segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Lágrima


Autor: André Pereira


Opinião: Lágrima é o segundo livro de André Pereira, que é meu primo, e que escreve bem que se farta. Só esses dois factos me fazem ignorar o nome da "editora" que vem ali estampado na capa. Já me queixei disso mais do que uma vez, portanto vamos avançar para a crítica.

Fim de Abril. Manhã cedo. Afonso dá entrada no consultório com sintomas de absolutamente nada. Bom ar, postura simples, corpo firme. Discurso coerente e articulado. Consciência do espaço e do tempo. Nenhum distúrbio psíquico aparente. Tudo indica que seja mentalmente equilibrado. Um pormenor, o seu filho morreu ontem.

Este é o primeiro parágrafo, uma excelente entrada para o livro, e uma saída fácil para qualquer crítica que se lhe faça. Obcecado (da melhor forma possível) com primeiros parágrafos, não é de estranhar que o André tenha escrito um desta qualidade, que prende logo o leitor, quer ele queira quer não. Mas é também um ponto de partida óbvio, quando se fala do livro, e toda a gente que o fez começou exactamente por aqui, portanto o que se segue?

É que no meio do muito que se possa dizer sobre Lágrima, o mais difícil é defini-lo, exactamente por causa do que se segue ao primeiro parágrafo.

Uma série de capítulos curtos, mas eficazes, a maior parte das vezes bastante emocionais, a contrastar fortemente com o protagonista que parece incapaz de se emocionar. E que é, já agora, um dos protagonistas da história, que tem uma premissa estupidamente simples: um casal que se afasta depois da morte do filho. A mãe chora e desespera, o pai ri e desespera. A mesma consequência, derivada do mesmo motivo, mas por causa de reacções completamente opostas.

Rapidamente se podia escrever um ensaio sobre este contraste de emoções, e como se disse na apresentação do livro, sobre como a maior dor é a de quem não chora, exactamente por não conseguir chorar. Mas eu não concordo. O contraste não é importante, assim como não interessa qual das dores é maior. Até era fácil fazer uma outra leitura, sobre como o pai é uma representação do macho português emocionalmente reprimido, mas isto não é uma aula de Português, portanto não é preciso inventar nada tão elaborado.

A realidade é mais simples que isso, e também mais dura. O ponto central da história, aquilo que faz o enredo avançar, aquilo que motiva todas as personagens e aquilo que dá realmente sumo ao livro, é o facto do filho deste casal ter morrido. O livro começa por aí, de forma disfarçada, e não hesita em discorrer sobre a morte, das mais variadas maneiras. A mensagem que passa é a da dureza da morte, tão esquecida hoje em dia. Com os jornais cheios de morte brutais e sanguinárias, e as ruas cheias de morte lenta e sem tecto, já nos tornámos insensíveis.

Vemos notícias de um violento tiroteio num bairro desagradável qualquer com a mesma impassividade com que vemos notícias de mais uma medida de austeridade, ou mais uma notícia sobre imigrantes ilegais que viajam em condições desumanas para fugirem de condições desumanas, e que acabam por ser tratados de formas desumanas.

Lágrima tem capítulo atrás de capítulo a dizer que a morte é cruel e não quer saber de nada disso. Gostas, não gostas, queres, não queres, tens cuidado, não tens, és novo, és velho, és homem, és mulher, és burro, és um cientista nuclear, pai, mãe, tio, primo, filho, namorada, marido, não interessa. Morres como os outros. A jornada do pai que não chora, e que solta gargalhadas no funeral do filho, é equiparável a qualquer demanda heróica de qualquer outro livro, apenas de forma mais subtil. E no fim, sabem qual é a conclusão? A mesma que no início: o seu filho morreu.

O que este pai percebe, e que toda a gente acha estranho, é que chorar não adianta. O filho continua morto. No final é vencido, por circunstâncias curiosas, mas não tem o filho de volta, porque tinha razão. E a mãe? A mulher deste homem estranhamente feliz com a morte do filho? Ora, não passa de um reflexo distorcido do marido. As acções de um e de outro correm em paralelo de forma quase simétrica, não deixando margem para dúvidas que se está a contar apenas uma história, a da morte do filho, e não outra, nem outras.

No meio disto tudo, personagens muito bem caracterizadas, um desenvolvimento extraordinário, uma escrita para lá de boa, ecos de Saramago, umas técnicas de escrita de pôr cabelos em pé em qualquer professor de português, mas que funcionam de forma maravilhosa, e uma capacidade de ser emotivo, sem nunca se tornar lamechas, de fazer inveja.

Recheado de cenas fortes e a dar vontade de ler duma assentada, este livro comprovas apenas aquilo que eu já disse antes: o André devia dedicar-se aos romances. Porque este é, sem sombra de dúvida (nem parcialidade, garanto), extraordinário.

2 comentários:

Joel-G-Gomes disse...

Após ler o teu comentário, diria que o único erro mesmo é a chancela. Ou o sucedâneo de chancela, melhor dizendo.

Rui Bastos disse...

Praticamente!