos históricos e sofremos quando ao virar a página vemos a cabeça a ser arrancada à nossa personagem favorita.
Passamos a viver o livro. Quando ficamos tristes ou chocados com algum desenvolvimento, essa tristeza e esse choque são emoções reais, mais reais do que os acontecimentos que as causaram. Um escritor tem esse poder: o de inventar as nossas emoções, passá-las para papel e obrigar-nos a pagar pela próxima dose de "oh não, não faças isso!" e "Martin, já chega!" e "HEDWIG! DOBBY!" e "Kelsier? Kelsier levanta-te. Levanta-te!" e... por aí fora.
Quando se gosta de um livro a este ponto, ganhamos uma certa admiração pelo autor. Sabemos que ele é capaz de escrever algo fabuloso, que nos interessa, e aceitamos qualquer pedaço do Universo que criou como se fossem moedas e nós pedintes.
Depois de vez em quando aparece-nos um livro de que não gostamos. Ou que detestamos. Ou que leva as personagens por um caminho que achamos idiota. Ou que tem uma escrita fraca. Ou uma história estúpida. Ou que simplesmente nos passa ao lado, banal como tanta coisa que acabamos por ler ao longo da nossa vida.
E agora? Pois. Agora fomos violentamente arrancados do nosso canto naquele Universo. Ficamos com dúvidas relativamente ao autor. Queremos que ele vá morrer longe e que devolva o autor que escreveu aquela obra fantástica que li dois meses antes, porque claramente não podem ser o mesmo. Ou simplesmente perdemos o interesse.
Isto às vezes é triste. O caso do David Soares é bastante representativo: sem ler o que quer que fosse dele, já era um fã. Nem sei, mas o que lia sobre ele deixou-me fascinado. Quando finalmente comecei a ler as suas obras, delirei! Até que comecei a ler umas que achei mais fracas e encontrei umas de que não gostei muito, e começo a ver o autor a desviar-se daquilo que eu achava que o distinguia da maralha e o elevava num pedestal... E sinto-me desiludido.
O mesmo se passou com Christopher, ainda que noutra escala. Li dois livros dele que adorei, e um terceiro de que não gostei mesmo nada e que parecia uma fraca paródia a paródias feitas a paródias dos livros dele (que são paródias). O humor estava demasiado diluído, embora se esforçasse bastante por ser in your face!, e agora tenho ali mais dois do autor para ler e não me apetece mesmo nada. Fiquei desiludido.
Falo destes escritores como podia falar de outros. É um problema que acontece e que considero relativamente grave. A culpa não é propriamente dos autores, nenhum tem a obrigação de escrever só exactamente aquilo que eu gosto de ler ou, no caso de David Soares, de seguir um caminho que me agrada. Ele, e todos, têm é que escrever o que lhes apetecer. Se o objectivo não é vender milhões de livros e agradar a toda a gente, têm a obrigação é de fazer o que lhes der na real gana.
Mas nós, leitores, temos o direito a ficar desiludidos. E ficamos. E é uma pena. Nunca sei muito bem como reagir. Dar outra oportunidade? Deixar passar algum tempo e reler a obra crítica? Empurrar os livros para o fundo da lista? Ignorar aquilo que nos chateou? Afogar as mágoas em livros que sabemos que gostamos?
Um bocadinho de todos, talvez?
6 comentários:
É ler "O Ano Sabático" do João Tordo :P já agora, eu passei 3 livros à espera que o Kel afinal tivesse tido um plano mirabolante para se safar xD
Quando isso me sucede, o que prefiro é mesmo largar o autor durante uns tempos e regressar depois, "fresco" e depois de outras desilusões, geralmente resulta ;)
Jorge
Não gostaste do Memorial? É dos meus livros preferidos...Podia lê-lo várias vezes sem nunca me cansar. Quando algum livro me desilude meto-o na estante e pronto...Se não for uma desilusão muito grande tento outro livro do autor se houver oportunidade, se for muito grande nem tento...com tantos outros autores por aí. Se ainda estiver no início da leitura devolvo á pilha de livros por ler e espero uma altura melhor.
Cumps!
Jorge, pois, eu lembrei-me de ti e do Tordo!
Do Kelsier nem me digas nada, I STILL HAVE HOPE!
Normalmente faço isso, deixar respirar um pouco antes de tentar again.
Sara, eu gostei do Memorial, mas é o livro que menos gosto de Saramago, até agora. Não sei, há ali qualquer coisa, não sei se é a história de amor, se é o facto de ter sido obrigado a lê-lo, ou se os outros que li dele são assim tão superiores, mas a verdade é que me desiludiu um pouco.
É um problema, isto de ficar desiludido. O meu problema é que me obrigo sempre a ler o livro até ao fim (não sou fã de deixar a meio) e às vezes fico genuinamente traumatizado, o que talvez nem seja mau, já que me afasta do autor... O que, por outro lado, pode não ser bom!
Eu gosto precisamente porque é das histórias de amor mais bonitas que já li, e também pelo contexto histórico e pela crítica social...Como foi o primeiro que li (também como obrigatório) marcou-me mais. Acredito que haja outros literariamente superiores...Pois, deixar leituras a meio tb não é comigo, mas se a leitura estiver a ser assim tão torturante o mais certo é riscar esse autor da lista...Serve de lição..lol
Cumps!
Não tive muitas desilusões literárias (talvez tenha sido sorte), mas cinematográficas tenho muitas. Lars Von Triers, Clints Eastwoods, Pedros Almodovars and so on: às vezes têm miomentos de génio, e depois têm coisas tão más ou, pior ainda, semsaboronas.
No meu caso resolvi assim: a pessoa só tem de me provar que é um génio (ou, vá lá, que é muito muito bom) uma vez. Meço o potencial da pessoa pelo que de melhor dela vi. No caso do Von Trier, é o Riget; se vi depois O Elemento do Crime ou o Dancer in the Dark e quase me apeteceu desligar a meio, bom, são riscos que se correm. Mas hei-de ver sempre o que faz quem fez uma coisa genial como aquela série.
Não me tenho dado mal com esta perspectiva, embora, claro, às vezes saia do cinema com a perspectiva de ter gasto dinheiro mal gasto. Mas gastei-o sempre numa boa aposta.
Sara, histórias de amor não são a minha praia :p E ao ler Saramago, não vou com as expectativas de ler algo assim, especialmente tendo em conta que o fiz depois de ler o "Evangelho Segundo Jesus Cristo" xD
Sandra, em termos de filmes não me queixo, mas não sou fã de filmes da mesma forma que sou fã de livros. Faz-me alguma confusão ler um livro sem história, só pelo prazer da porrada, mas não tenho remorsos nenhuns em ter gostado do Pacific Rim, e estar ansioso pelo Godzilla, mesmo duvidando da qualidade narrativa e cinematográficas de ambos. GIANT MONSTERS À PORRADA, WOOOHOOOO!
Entendes? E não sei se a tua abordagem funcionarem comigo, para livros. Já li algumas coisas do Gonçalo M. Tavares, e não gostei de nada. Tenho boas expectativas para o "Uma Viagem à Índia", mas não sei se vai chegar para o desculpar... Se for sequer bom!
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