David Soares é um autor que exerceu um estranho fascínio sobre mim antes mesmo de lhe ter lido o que quer que fosse. Foi um estranho efeito, que apelidei, de forma bastante original, de Efeito David Soares, e que se viu justificado quando comecei a ler as suas obras.
Autor com provas dadas numa variedade enorme de formatos, começou por publicar BD's e recebeu vários prémios nacionais e internacionais, tendo inclusivamente obtido algum destaque em França com algumas das suas primeiras BD's.
Além disso é uma pessoa fascinante. Quer se concorde ou não com ele (e eu muitas vezes não concordo), e quer se goste ou não da forma como diz as coisas (por vezes também não sou muito fã), vale sempre a pena ouvi-lo/lê-lo. As suas obras mais recentes têm-me deixado desapontado, por uma série de razões, mas tenho alguns dos seus livros entre as minhas obras favoritas de sempre e considero-o um autor de enorme talento e que ainda me vai proporcionar excelentes leituras.
Podem conhecer melhor o autor e o seu universo autoral no seu blog, Cadernos de Daath, e na entrevista que lhe fiz por e-mail, em que não só tentei fazer perguntas interessantes sem bater sempre na mesma tecla, como ainda aproveitei para satisfazer alguma da minha curiosidade pessoal relativamente a certas coisas que tenho a certeza interessam a mais gente.
Nas proximidades temporais não percam Sepulturas dos Pais, com lançamento previsto para 25 de Outubro, pela Kingpin Books, e mais alguns projectos mencionados na última pergunta da entrevista.
O David tem uma presença muito distinta: barba comprida, cabelo comprido, roupa escura, muitos anéis, uma maneira de falar diferente, pausada, ponderada, enfim, digamos que se destaca. Isso podia, no entanto, ser uma persona, um David-Soares-escritor diferente do David-Soares-homem. Daquilo que eu conheço da sua obra e das ocasiões em que o ouvi, não acho que seja o caso, mas essa diferença existe, mesmo que de forma inconsciente e mais subtil?
Desde os tempos helénicos que a Prudência, uma das quatro virtudes cardinais, é representada pelos artistas e descrita pelos escritores como sendo uma mulher a olhar-se ao espelho enquanto agarra uma serpente: esta simboliza a Sabedoria, enquanto o espelho representa a Verdade. Acredite-se ou não, esse é o modo arcaico pelo qual me oriento em questões de gestão de imagem pessoal: com prudência, lá está!, tento mantê-lo no domínio privado. Ou seja: enquanto autor, o único elemento que deverá interessar aos leitores é, evidentemente, a minha obra. Sob esse ponto de vista, penso que a minha imagem não tem importância nenhuma para a maneira como os meus leitores observam a minha obra.
Compreendo que não é fácil perceber onde termina o indivíduo e começa o artista, talvez porque seja impossível separá-los, que nem os Hemisférios de Magdeburgo, mas não penso que a imagem, seja ela qual for, desempenhe um papel preponderante na criação artística, nem que seja pelo facto de que esta é um fenómeno imaginal e a imagem é, por natureza, fenotípica – ou seja, excepto nos casos em que a criação passa, também, pela imagem pessoal do artista, ela pouco ou nada se relacionará com a obra; por conseguinte, poderá ser, somente, uma curiosidade, um faits divers.
O meu discurso é «pausado» e «ponderado», porque, na maioria das vezes, em virtude da minha obra e dos temas sobre os quais escrevo, encontro-me em situações em que tenho de discorrer sobre assuntos complexos e estes, na minha opinião, não devem ser reduzidos ou apressados. Sou um indivíduo que racionaliza tudo, constantemente, e isso afasta-me da frivolidade que, por vezes, o ambiente social cultiva e que parece ser um fabuloso ascensor para um determinado tipo de popularidade que, com toda a sinceridade, não me interessa. Esse tipo de popularidade, assente no efémero e no transitório, não é a minha praia, perdoe-se-me o plebeísmo: estou aqui para a longa-duração e se tiver de sacrificar algumas comodidades para alcançá-la, sacrifico-as. Sou um indivíduo que lê dicionários como quem lê romances: do início para o fim. Há uma certa magistralidade nesta atitude, confesso, mas aquela que advém do puro gozo pessoal sentido por quem, no fundo, não tem interesse absolutamente nenhum naquilo que se diz ou escreve sobre si próprio. Não perco tempo com coisas inúteis e, em definitivo, não peço desculpa por existir: a falsa modéstia não é um dos meus múltiplos defeitos.
Fala muitas vezes da sua voz autoral, quase como se fosse uma entidade distinta. Essa voz nota-se ao longo da sua obra, mas foi sempre assim? Ou seja, quando é que essa entidade nasceu ou, melhor ainda, quando é que se deu conta que ela existia?
A voz autoral relaciona-se com aquilo que um criador tem para transmitir. Se não se for um criador, a voz autoral não existe: será mais recompensador procurar-se por harmonia na música pop contemporânea. Existem vários elementos importantes numa obra literária, como eufonia, respeito pela gramática, arrojo, desrespeito pela gramática, um sentido de missão que quase alcança o significado religioso dessa palavra, mas nenhum é tão importante quanto estes dois: a voz autoral e o tom da obra. A primeira é formada pelo conjunto das mais vigorosas características de um autor e define aquilo que torna singular cada autor. Um autor é um criador que se preocupa com um tema-chave ou vários temas-chave em especial e os vai interrogando a cada nova criação; sendo assim, é fácil entender que os autores se definem pelos seus universos autorais, mas estes desenvolvem-se sempre a partir de um núcleo primitivo de sentimentos, imagens e ideias primordiais que são intrínsecos a diferentes indivíduos. Não se escolhe ser autor: é-se autor.
A minha experiência é esta: sou inquieto, insatisfeito e obstinado. Tenho de agarrar nos meus temas, nos meus desassossegos, e fazer-lhes perguntas. Elas levam-me a sítios inesperados, no entanto a voz com a qual as faço é a mesma. Essa identidade é que oferece autenticidade à obra e faz com que um determinado livro só possa ter sido escrito por um autor em particular. Nesse sentido, aquilo que diferencia um autor de um executante é o seguinte: este, de forma fabricada, vai ao encontro de certa temática numa direcção de fora para dentro – por gosto genuíno ou até por cínica conveniência, isso não interessa para o desfecho –, enquanto o primeiro, de modo inato, vai ao encontro de certa temática na direcção de dentro para fora – por inteira inquietação, porque entre temática e indivíduo não existe distância nenhuma. Os autores são os seus temas.
Sempre observei a arte do ponto de vista de um criador, de um autor, e, por essa via, consciencializei-me muito cedo que esse ponto de vista era peculiar e, por natureza, desigual do ponto de vista de um destinatário. Os tons das obras sempre me fascinaram e aprendi, desde cedo, a apurar os sentidos para compreendê-los – e para capturá-los nas minhas obras. O tom de uma obra é a sua voz, que fala em paralelo com a autoral. Uma obra tem sempre duas vozes: a do autor e uma própria. Enquanto autor, cada nova obra que faço é sempre construída com base no tom: o tom é o sustentáculo de tudo e cada parcela tem de harmonizar-se com ele. Pensem naquilo que Rick diz a Louis no final de «Casablanca», mas, mais do que uma «bonita amizade», tem de existir uma simbiose perfeita entre o tom da obra e a voz autoral. Normalmente, quando uma obra fracassa em transmitir uma mensagem ou uma ideia é por culpa de problemas de tom. Esta qualidade, tão transparente e tão tangível quanto celofane (que, por acaso, é uma das minhas palavras preferidas), é difícil de apurar. Já abandonei a escrita de livros, porque tive dificuldades em apurar o tom certo que tinha em mente, por exemplo. Há livros que a gente abandona e, mais tarde, reencontra, com outra idade e outro ponto de vista, mais adequados ao tom que, originalmente, se tinha em mente. Um escritor não é um futebolista, cuja carreira termina aos trinta anos de idade: tem-se dezenas de anos para reencontrar ideias e aperfeiçoá-las. Quem não for paciente, nunca poderá ser escritor.
Tendo em conta essa voz autoral e o seu universo autoral específico, muito visceral, filosófico e muito pouco aconselhado a crianças e pessoas sensíveis, como é que deu consigo a escrever um livro infantil (O Homem Corvo, Saída de Emergência), e como é que foi essa experiência?
Não tenho muitas ideias que possam servir de ponto de partida para livros infantis, mas, ainda assim, vou imaginando algumas. Acho que as crianças adoram histórias negras, histórias perigosas – somente têm de ter um enorme sentimento de faz-de-conta, senão as ideias negras e perigosas podem tornar-se muito duras. Desde que as ideias mais heterodoxas sejam expostas de um modo que faça as crianças sentirem-se num mundo de faz-de-conta total, que poderão abandonar por uns instantes e, em seguida, regressar quando quiserem, tudo resultará bem e não haverá lágrimas, nem equimoses. Psicologiza-se demasiado sobre se certas referências serão ou não boas para crianças e, às vezes, investe-se num discurso paradoxal, quando, no fundo, a verdade é que basta transmitir-lhes, claramente, a noção de que é tudo a fingir. Recordo que as crianças seiscentistas rebolavam a rir a ver gatos reais a serem incinerados em massa em fogueiras no meio das praças e, contudo, cresceram e tornaram-se adultos responsáveis e empáticos – algumas até se tornaram autores de títulos maiores da literatura ocidental. Há trezentos anos, há duzentos anos, o entretenimento popular, impresso em folhas volantes e folhetins, era mais violento que as imagens televisionadas das guerras contemporâneas e, não obstante, a sociedade é obcecada em censurar imagens cada vez mais depuradas, o que é particularmente patético no que concerne à ficção. Dito isto, «O Homem Corvo», que é uma fábula bem inocente, transmite um elevado sentimento de faz-de-conta.
Esse livro partiu de uma ideia para uma história que andava há anos na minha cabeça e que acabei por concretizar somente para colaborar, propositadamente, com os ilustradores, porque tivemos vontade de fazer um livro juntos. A criação foi uma experiência agradável e acho que algumas coisas que estão no livro resultaram muito bem. As ilustrações são admiráveis.
Tenho uma ideia para criar outro livro infantil, que será diferente de «O Homem Corvo» – mais alienado, com maior propensão para o antilogismo e para o grotesco –, mas ainda não encontrei um estilo de ilustração adequado a essa história.
Como se pode ver pela sua incursão no livro infantil, nos álbuns de spoken word, nos romances, contos, ensaios e livros de BD, não tem qualquer problema em experimentar diferentes géneros. Ou melhor dizendo, linguagens. Imagino que não tenha problemas em, um dia, escrever um guião duma curta-metragem ou de um filme, se a ideia lhe surgir com esse formato, mas como reagiria a uma proposta de adaptar um conto ou um romance seu para uma curta ou um filme? E qual seria o seu envolvimento num eventual projecto?
Sei como se escreve um argumento de cinema e já escrevi argumentos para projectos de curtas-metragens que nunca se concretizaram, mas não foi algo que eu gostei de fazer. Gosto de cinema, enquanto espectador: enquanto criador, não gosto dessa linguagem e não tenho nenhum interesse em ver obras minhas adaptadas a ela. Se alguém quiser fazer um filme a partir de algum dos meus livros, tudo bem, faça-o, mas se isso não acontecer não me irei aborrecer. O que se passa é que o mundo pictórico não me magnetiza: prefiro palavras. Isto poderá parecer estranho, porque escrevo banda desenhada – e já desenhei bandas desenhadas –, mas, para mim, a banda desenhada é uma linguagem narrativa, não é pictórica. A ilustração, a pintura são pictóricas. Em oposição, a banda desenhada é literária. Todas as diferentes linguagens com que vou desenvolvendo as minhas obras são literárias.
A liberdade que eu sinto em ser capaz de trabalhar em linguagens literárias diferentes é embriagante e aquilo que, constantemente, aprendo numa, acaba sempre por ser útil em outra. Neste momento, três das minhas obras mais-queridas, «Palmas Para o Esquilo», um livro de banda desenhada, «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense», um disco de spoken word, e «Batalha», um romance, representam, para mim, o antídoto ideal para aquilo que Baldassare Castiglione cunhou com o nome de sprezzatura: o ar de desprendimento que um artista dá diante da complexidade que deu criar a obra. Ou seja: a maioria do público acha que é fácil ser-se escritor, porque alguns, para efeito de achegamento comercial aos leitores, dão a impressão propositada de que escrever é divertido e simples, quando, na verdade, é árduo e arriscado. Escrevo profissionalmente há catorze anos e só passado este período é que dei por mim a escrever textos com os quais me sinto totalmente identificado, como os de «Palmas Para o Esquilo», «Os Anormais» e «Batalha», obras que qualifico como sendo as minhas melhores. O meu gosto literário inclina-se para o pirotécnico, para o estilo que os gregos chamaram de auxesis e os romanos de amplificatio: gosto de palavras sesquipedálicas, gosto de inventar palavras – todo o léxico ocidental foi inventado por escritores, para começar. Essa é a tradição de que faço parte. Não me insiro na tradição do entretenimento.
À vista disto, só posso sentir desconsideração por quem trata com leviandade a arte da escrita, menosprezando a importância das palavras e escrevinhando aquilo que eu apelido de filmes disfarçados de livros. Na verdade, não os considero, de todo, escritores. Para mim, ser-se escritor é ser-se erudito, é ser-se alguém para quem o conhecimento e as palavras são as coisas mais importantes do mundo. Pense-se em escritores como Robert Burton, Cervantes, Nabokov, Laurence Sterne, William Gass, Alexander Theroux, entre outros. A literatura anda há demasiado tempo demasiado perto da indústria do entretenimento e precisa aproximar-se, novamente, do conhecimento e das palavras. Precisamos de recuperar a tradição do romance macrocéfalo, enciclopédico. Precisamos de mais macroficções e de menos microficções.
Esta versatilidade de formatos permite-lhe ter uma abrangência fora do vulgar, em termos de público, mas a sua escrita e o tipo de histórias/ensaios que escreve são claramente dirigidos a um público muito específico. Mas também tem uma posição muito forte quanto ao estado da Cultura na sociedade de hoje. Não acha que obras mais acessíveis – não necessariamente dumbed down, atenção – seriam úteis para atrair mais pessoas e, de certa forma, educá-las?
Não acho que a arte tenha de educar ninguém. Pelo contrário: acho que a arte tem de deseducar toda a gente.
Tenho absoluta consciência que a minha obra não é para todos, mas seria incapaz de tornar-me um executante e fazer algo mais comercial, que reunisse com rapidez superior um maior número de leitores. Junte-se um grupo heterogéneo de pessoas numa sala e tente-se encontrar um consenso entre elas: esse consenso terá de ser muito simples, porque, em virtude da multiplicidade de gostos e de opiniões manifestados, apenas uma percentagem reduzidíssima de referências será partilhável. Ao criar-se uma obra com base nessas referências ela será, certamente, gostável pelo grupo inteiro, mas, infelizmente, também será pobre em conteúdo, por culpa da redução de opções que lhe está na origem. Ou seja: as obras mais populares costumam ser, em regra, muito simples. Não estou a imprimir sobre estas obras nenhuma avaliação quanto à sua qualidade, apenas quanto à sua popularidade. No meu caso, as minhas obras contêm sempre um grau elevado de complexidade que advém do facto de eu ser um indivíduo incapaz de fazer coisas simples.
Não estou a ser airoso, estou a ser o mais franco possível. Tenho vocação para complexificar as coisas e criar obras polissémicas que são ariscas a leituras e leitores impacientes. Aliás, os leitores que se aproximarem da minha obra em busca de se entreter e passar um bom bocado farão melhor se pensarem duas vezes e irem procurar outras coisas. Entreter não é comigo, como diria o Léon Bloy: «o autor nunca prometeu divertir ninguém – prometeu até o contrário e cumpriu fielmente a sua palavra». A minha substância não é a de simplificar. Em consequência, tive de aprender a aceitar a realidade de que aquilo que escrevo será sempre para leitores que pensem da mesma maneira que eu; ou, no mínimo, para leitores que gostem de ler sobre os temas que compõem o meu universo autoral, que gostem de conhecimento e que gostem de palavras.
Se a maioria do público não tem vontade ou capacidade de ler obras complexas, isso será um problema que não me diz respeito, assim como acho que não deva ser problema de nenhum autor. O público gosta de ser crítico e de exigir melhores escritores e melhores livros, mesmo que a sua concepção de “melhor” seja discutível, por isso não vejo por que razão é que os escritores não devam exigir leitores melhores: leitores corajosos que, de facto, gostem de ler bons livros. Eventualmente, cada indivíduo procurará obras que o seu gosto e as suas limitações lhe permitam apreciar, por isso sinto-me satisfeito por saber que os meus leitores são pessoas inteligentes, originais e com disponibilidade para aprender.
Continuando na mesma linha, já disse em várias ocasiões que não gosta de feiras de livros nem de bibliotecas. Porquê?
Não aprecio feiras do livro, é verdade, mas entenda-se que o meu ponto de vista é persuadido pelo facto de ser autor. Na verdade, compro dezenas de livros cada vez que vou a uma feira do livro, logo do ponto de vista comercial sou um magnífico cliente.
No entanto, nunca disse que não gosto de bibliotecas: simplesmente, disse que não sou fã de ir a uma biblioteca para ler ou consultar livros, porque prefiro comprá-los e tê-los. Só vou a uma biblioteca consultar um livro se não conseguir comprá-lo nos alfarrabistas ou pela Internet. Para mim, os livros são ferramentas e, assim sendo, preciso de tê-los à mão, preciso que o conhecimento esteja imediatamente acessível. Tento evitar no máximo das minhas capacidades interromper o meu estudo ou a minha escrita durante umas horas ou uns dias só porque me falta um material bibliográfico de consulta em especial: se o tiver em casa não preciso de interromper coisa nenhuma, basta-me ir às estantes. Construo um espaço mental para os livros com base na minha biblioteca pessoal e preciso de ter, em todos os momentos, essa relação de proximidade com eles. Logo, observo as bibliotecas como uma espécie de “disco externo”, que ligo de vez em quando. Mais uma vez, sublinho que o modo como eu olho e vivo este mundo é muito diferente do modo como um leitor o olhará e viverá. O modo como eu lido com os livros será outro, também.
Há pouco falei no conceito renascentista de sprezzatura e, em paralelo, vale a pena recordar que, também para efeito de aproximação comercial ao público, muitos artistas dão uma imagem propositada de que são parecidos com o público, o que não pode estar mais longe da verdade: se os artistas fossem parecidos com o público, eles seriam público. E não são. O público precisa de entender que os artistas não são pessoas normais. Os artistas vêem as coisas de um modo diferente e pensam de modo diferente. É por essa razão que são artistas e são capazes de criar arte.
Também já mencionou algumas vezes que cada vez lê menos ficção. Não será contraditório que um autor que escreve ficção leia pouca ficção?
Não sei se será contraditório, mas sei que é muitíssimo comum: existem inúmeros escritores que não lêem ficção, pelos mais diversos motivos. Alguns até por snobismo – que não deixa de ser um motivo legítimo, note-se. No meu caso, para ser brutalmente sincero, não tenho tempo, nem motivação, para ler histórias, porque, na maioria das vezes, isso é-me desconfortável: a ficção é demasiado cristalina para mim, demasiado atingível. Assim, no que concerne à ficção, somente vou comprando os novos livros escritos por autores que eu admiro e todos os clássicos que, até hoje, ainda não tive oportunidade de ler.
Mesmo lendo pouca ficção, vai acompanhando o que se faz em Portugal?
Essa pergunta fará mais sentido para um leitor. Os leitores é que acompanham as novidades, os novos autores, os novos livros. Isso é um comportamento de fã. Eu não sou um fã, mas um autor. Não acompanho nada: escrevo e os meus livros são publicados. É tão simples quanto isso.
Falando da sua BD, demonstra sempre uma grande admiração pelo traço do Pedro Serpa, com quem já participou em duas BD (O Pequeno Deus Cego e Palmas para o Esquilo, ambas da Kingpin). Acha que a simplicidade e a clareza do traço dele são o contraste ideal para a sua escrita complexa?
Admiro o Pedro Serpa pela qualidade do seu desenho, que considero um dos melhores da nossa actualidade, e pelo facto de ele ser temerário e não resmungar quando lhe peço para desenhar um dragão deitado em centenas de caveiras, todas diferentes. Mas gosto de trabalhar com ele no mesmo feitio que gosto de trabalhar com outros desenhadores que compreendem os meus métodos.
Os meus livros de banda desenhada são imaginados, escritos, planificados e esboçados por mim antes dos desenhadores serem convidados a concretizar a minha visão. No meu caso, as parcerias surgem somente da minha necessidade de ter desenhadores que dêem corpo às minhas visões, não preciso de ninguém para criar uma história a meias. Quando entrego as histórias aos desenhadores para serem desenhadas elas já estão fechadas e planificadas. É óbvio que os desenhadores têm liberdade para criar; em especial, na caracterização de personagens e de ambientes, desde que as suas escolhas gráficas não se intrometam na montagem das sequências e dos planos, porque, como penso nos livros como um todo, uma ténue mudança de plano ou de sequência numa parte, não fará sentido narrativo com outras partes que surjam adiante. É por isso que peço aos desenhadores para seguirem escrupulosamente as minhas planificações. O que não invalida que eles tenham boas ideias que sejam aplicadas: o Pedro Serpa, por exemplo, em «Palmas Para o Esquilo» decidiu que nenhuma personagem deveria ter sombra, excepto as que defini no argumento como sendo essenciais para a história. Foi uma excelente ideia, que fez todo o sentido no livro em questão, tornando-o mais misterioso – o leitor até pode não se aperceber imediatamente desse pormenor, mas ele irá criar uma sensação perturbante na leitura. O André Coelho, em «Sepulturas dos Pais», livro que iremos publicar este ano pela Kingpin Books, também teve boas ideias para a construção gráfica de ambientes que tornaram o resultado final ainda mais perturbador. Esse tipo de sinergias e de troca de boas ideias é que, para mim, são as verdadeiras colaborações. No fundo, quando toda a gente envolvida no projecto é profissional e segura em relação às suas qualidades o resultado final só pode ser bom. Infelizmente, já tive de cancelar colaborações com alguns artistas que apenas queriam inventar as suas histórias a partir das minhas ideias, porque, convenhamos, criar algo a partir de uma história já escrita e planificada é muito mais fácil que imaginar uma a partir do zero. Não tolero esse tipo de parasitismo e falta de talento.
Aquilo que a maioria do público não se apercebe é que quem deseja escrever não escolhe, à partida, a banda desenhada, que é uma linguagem abordada, em primeira instância, por quem quer desenhar. Todavia, querer desenhar é muito diferente de fazer banda desenhada, que é uma linguagem narrativa. A maioria dos desenhadores não quer transmitir ideia nenhuma: somente quer mostrar que desenha bem – é por isso que quase todos os livros de banda desenhada criados, em exclusivo, por desenhadores são maus de um ponto de vista literário. Em essência, nesses livros cada vinheta transforma-se numa tela para mostrar virtuosismo gráfico, em vez de consistir parte de uma sequência harmoniosa, pensada para integrar-se num todo. De facto, são livros muito mal sequenciados. São raros os artistas que têm boas competências narrativas e existem muitos desenhadores que só estão interessados em colaborar com um escritor se este se limitar a dar umas ideias para esses, depois, desenharem o que quiserem.
Ora, eu não poderia trabalhar de forma mais diferente, porque não sou um simples argumentista: sou um autor, o que, à luz do que disse anteriormente, significa que tenho um universo autoral próprio, estruturado numa obra que já conta com quase vinte livros, de banda desenhada e prosa. Daí que quando convido um desenhador para dar corpo à minha visão, ele é que tem de adaptar-se ao meu universo e não o contrário.
Além da escrita, outra marca distintiva da sua obra são os temas, frequentemente macabros e sempre pesados, ou tratados de forma pesada. Não há lugar para ligeirezas, no tema ou na linguagem. Claramente são temas que de certa forma o preocupam, mas disseram-me uma vez algo muito interessante e que espero ainda me lembrar como deve ser: numa entrevista que nunca consegui encontrar, o David disse que ficava obcecado com um tema, escrevia três coisas sobre o assunto, para o encerrar, e avançava. É de facto assim?
Essa é uma leitura incorrecta de algo que eu disse algumas vezes e que é o seguinte: a minha obra vai sendo criada através de fases diferentes. O que acontece é que eu observo os meus temas de um determinado ponto de vista autoral e essa observação pode demorar-se por dois, três livros, quatro livros, nunca sei quanto tempo vai durar. Em seguida, esgoto esse ponto de vista – temporariamente ou em definitivo – e encontro um novo. Imagine-se que os meus temas são um modelo e eu vou desenhando à volta desse modelo, de acordo com diversos pontos de vista: o modelo é sempre o mesmo, os pontos de vista é que vão mudando. São assim, os meus livros: são observações, interrogações que eu faço aos temas que me deslumbram e que me inquietam.
Essas várias fases diferenciam-se por tónicas, certas insistências semânticas ou técnicas, pendores, dimensões. Pode acontecer que, em determinado momento, me encontre mais preocupado com um ponto de vista alegórico, por exemplo, em oposição a um ponto de vista realista. Os meus romances «A Conspiração dos Antepassados» e «O Evangelho do Enforcado» têm um pendor mais realista que «Batalha» ou «Lisboa Triunfante». Este vai mais ao encontro da autenticidade, sem querer, de facto, ser realista, embora, na minha cabeça, pertença ao mesmo ponto de vista que «A Conspiração dos Antepassados» e «O Evangelho do Enforcado». Bandas desenhadas como «Mucha», «O Pequeno Deus Cego» e até «Palmas Para o Esquilo» são mais alegóricas que bandas desenhadas como «Mr. Burroughs» ou «Sammahel», que estão mais preocupadas em explorar os mecanismos da criação artística. «A Última Grande Sala de Cinema», «Os Anormais» e «Palmas Para o Esquilo» são uma variante de uma preocupação autoral minha que eu apelido de Teoria do Todo: são visões que partem do microcosmos para o macrocosmos, obras em que eu começo por falar sobre assuntos muito próximos de nós para, num ápice, estar a discorrer sobre física, cosmologia, história e a interligar esses elementos num todo coerente e fluido. No primeiro caso, o ponto de partida é o cinema; no segundo, a deformidade; no terceiro, é a loucura. «Batalha» é, sobretudo, um romance sobre linguagem, sobre palavras. Cada livro tem preocupações distintas e observa os meus temas de um ponto de vista diferente.
E qual é exactamente a sua relação com a religião e o oculto? Afinal, é ateu, mas não me parece que tome uma posição excessivamente crítica. Também ainda não li o Batalha, confesso, portanto esta questão já pode estar respondida, mas tanto em A Conspiração dos Antepassados como em O Evangelho do Enforcado (os três livros são da Saída de Emergência), há uma identificação, ou pelo menos ligação, entre a arte e a religião. Porquê?
Não vejo essa ligação apontada entre a arte e a religião e tenho alguma dificuldade em ver onde é que ela poderá existir, mas estou aberto a essa possibilidade. A minha relação com a religião e com o oculto é baseada no puro interesse histórico. Sou um estudante desses temas e gosto de escrever sobre eles, mas não acredito em nenhuma manifestação do sobrenatural, seja de ordem religiosa ou mágica. Aliás, a magia é, ela própria, uma crença. Com efeito, sou ateu, nem sequer sou agnóstico. Para a maioria das pessoas é provável que a dimensão humana não seja suficiente, mas para mim é. Todavia, reconheço que a espécie humana é a da transcendência: precisamos dela e é por essa razão que inventámos a arte, a ciência e a religião. O problema é que a ciência é demasiado complexa para ser acompanhada pela maioria das pessoas e, por culpa disso, não as faz sonhar. Por outro lado, as religiões e o oculto são sistemas muito simples, estruturados em conceitos basilares fáceis de perfilhar e interpretar. Não deixa de ser irónico que as leis da magia sejam em número idêntico às quatro forças físicas: são a lei da similitude, a lei da contrariedade, a lei do contágio e a lei da contiguidade. Com estas quatro leis, formuladas desde os tempos clássicos, gregos e romanos, estrutura-se, praticamente, todo o edifício do ocultismo ocidental. A maioria dos indivíduos precisa de ideias previsíveis e de um sistema previsível, porque o mundo e o universo são altamente imprevisíveis, embora não pareçam. A ciência é um sistema que, volta e meia, é revisto, quando surgem novas descobertas que tornam obsoleto ou incompleto o conhecimento anteriormente adquirido. Esse labor de revisão é anátema para qualquer religião revelada, porque uma religião revelada ergue-se sobre verdades imutáveis. A autoridade das religiões reveladas consiste na sua imutabilidade e essa qualidade é que conforta os seguidores.
Posto isto, acho que a separação de magistérios, chamemos-lhe isso, entre ciência e ocultismo, nem sempre foi clara e linear. No campo da medicina, por exemplo, somente a partir da aceitação da teoria dos germes é que as práticas médicas se foram, gradualmente, desenvolvendo numa esfera apartada das crenças mágicas e ocultistas. Nos séculos XVII e XVIII não existia grande diferença entre a medicina e a magia. O ocultismo ocidental contemporâneo é uma herança do revivalismo ocultista europeu da segunda metade do século XIX, que foi um movimento contracultural anticientífico. Na verdade, a partir desse período é normal encontrar-se ocultistas que rejeitam, liminarmente, a ciência e cientistas que repudiam, veementemente, o oculto, mas nos séculos anteriores ambos os sistemas estavam mais próximos e era comum encontrar-se cientistas-ocultistas e ocultistas-cientistas. A fronteira entre o ocultista e o cientista era mais delgada, ambos partilhavam mais travejamentos.
Até agora, todas as histórias que li suas me pareceram fechadas, com um princípio, um meio e um fim, sem pontas soltas relevantes. Considera que é assim, ou acha que há espaço em algum trabalho para algum tipo de regresso?
Não tenho ideias de regressar a nenhum dos meus livros para criar uma sequela, uma prequela, um remake ou um reboot. Como disse, cada livro é uma observação pensada num determinado momento e, sendo assim, não faz sentido refazer uma observação: faz sentido fazer observações novas, com novos pontos de vista.
Aligeirando a conversa, o que é que pode dizer sobre Sepultura dos Pais, que já tem lançamento anunciado para Outubro? Pelas imagens que já divulgou, parece-me mais próximo de Cidade-Túmulo e A Última Grande Sala de Cinema (ambos da Círculo de Abuso), pelo menos em termos visuais.
«Sepulturas dos Pais» é um livro sobre o fracasso. É muito duro, mas encerra na perfeição uma das minhas obsessões autorais: a de que entre o lixo mais sórdido se encontram as flores mais maravilhosas. Gosto de trabalhar esses conceitos antagónicos e de perceber até que ponto se podem aproximar sem se anularem. Basicamente, é agarrar na miséria para descobrir magia e agarrar na magia para descobrir miséria. Muitas vezes, basta somente mudar a fonte ou o grau de iluminação para que uma se transforme na outra. O desenho do André Coelho é perfeito para esta história e transmite uma força e uma negrura que, espero, impressionarão os leitores. De um ponto de vista da técnica do desenho, o André faz coisas espantosas com o preto-e-branco: as texturas que criou para «Sepulturas dos Pais» são de uma organicidade como raras vezes tenho visto. Gosto muito de trabalhar com o André, com quem já colaborei num dos capítulos de «É de Noite Que Faço as Perguntas» e recomendo vivamente o seu livro «Terminal Tower», feito em colaboração com Manuel João Neto.
E para terminar, que perspectivas há de outros trabalhos futuros?
Estou a trabalhar, alternadamente, num romance, num livro de não-ficção e num livro de banda desenhada. O romance seguirá a fase iniciada com «Batalha», mas numa toada muito mais niilista. O livro de não-ficção é um trabalho de longa-duração sobre um tema que eu conheço muito bem e sobre o qual irei apresentar algumas visões heteróclitas sobre temas que muita gente pensa estarem esclarecidos. A banda desenhada intitula-se «O Poema Morre» e consiste numa história negríssima e duríssima sobre guerra.
Autor com provas dadas numa variedade enorme de formatos, começou por publicar BD's e recebeu vários prémios nacionais e internacionais, tendo inclusivamente obtido algum destaque em França com algumas das suas primeiras BD's.
Além disso é uma pessoa fascinante. Quer se concorde ou não com ele (e eu muitas vezes não concordo), e quer se goste ou não da forma como diz as coisas (por vezes também não sou muito fã), vale sempre a pena ouvi-lo/lê-lo. As suas obras mais recentes têm-me deixado desapontado, por uma série de razões, mas tenho alguns dos seus livros entre as minhas obras favoritas de sempre e considero-o um autor de enorme talento e que ainda me vai proporcionar excelentes leituras.
Podem conhecer melhor o autor e o seu universo autoral no seu blog, Cadernos de Daath, e na entrevista que lhe fiz por e-mail, em que não só tentei fazer perguntas interessantes sem bater sempre na mesma tecla, como ainda aproveitei para satisfazer alguma da minha curiosidade pessoal relativamente a certas coisas que tenho a certeza interessam a mais gente.
Nas proximidades temporais não percam Sepulturas dos Pais, com lançamento previsto para 25 de Outubro, pela Kingpin Books, e mais alguns projectos mencionados na última pergunta da entrevista.
O David tem uma presença muito distinta: barba comprida, cabelo comprido, roupa escura, muitos anéis, uma maneira de falar diferente, pausada, ponderada, enfim, digamos que se destaca. Isso podia, no entanto, ser uma persona, um David-Soares-escritor diferente do David-Soares-homem. Daquilo que eu conheço da sua obra e das ocasiões em que o ouvi, não acho que seja o caso, mas essa diferença existe, mesmo que de forma inconsciente e mais subtil?
Desde os tempos helénicos que a Prudência, uma das quatro virtudes cardinais, é representada pelos artistas e descrita pelos escritores como sendo uma mulher a olhar-se ao espelho enquanto agarra uma serpente: esta simboliza a Sabedoria, enquanto o espelho representa a Verdade. Acredite-se ou não, esse é o modo arcaico pelo qual me oriento em questões de gestão de imagem pessoal: com prudência, lá está!, tento mantê-lo no domínio privado. Ou seja: enquanto autor, o único elemento que deverá interessar aos leitores é, evidentemente, a minha obra. Sob esse ponto de vista, penso que a minha imagem não tem importância nenhuma para a maneira como os meus leitores observam a minha obra.
Compreendo que não é fácil perceber onde termina o indivíduo e começa o artista, talvez porque seja impossível separá-los, que nem os Hemisférios de Magdeburgo, mas não penso que a imagem, seja ela qual for, desempenhe um papel preponderante na criação artística, nem que seja pelo facto de que esta é um fenómeno imaginal e a imagem é, por natureza, fenotípica – ou seja, excepto nos casos em que a criação passa, também, pela imagem pessoal do artista, ela pouco ou nada se relacionará com a obra; por conseguinte, poderá ser, somente, uma curiosidade, um faits divers.
O meu discurso é «pausado» e «ponderado», porque, na maioria das vezes, em virtude da minha obra e dos temas sobre os quais escrevo, encontro-me em situações em que tenho de discorrer sobre assuntos complexos e estes, na minha opinião, não devem ser reduzidos ou apressados. Sou um indivíduo que racionaliza tudo, constantemente, e isso afasta-me da frivolidade que, por vezes, o ambiente social cultiva e que parece ser um fabuloso ascensor para um determinado tipo de popularidade que, com toda a sinceridade, não me interessa. Esse tipo de popularidade, assente no efémero e no transitório, não é a minha praia, perdoe-se-me o plebeísmo: estou aqui para a longa-duração e se tiver de sacrificar algumas comodidades para alcançá-la, sacrifico-as. Sou um indivíduo que lê dicionários como quem lê romances: do início para o fim. Há uma certa magistralidade nesta atitude, confesso, mas aquela que advém do puro gozo pessoal sentido por quem, no fundo, não tem interesse absolutamente nenhum naquilo que se diz ou escreve sobre si próprio. Não perco tempo com coisas inúteis e, em definitivo, não peço desculpa por existir: a falsa modéstia não é um dos meus múltiplos defeitos.
Fala muitas vezes da sua voz autoral, quase como se fosse uma entidade distinta. Essa voz nota-se ao longo da sua obra, mas foi sempre assim? Ou seja, quando é que essa entidade nasceu ou, melhor ainda, quando é que se deu conta que ela existia?
A voz autoral relaciona-se com aquilo que um criador tem para transmitir. Se não se for um criador, a voz autoral não existe: será mais recompensador procurar-se por harmonia na música pop contemporânea. Existem vários elementos importantes numa obra literária, como eufonia, respeito pela gramática, arrojo, desrespeito pela gramática, um sentido de missão que quase alcança o significado religioso dessa palavra, mas nenhum é tão importante quanto estes dois: a voz autoral e o tom da obra. A primeira é formada pelo conjunto das mais vigorosas características de um autor e define aquilo que torna singular cada autor. Um autor é um criador que se preocupa com um tema-chave ou vários temas-chave em especial e os vai interrogando a cada nova criação; sendo assim, é fácil entender que os autores se definem pelos seus universos autorais, mas estes desenvolvem-se sempre a partir de um núcleo primitivo de sentimentos, imagens e ideias primordiais que são intrínsecos a diferentes indivíduos. Não se escolhe ser autor: é-se autor.
A minha experiência é esta: sou inquieto, insatisfeito e obstinado. Tenho de agarrar nos meus temas, nos meus desassossegos, e fazer-lhes perguntas. Elas levam-me a sítios inesperados, no entanto a voz com a qual as faço é a mesma. Essa identidade é que oferece autenticidade à obra e faz com que um determinado livro só possa ter sido escrito por um autor em particular. Nesse sentido, aquilo que diferencia um autor de um executante é o seguinte: este, de forma fabricada, vai ao encontro de certa temática numa direcção de fora para dentro – por gosto genuíno ou até por cínica conveniência, isso não interessa para o desfecho –, enquanto o primeiro, de modo inato, vai ao encontro de certa temática na direcção de dentro para fora – por inteira inquietação, porque entre temática e indivíduo não existe distância nenhuma. Os autores são os seus temas.
Sempre observei a arte do ponto de vista de um criador, de um autor, e, por essa via, consciencializei-me muito cedo que esse ponto de vista era peculiar e, por natureza, desigual do ponto de vista de um destinatário. Os tons das obras sempre me fascinaram e aprendi, desde cedo, a apurar os sentidos para compreendê-los – e para capturá-los nas minhas obras. O tom de uma obra é a sua voz, que fala em paralelo com a autoral. Uma obra tem sempre duas vozes: a do autor e uma própria. Enquanto autor, cada nova obra que faço é sempre construída com base no tom: o tom é o sustentáculo de tudo e cada parcela tem de harmonizar-se com ele. Pensem naquilo que Rick diz a Louis no final de «Casablanca», mas, mais do que uma «bonita amizade», tem de existir uma simbiose perfeita entre o tom da obra e a voz autoral. Normalmente, quando uma obra fracassa em transmitir uma mensagem ou uma ideia é por culpa de problemas de tom. Esta qualidade, tão transparente e tão tangível quanto celofane (que, por acaso, é uma das minhas palavras preferidas), é difícil de apurar. Já abandonei a escrita de livros, porque tive dificuldades em apurar o tom certo que tinha em mente, por exemplo. Há livros que a gente abandona e, mais tarde, reencontra, com outra idade e outro ponto de vista, mais adequados ao tom que, originalmente, se tinha em mente. Um escritor não é um futebolista, cuja carreira termina aos trinta anos de idade: tem-se dezenas de anos para reencontrar ideias e aperfeiçoá-las. Quem não for paciente, nunca poderá ser escritor.
Tendo em conta essa voz autoral e o seu universo autoral específico, muito visceral, filosófico e muito pouco aconselhado a crianças e pessoas sensíveis, como é que deu consigo a escrever um livro infantil (O Homem Corvo, Saída de Emergência), e como é que foi essa experiência?
Não tenho muitas ideias que possam servir de ponto de partida para livros infantis, mas, ainda assim, vou imaginando algumas. Acho que as crianças adoram histórias negras, histórias perigosas – somente têm de ter um enorme sentimento de faz-de-conta, senão as ideias negras e perigosas podem tornar-se muito duras. Desde que as ideias mais heterodoxas sejam expostas de um modo que faça as crianças sentirem-se num mundo de faz-de-conta total, que poderão abandonar por uns instantes e, em seguida, regressar quando quiserem, tudo resultará bem e não haverá lágrimas, nem equimoses. Psicologiza-se demasiado sobre se certas referências serão ou não boas para crianças e, às vezes, investe-se num discurso paradoxal, quando, no fundo, a verdade é que basta transmitir-lhes, claramente, a noção de que é tudo a fingir. Recordo que as crianças seiscentistas rebolavam a rir a ver gatos reais a serem incinerados em massa em fogueiras no meio das praças e, contudo, cresceram e tornaram-se adultos responsáveis e empáticos – algumas até se tornaram autores de títulos maiores da literatura ocidental. Há trezentos anos, há duzentos anos, o entretenimento popular, impresso em folhas volantes e folhetins, era mais violento que as imagens televisionadas das guerras contemporâneas e, não obstante, a sociedade é obcecada em censurar imagens cada vez mais depuradas, o que é particularmente patético no que concerne à ficção. Dito isto, «O Homem Corvo», que é uma fábula bem inocente, transmite um elevado sentimento de faz-de-conta.
Esse livro partiu de uma ideia para uma história que andava há anos na minha cabeça e que acabei por concretizar somente para colaborar, propositadamente, com os ilustradores, porque tivemos vontade de fazer um livro juntos. A criação foi uma experiência agradável e acho que algumas coisas que estão no livro resultaram muito bem. As ilustrações são admiráveis.
Tenho uma ideia para criar outro livro infantil, que será diferente de «O Homem Corvo» – mais alienado, com maior propensão para o antilogismo e para o grotesco –, mas ainda não encontrei um estilo de ilustração adequado a essa história.
Como se pode ver pela sua incursão no livro infantil, nos álbuns de spoken word, nos romances, contos, ensaios e livros de BD, não tem qualquer problema em experimentar diferentes géneros. Ou melhor dizendo, linguagens. Imagino que não tenha problemas em, um dia, escrever um guião duma curta-metragem ou de um filme, se a ideia lhe surgir com esse formato, mas como reagiria a uma proposta de adaptar um conto ou um romance seu para uma curta ou um filme? E qual seria o seu envolvimento num eventual projecto?
Sei como se escreve um argumento de cinema e já escrevi argumentos para projectos de curtas-metragens que nunca se concretizaram, mas não foi algo que eu gostei de fazer. Gosto de cinema, enquanto espectador: enquanto criador, não gosto dessa linguagem e não tenho nenhum interesse em ver obras minhas adaptadas a ela. Se alguém quiser fazer um filme a partir de algum dos meus livros, tudo bem, faça-o, mas se isso não acontecer não me irei aborrecer. O que se passa é que o mundo pictórico não me magnetiza: prefiro palavras. Isto poderá parecer estranho, porque escrevo banda desenhada – e já desenhei bandas desenhadas –, mas, para mim, a banda desenhada é uma linguagem narrativa, não é pictórica. A ilustração, a pintura são pictóricas. Em oposição, a banda desenhada é literária. Todas as diferentes linguagens com que vou desenvolvendo as minhas obras são literárias.
A liberdade que eu sinto em ser capaz de trabalhar em linguagens literárias diferentes é embriagante e aquilo que, constantemente, aprendo numa, acaba sempre por ser útil em outra. Neste momento, três das minhas obras mais-queridas, «Palmas Para o Esquilo», um livro de banda desenhada, «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense», um disco de spoken word, e «Batalha», um romance, representam, para mim, o antídoto ideal para aquilo que Baldassare Castiglione cunhou com o nome de sprezzatura: o ar de desprendimento que um artista dá diante da complexidade que deu criar a obra. Ou seja: a maioria do público acha que é fácil ser-se escritor, porque alguns, para efeito de achegamento comercial aos leitores, dão a impressão propositada de que escrever é divertido e simples, quando, na verdade, é árduo e arriscado. Escrevo profissionalmente há catorze anos e só passado este período é que dei por mim a escrever textos com os quais me sinto totalmente identificado, como os de «Palmas Para o Esquilo», «Os Anormais» e «Batalha», obras que qualifico como sendo as minhas melhores. O meu gosto literário inclina-se para o pirotécnico, para o estilo que os gregos chamaram de auxesis e os romanos de amplificatio: gosto de palavras sesquipedálicas, gosto de inventar palavras – todo o léxico ocidental foi inventado por escritores, para começar. Essa é a tradição de que faço parte. Não me insiro na tradição do entretenimento.
À vista disto, só posso sentir desconsideração por quem trata com leviandade a arte da escrita, menosprezando a importância das palavras e escrevinhando aquilo que eu apelido de filmes disfarçados de livros. Na verdade, não os considero, de todo, escritores. Para mim, ser-se escritor é ser-se erudito, é ser-se alguém para quem o conhecimento e as palavras são as coisas mais importantes do mundo. Pense-se em escritores como Robert Burton, Cervantes, Nabokov, Laurence Sterne, William Gass, Alexander Theroux, entre outros. A literatura anda há demasiado tempo demasiado perto da indústria do entretenimento e precisa aproximar-se, novamente, do conhecimento e das palavras. Precisamos de recuperar a tradição do romance macrocéfalo, enciclopédico. Precisamos de mais macroficções e de menos microficções.
Esta versatilidade de formatos permite-lhe ter uma abrangência fora do vulgar, em termos de público, mas a sua escrita e o tipo de histórias/ensaios que escreve são claramente dirigidos a um público muito específico. Mas também tem uma posição muito forte quanto ao estado da Cultura na sociedade de hoje. Não acha que obras mais acessíveis – não necessariamente dumbed down, atenção – seriam úteis para atrair mais pessoas e, de certa forma, educá-las?
Não acho que a arte tenha de educar ninguém. Pelo contrário: acho que a arte tem de deseducar toda a gente.
Tenho absoluta consciência que a minha obra não é para todos, mas seria incapaz de tornar-me um executante e fazer algo mais comercial, que reunisse com rapidez superior um maior número de leitores. Junte-se um grupo heterogéneo de pessoas numa sala e tente-se encontrar um consenso entre elas: esse consenso terá de ser muito simples, porque, em virtude da multiplicidade de gostos e de opiniões manifestados, apenas uma percentagem reduzidíssima de referências será partilhável. Ao criar-se uma obra com base nessas referências ela será, certamente, gostável pelo grupo inteiro, mas, infelizmente, também será pobre em conteúdo, por culpa da redução de opções que lhe está na origem. Ou seja: as obras mais populares costumam ser, em regra, muito simples. Não estou a imprimir sobre estas obras nenhuma avaliação quanto à sua qualidade, apenas quanto à sua popularidade. No meu caso, as minhas obras contêm sempre um grau elevado de complexidade que advém do facto de eu ser um indivíduo incapaz de fazer coisas simples.
Não estou a ser airoso, estou a ser o mais franco possível. Tenho vocação para complexificar as coisas e criar obras polissémicas que são ariscas a leituras e leitores impacientes. Aliás, os leitores que se aproximarem da minha obra em busca de se entreter e passar um bom bocado farão melhor se pensarem duas vezes e irem procurar outras coisas. Entreter não é comigo, como diria o Léon Bloy: «o autor nunca prometeu divertir ninguém – prometeu até o contrário e cumpriu fielmente a sua palavra». A minha substância não é a de simplificar. Em consequência, tive de aprender a aceitar a realidade de que aquilo que escrevo será sempre para leitores que pensem da mesma maneira que eu; ou, no mínimo, para leitores que gostem de ler sobre os temas que compõem o meu universo autoral, que gostem de conhecimento e que gostem de palavras.
Se a maioria do público não tem vontade ou capacidade de ler obras complexas, isso será um problema que não me diz respeito, assim como acho que não deva ser problema de nenhum autor. O público gosta de ser crítico e de exigir melhores escritores e melhores livros, mesmo que a sua concepção de “melhor” seja discutível, por isso não vejo por que razão é que os escritores não devam exigir leitores melhores: leitores corajosos que, de facto, gostem de ler bons livros. Eventualmente, cada indivíduo procurará obras que o seu gosto e as suas limitações lhe permitam apreciar, por isso sinto-me satisfeito por saber que os meus leitores são pessoas inteligentes, originais e com disponibilidade para aprender.
Continuando na mesma linha, já disse em várias ocasiões que não gosta de feiras de livros nem de bibliotecas. Porquê?
Não aprecio feiras do livro, é verdade, mas entenda-se que o meu ponto de vista é persuadido pelo facto de ser autor. Na verdade, compro dezenas de livros cada vez que vou a uma feira do livro, logo do ponto de vista comercial sou um magnífico cliente.
No entanto, nunca disse que não gosto de bibliotecas: simplesmente, disse que não sou fã de ir a uma biblioteca para ler ou consultar livros, porque prefiro comprá-los e tê-los. Só vou a uma biblioteca consultar um livro se não conseguir comprá-lo nos alfarrabistas ou pela Internet. Para mim, os livros são ferramentas e, assim sendo, preciso de tê-los à mão, preciso que o conhecimento esteja imediatamente acessível. Tento evitar no máximo das minhas capacidades interromper o meu estudo ou a minha escrita durante umas horas ou uns dias só porque me falta um material bibliográfico de consulta em especial: se o tiver em casa não preciso de interromper coisa nenhuma, basta-me ir às estantes. Construo um espaço mental para os livros com base na minha biblioteca pessoal e preciso de ter, em todos os momentos, essa relação de proximidade com eles. Logo, observo as bibliotecas como uma espécie de “disco externo”, que ligo de vez em quando. Mais uma vez, sublinho que o modo como eu olho e vivo este mundo é muito diferente do modo como um leitor o olhará e viverá. O modo como eu lido com os livros será outro, também.
Há pouco falei no conceito renascentista de sprezzatura e, em paralelo, vale a pena recordar que, também para efeito de aproximação comercial ao público, muitos artistas dão uma imagem propositada de que são parecidos com o público, o que não pode estar mais longe da verdade: se os artistas fossem parecidos com o público, eles seriam público. E não são. O público precisa de entender que os artistas não são pessoas normais. Os artistas vêem as coisas de um modo diferente e pensam de modo diferente. É por essa razão que são artistas e são capazes de criar arte.
Também já mencionou algumas vezes que cada vez lê menos ficção. Não será contraditório que um autor que escreve ficção leia pouca ficção?
Não sei se será contraditório, mas sei que é muitíssimo comum: existem inúmeros escritores que não lêem ficção, pelos mais diversos motivos. Alguns até por snobismo – que não deixa de ser um motivo legítimo, note-se. No meu caso, para ser brutalmente sincero, não tenho tempo, nem motivação, para ler histórias, porque, na maioria das vezes, isso é-me desconfortável: a ficção é demasiado cristalina para mim, demasiado atingível. Assim, no que concerne à ficção, somente vou comprando os novos livros escritos por autores que eu admiro e todos os clássicos que, até hoje, ainda não tive oportunidade de ler.
Mesmo lendo pouca ficção, vai acompanhando o que se faz em Portugal?
Essa pergunta fará mais sentido para um leitor. Os leitores é que acompanham as novidades, os novos autores, os novos livros. Isso é um comportamento de fã. Eu não sou um fã, mas um autor. Não acompanho nada: escrevo e os meus livros são publicados. É tão simples quanto isso.
Falando da sua BD, demonstra sempre uma grande admiração pelo traço do Pedro Serpa, com quem já participou em duas BD (O Pequeno Deus Cego e Palmas para o Esquilo, ambas da Kingpin). Acha que a simplicidade e a clareza do traço dele são o contraste ideal para a sua escrita complexa?
Admiro o Pedro Serpa pela qualidade do seu desenho, que considero um dos melhores da nossa actualidade, e pelo facto de ele ser temerário e não resmungar quando lhe peço para desenhar um dragão deitado em centenas de caveiras, todas diferentes. Mas gosto de trabalhar com ele no mesmo feitio que gosto de trabalhar com outros desenhadores que compreendem os meus métodos.
Os meus livros de banda desenhada são imaginados, escritos, planificados e esboçados por mim antes dos desenhadores serem convidados a concretizar a minha visão. No meu caso, as parcerias surgem somente da minha necessidade de ter desenhadores que dêem corpo às minhas visões, não preciso de ninguém para criar uma história a meias. Quando entrego as histórias aos desenhadores para serem desenhadas elas já estão fechadas e planificadas. É óbvio que os desenhadores têm liberdade para criar; em especial, na caracterização de personagens e de ambientes, desde que as suas escolhas gráficas não se intrometam na montagem das sequências e dos planos, porque, como penso nos livros como um todo, uma ténue mudança de plano ou de sequência numa parte, não fará sentido narrativo com outras partes que surjam adiante. É por isso que peço aos desenhadores para seguirem escrupulosamente as minhas planificações. O que não invalida que eles tenham boas ideias que sejam aplicadas: o Pedro Serpa, por exemplo, em «Palmas Para o Esquilo» decidiu que nenhuma personagem deveria ter sombra, excepto as que defini no argumento como sendo essenciais para a história. Foi uma excelente ideia, que fez todo o sentido no livro em questão, tornando-o mais misterioso – o leitor até pode não se aperceber imediatamente desse pormenor, mas ele irá criar uma sensação perturbante na leitura. O André Coelho, em «Sepulturas dos Pais», livro que iremos publicar este ano pela Kingpin Books, também teve boas ideias para a construção gráfica de ambientes que tornaram o resultado final ainda mais perturbador. Esse tipo de sinergias e de troca de boas ideias é que, para mim, são as verdadeiras colaborações. No fundo, quando toda a gente envolvida no projecto é profissional e segura em relação às suas qualidades o resultado final só pode ser bom. Infelizmente, já tive de cancelar colaborações com alguns artistas que apenas queriam inventar as suas histórias a partir das minhas ideias, porque, convenhamos, criar algo a partir de uma história já escrita e planificada é muito mais fácil que imaginar uma a partir do zero. Não tolero esse tipo de parasitismo e falta de talento.
Aquilo que a maioria do público não se apercebe é que quem deseja escrever não escolhe, à partida, a banda desenhada, que é uma linguagem abordada, em primeira instância, por quem quer desenhar. Todavia, querer desenhar é muito diferente de fazer banda desenhada, que é uma linguagem narrativa. A maioria dos desenhadores não quer transmitir ideia nenhuma: somente quer mostrar que desenha bem – é por isso que quase todos os livros de banda desenhada criados, em exclusivo, por desenhadores são maus de um ponto de vista literário. Em essência, nesses livros cada vinheta transforma-se numa tela para mostrar virtuosismo gráfico, em vez de consistir parte de uma sequência harmoniosa, pensada para integrar-se num todo. De facto, são livros muito mal sequenciados. São raros os artistas que têm boas competências narrativas e existem muitos desenhadores que só estão interessados em colaborar com um escritor se este se limitar a dar umas ideias para esses, depois, desenharem o que quiserem.
Ora, eu não poderia trabalhar de forma mais diferente, porque não sou um simples argumentista: sou um autor, o que, à luz do que disse anteriormente, significa que tenho um universo autoral próprio, estruturado numa obra que já conta com quase vinte livros, de banda desenhada e prosa. Daí que quando convido um desenhador para dar corpo à minha visão, ele é que tem de adaptar-se ao meu universo e não o contrário.
Além da escrita, outra marca distintiva da sua obra são os temas, frequentemente macabros e sempre pesados, ou tratados de forma pesada. Não há lugar para ligeirezas, no tema ou na linguagem. Claramente são temas que de certa forma o preocupam, mas disseram-me uma vez algo muito interessante e que espero ainda me lembrar como deve ser: numa entrevista que nunca consegui encontrar, o David disse que ficava obcecado com um tema, escrevia três coisas sobre o assunto, para o encerrar, e avançava. É de facto assim?
Essa é uma leitura incorrecta de algo que eu disse algumas vezes e que é o seguinte: a minha obra vai sendo criada através de fases diferentes. O que acontece é que eu observo os meus temas de um determinado ponto de vista autoral e essa observação pode demorar-se por dois, três livros, quatro livros, nunca sei quanto tempo vai durar. Em seguida, esgoto esse ponto de vista – temporariamente ou em definitivo – e encontro um novo. Imagine-se que os meus temas são um modelo e eu vou desenhando à volta desse modelo, de acordo com diversos pontos de vista: o modelo é sempre o mesmo, os pontos de vista é que vão mudando. São assim, os meus livros: são observações, interrogações que eu faço aos temas que me deslumbram e que me inquietam.
Essas várias fases diferenciam-se por tónicas, certas insistências semânticas ou técnicas, pendores, dimensões. Pode acontecer que, em determinado momento, me encontre mais preocupado com um ponto de vista alegórico, por exemplo, em oposição a um ponto de vista realista. Os meus romances «A Conspiração dos Antepassados» e «O Evangelho do Enforcado» têm um pendor mais realista que «Batalha» ou «Lisboa Triunfante». Este vai mais ao encontro da autenticidade, sem querer, de facto, ser realista, embora, na minha cabeça, pertença ao mesmo ponto de vista que «A Conspiração dos Antepassados» e «O Evangelho do Enforcado». Bandas desenhadas como «Mucha», «O Pequeno Deus Cego» e até «Palmas Para o Esquilo» são mais alegóricas que bandas desenhadas como «Mr. Burroughs» ou «Sammahel», que estão mais preocupadas em explorar os mecanismos da criação artística. «A Última Grande Sala de Cinema», «Os Anormais» e «Palmas Para o Esquilo» são uma variante de uma preocupação autoral minha que eu apelido de Teoria do Todo: são visões que partem do microcosmos para o macrocosmos, obras em que eu começo por falar sobre assuntos muito próximos de nós para, num ápice, estar a discorrer sobre física, cosmologia, história e a interligar esses elementos num todo coerente e fluido. No primeiro caso, o ponto de partida é o cinema; no segundo, a deformidade; no terceiro, é a loucura. «Batalha» é, sobretudo, um romance sobre linguagem, sobre palavras. Cada livro tem preocupações distintas e observa os meus temas de um ponto de vista diferente.
E qual é exactamente a sua relação com a religião e o oculto? Afinal, é ateu, mas não me parece que tome uma posição excessivamente crítica. Também ainda não li o Batalha, confesso, portanto esta questão já pode estar respondida, mas tanto em A Conspiração dos Antepassados como em O Evangelho do Enforcado (os três livros são da Saída de Emergência), há uma identificação, ou pelo menos ligação, entre a arte e a religião. Porquê?
Não vejo essa ligação apontada entre a arte e a religião e tenho alguma dificuldade em ver onde é que ela poderá existir, mas estou aberto a essa possibilidade. A minha relação com a religião e com o oculto é baseada no puro interesse histórico. Sou um estudante desses temas e gosto de escrever sobre eles, mas não acredito em nenhuma manifestação do sobrenatural, seja de ordem religiosa ou mágica. Aliás, a magia é, ela própria, uma crença. Com efeito, sou ateu, nem sequer sou agnóstico. Para a maioria das pessoas é provável que a dimensão humana não seja suficiente, mas para mim é. Todavia, reconheço que a espécie humana é a da transcendência: precisamos dela e é por essa razão que inventámos a arte, a ciência e a religião. O problema é que a ciência é demasiado complexa para ser acompanhada pela maioria das pessoas e, por culpa disso, não as faz sonhar. Por outro lado, as religiões e o oculto são sistemas muito simples, estruturados em conceitos basilares fáceis de perfilhar e interpretar. Não deixa de ser irónico que as leis da magia sejam em número idêntico às quatro forças físicas: são a lei da similitude, a lei da contrariedade, a lei do contágio e a lei da contiguidade. Com estas quatro leis, formuladas desde os tempos clássicos, gregos e romanos, estrutura-se, praticamente, todo o edifício do ocultismo ocidental. A maioria dos indivíduos precisa de ideias previsíveis e de um sistema previsível, porque o mundo e o universo são altamente imprevisíveis, embora não pareçam. A ciência é um sistema que, volta e meia, é revisto, quando surgem novas descobertas que tornam obsoleto ou incompleto o conhecimento anteriormente adquirido. Esse labor de revisão é anátema para qualquer religião revelada, porque uma religião revelada ergue-se sobre verdades imutáveis. A autoridade das religiões reveladas consiste na sua imutabilidade e essa qualidade é que conforta os seguidores.
Posto isto, acho que a separação de magistérios, chamemos-lhe isso, entre ciência e ocultismo, nem sempre foi clara e linear. No campo da medicina, por exemplo, somente a partir da aceitação da teoria dos germes é que as práticas médicas se foram, gradualmente, desenvolvendo numa esfera apartada das crenças mágicas e ocultistas. Nos séculos XVII e XVIII não existia grande diferença entre a medicina e a magia. O ocultismo ocidental contemporâneo é uma herança do revivalismo ocultista europeu da segunda metade do século XIX, que foi um movimento contracultural anticientífico. Na verdade, a partir desse período é normal encontrar-se ocultistas que rejeitam, liminarmente, a ciência e cientistas que repudiam, veementemente, o oculto, mas nos séculos anteriores ambos os sistemas estavam mais próximos e era comum encontrar-se cientistas-ocultistas e ocultistas-cientistas. A fronteira entre o ocultista e o cientista era mais delgada, ambos partilhavam mais travejamentos.
Até agora, todas as histórias que li suas me pareceram fechadas, com um princípio, um meio e um fim, sem pontas soltas relevantes. Considera que é assim, ou acha que há espaço em algum trabalho para algum tipo de regresso?
Não tenho ideias de regressar a nenhum dos meus livros para criar uma sequela, uma prequela, um remake ou um reboot. Como disse, cada livro é uma observação pensada num determinado momento e, sendo assim, não faz sentido refazer uma observação: faz sentido fazer observações novas, com novos pontos de vista.
Aligeirando a conversa, o que é que pode dizer sobre Sepultura dos Pais, que já tem lançamento anunciado para Outubro? Pelas imagens que já divulgou, parece-me mais próximo de Cidade-Túmulo e A Última Grande Sala de Cinema (ambos da Círculo de Abuso), pelo menos em termos visuais.
«Sepulturas dos Pais» é um livro sobre o fracasso. É muito duro, mas encerra na perfeição uma das minhas obsessões autorais: a de que entre o lixo mais sórdido se encontram as flores mais maravilhosas. Gosto de trabalhar esses conceitos antagónicos e de perceber até que ponto se podem aproximar sem se anularem. Basicamente, é agarrar na miséria para descobrir magia e agarrar na magia para descobrir miséria. Muitas vezes, basta somente mudar a fonte ou o grau de iluminação para que uma se transforme na outra. O desenho do André Coelho é perfeito para esta história e transmite uma força e uma negrura que, espero, impressionarão os leitores. De um ponto de vista da técnica do desenho, o André faz coisas espantosas com o preto-e-branco: as texturas que criou para «Sepulturas dos Pais» são de uma organicidade como raras vezes tenho visto. Gosto muito de trabalhar com o André, com quem já colaborei num dos capítulos de «É de Noite Que Faço as Perguntas» e recomendo vivamente o seu livro «Terminal Tower», feito em colaboração com Manuel João Neto.
E para terminar, que perspectivas há de outros trabalhos futuros?
Estou a trabalhar, alternadamente, num romance, num livro de não-ficção e num livro de banda desenhada. O romance seguirá a fase iniciada com «Batalha», mas numa toada muito mais niilista. O livro de não-ficção é um trabalho de longa-duração sobre um tema que eu conheço muito bem e sobre o qual irei apresentar algumas visões heteróclitas sobre temas que muita gente pensa estarem esclarecidos. A banda desenhada intitula-se «O Poema Morre» e consiste numa história negríssima e duríssima sobre guerra.
7 comentários:
Um autor bastante culto e instruído que aspira a ser lembrado depois da sua morte e não antes... É a ideia que tenho deste autor.
Claro que concordo quando o David Soares diz que não tem que descomplexizar nenhuma obra para a tornar mais comercial. As pessoas devem evoluir ao ler e não o contrário.
Não é por a população mundial estar cada vez mais burra nos últimos 10 anos que os escritores devem aligeirar as suas obras. Antes pelo contrário...
O problema são as editoras que cada vez mais tendem a promover guionistas a escritores de culto (João Tordo, José Luís Peixoto...); isto quando não empurram para as luzes da ribalta uma realizadora porno hardcore em potência (A autora de 50 sombras de grey... não sei o nome nem faço esforço para de me lembrar...)
Ainda assim, quero dizer que este autor me parece escudado no seu computador.
Homem, responde aos emails que te enviam porque, por muito boa que a tua obra seja, continuas a ser uma pessoa igual à dos teus leitores.
Homem, fazes parte de um mercado! Logo, trata de te dar bem com as editoras e com os seus projectos (V.g. Feiras do Livros e Revista Bang!...).
Senão garanto-te que não alcanças a popularidade que mereces e ainda morres de fome como tantos bons artistas que nunca alcançaram o estrelato.
Quanto à linguagem, claro que se deve primar pelo rigor e pela beleza das palavras empregues numa obra; mas, muito melhor que uma palavra pomposa, como sesquipedálicas, é a palavra certa para que o leitor assimile da melhor forma o que pretendemos dar a conhecer.
Claro que a palavra sesquipedálicas teve o efeito de me deixar curioso, mas, muitas vezes, um pouco mais de fluidez no discurso ajuda o leitor e passa melhor a mensagem (Mas cada escritor escreve como bem lhe apetece...)
Francisco Fernandes
Tenho de concordar contigo... Por muito que admire este autor - e admiro - tenho alguns problemas na forma como lida com o público. E embora compreenda que seja um autor para um público restrito, acho que às vezes se perde nas palavras difíceis e afins, e complica desnecessariamente a leitura.
Afinal, de que serve ter algo a dizer, se ninguém compreende?
Mas deixo a ressalva que gosto bastante da escrita dele, por exemplo, em "A Conspiração dos Antepassados", livro no qual consegue ter um equilíbrio entre a obscuridade das palavras e a sua legibilidade...
E para além disso, faz-me impressão uma coisa no David Soares:
Para quê ter um Blog em que as pessoas não podem comentar?
Qual é a piadas de ter um Blog se não para partilhar opiniões?
Eu deixei de ir ao blog dele porque não me apetece ler uma coisa e depois não poder comentar.
Mas isso é algo que não percebo em geral no mundo literário.
O grande GRRM faz a mesma coisa...
Deve existir algo que eu não percebo
Francisco Fernandes
Também me faz confusão, mas entendo. É uma posição válida, especialmente quando se é um autor tão fracturante (ou tão super popular, no caso do GRRM) como o David Soares. Além disso, o blog dele não é suposto ser um espaço de discussão, é suposto ser um espaço de divulgação.
Dito isto, também gostava de poder comentar!
Obrigado por realizar a entrevista, fiquei a compreender David Soares um pouco melhor.
Gostei bastante das respostas que ele, acho que foi uma entrevista interessante!
O Rui escreveu na sua resenha de A Conspiração dos Antepassados que, "Entre o cinzento dia-a-dia de Pessoa, com as suas depressões e angústias, e os rituais diários de magia sexual de Crowley, a diferença não podia ser maior." Eu achei isso bastante incorrecto e escrevi um pequeno ensaio sobre as semelhanças entre os dois. Acho que talvez gostasse de o ler; aliás até cito esta entrevista nas notas de rodapé.
http://obloguedeluizsantosroza.blogspot.pt/2015/09/sobre-um-poeta-e-um-mago.html
Cumprimentos,
Luiz.
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