A conclusão desta excelente crónica chega hoje, com um texto sobre um livro que a Carolina não leu. Apesar das inseguranças dela, acho que é seguro afirmar que fez um bom trabalho (como todos os convidados têm feito até agora). Um obrigado, Carolina!
O livro que não li
A minha avó tem, mais coisa menos coisa, uma prateleira de uma vasta estante reservada a Saramago. Isto algures numa parede forrada a livros de economia, livros de histórias, alguns exemplares que não sei categorizar, pequenas esculturas feitas de lixo reaproveitado trazido de vários países da África e umas quantas molduras com fotografias, que se contam pelos dedos das mãos. A disposição dos livros, ainda que numa edição esteticamente pouco apelativa, chama à minha atenção quando, de visita, me sento no sofá do escritório. Talvez do efeito conjunto, a dar ares de colecção que embora modesta, dá-se a ares de importância, como cantinho de orgulho, uma homenagem a alguém que honrará concerteza a tinta com que mancha o papel.
O primeiro dia em que Saramago se registou no meu cérebro foi num dia de Verão, descontextualizado da estante e do seu estatuto de colecção. Reparei num livro que assentava sobre a mesa de cabeceira. As Pequenas Memórias, de José Saramago, dizia. O título intrigou-me. O nome não era inteiramente desconhecido. Já o tinha ouvido várias vezes antes, nas palavras do meu avô... E afirmava ele, lembro-me eu, que Saramago era um escritor português que tinha ganho um prémio Nobel. Então peguei-lhe, atraída pelas palavras com que se apresentava, e pela curiosidade em ter uma primeira impressão de um nome tão aclamado. E na página, escolhida ao acaso, lia-se:
"Não sei como o perceberão as crianças de agora, mas, naquelas épocas remotas, para as infâncias que fomos, o tempo parecia-nos como feito de uma espécie particular de horas, todas lentas, arrastadas, intermináveis. Tiveram de passar alguns anos para que começássemos a compreender, já sem remédio, que cada uma tinha apenas sessenta minutos, e, mais tarde ainda, teríamos a certeza de que todos estes, sem excepção, acabavam ao fim de sessenta segundos..."
Penso sempre que se o dissesse a um fã de Saramago, provavelmente apontar-me-ia noutra direcção. O Homem tem mais fascínio pela sua obra, afinal, e no caso de Saramago As Pequenas Memórias seguem um estilo autobibliográfico. Talvez devesse ter escolhido outro livro da estante. Mas este primeiro contacto terá sido há cinco ou seis anos, e juro que o travo da nostalgia que li nas suas palavras me convenceu que não podia haver frase mais bonita no livro inteiro. Não sei de que mais se trata. Se chega à idade adulta entretanto, se os assuntos perdem o tom que me chegou aos ouvidos quando li esta passagem... Afinal, não o li. Mas este pedacinho de retrospectiva sobre o passado de Saramago despertou em mim uma curiosidade de ler a sua perspectiva... E a ideia que sempre me ficou deste livro, errada ou não, foi a de que havia uma forte tentativa de se colocar no lugar de uma criança, e de uma forma geral num tempo menos claro que o presente, e de ver as coisas de então com os olhos de agora. E essa simples ideia tem aguçado a minha curiosidade cada vez que o nome de Saramago se pronuncia em qualquer lugar.
Dito isto e virando-me para o desafio que me foi proposto, houve uma fotografia que encaixou como possível imagem mental quando penso n´As Pequenas Memórias, e em como ter cinco anos demorou mais tempo que qualquer outra idade, e num Saramago ou noutra criança qualquer a viver num mundo que já passou.
Assim, sem me debruçar muito sobre uma explicação forçada de pormenores, e porque as imagens têm interpretações mais bonitas se as deixarmos ao critério de cada um, escolhi esta fotografia, porque me lembra a infância.
Fotografia por Maria McGinley |
2 comentários:
vou ser sincera, este ficou escolhido no momento em que me fizeste a proposta :)
(e pronto, agora já sabes que até me podes tentar impingir saramago :P)
Muahahah, you're doomed! Mas este nunca li... Já se quiseres tentar "O Homem Duplicado", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou "As Intermitências da Morte", eu cá aconselho :p
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