quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O futuro à janela


Autor: Luís Filipe Silva


Opinião: Primeiro queria dizer que tenho este livro autografado. Depois, que conheço pessoalmente o Luís Filipe Silva (LFS), graças à Oficina de Escrita da Trëma. Ele é um dos mentores (o outro é o Rogério Ribeiro) e tem sido uma presença quase constante nos encontros, que já vão no seu segundo ano. Como tal, ele tem criticado a maior parte dos textosque escrevi neste último ano e meio.

Chegou a altura da vingança.

Mas não vou ser mau, claro. Ele também não o é, e eu sei que gosto da escrita dele, mais que não seja porque já o li no Terrarium. As suas ideias também são fascinantes: sempre que chega a vez dele de criticar algum texto nas sessões da Oficina, todos ouvem com o máximo de atenção, porque ele sabe do que fala.

Daquilo que tenho vindo a conhecer dele, posso dizer que o LFS é um escritor com uma noção clara do que significa ser escritor e um conhecimento académico sobre o processo de escrita. Por outras palavras: o tipo percebe do assunto.

Não é, portanto, de estranhar, que logo a começar pela introdução deste livro, um texto em defesa do conto e da FC, este O futuro à janela me tenha agradado. É possível ver nesta introdução o típico raciocínio claro do LFS e a sua subtil, mas acirrada, veia provocatória. Muito bom começo!

Os contos, a maior parte deles relativamente curtos, são outra história. Há alguns verdadeiramente bons, e outros que nem por isso.

O primeiro é Dois estranhos, um encontro, e é demasiado curto. Parece mais um excerto do que outra coisa. Gostava de ler a história maior, saber mais pormenores, enfim, ver o Infante e D.João II no futuro. É que este pedaço, em que apenas se percebe que estas duas personagens foram levadas para o futuro, é interessante e altamente hilariante, mas pouco satisfatório. Assim, ainda que bem escrito, não se torna num conto nada de especial.

Embaixadores da boa vontade, ou Contacto! é excelente. A história de como um alienígena invasor nada pode contra um bêbedo, uma mulher zangada e um gato, é muito engraçada, graças ao humor impecável que o LFS demonstra. O conto é extremamente curto, mas isso é uma vantagem, neste caso.

Depois vem Os poetas da rua, que é composto por onze pequenos textos que me fizeram lembrar as Cidades Invisíveis de Calvino, mas com autores. Não é uma má leitura, mas não me conseguiu cativar. Pareceu não ter propósito nem contar uma história.

Em La Nausée II, um dos títulos mais curiosos desta colectânea, o que temos é um diário íntimo, estranhamente cativante, de um escritor que está a escrever o “livro do milénio”, seja lá isso o que for, durante a transição de 1999 para 2000. O relato é fragmentado e a sequência não é muito linear, mas torna-se interessante acompanhar os devaneios do tipo.

O Fernando Pessoa electrónico é um dos melhores contos deste livro. A ideia é fascinante logo à partida: um simulacro de Pessoa conversa com um tipo e acaba por se declarar real, dizendo que o tipo e companhia é que são os simulacros, num final deliciosamente irónico de uma conversa muito interessante que põe à prova os ditos do próprio poeta.

O conto seguinte é provavelmente o que mais me impressionou. Pequenos prazeres inconfessáveis é uma história arrepiante, violenta e perturbadora. Embora haja muito sangue (nunca mais me chamas sanguinário, ah!), a violência, a tortura e o incesto nunca são gratuitos e fazem sempre sentido dentro da narrativa. São bem descritos e utilizados: tanto o sangue e as tripas como o sexo e a volúpia estão soberbos. Há alguns momentos descritivos verdadeiramente fenomenais, o enredo é bom, e a estrutura, a dois tempos, é qualquer coisa de especial. Eu até tenho receio de contar alguns pormenores da história, que não quero estragar potenciais leituras que alguém ainda possa fazer, mas digamos que há um pai peculiar, uma miúda peculiar, e várias histórias de amor peculiares.

Logo de seguida aparece O jogo do gato e do rato, que consegue estar ao nível do conto anterior. É incrível a capacidade de contar esta história, de passar tanta informação em tão pouco espaço, com uma estrutura narrativa tão simples. Fez-me lembrar o Youth do Asimov, de certa forma. Para terem uma ideia, está-se a gravar um filme, e há criaturinhas ridículas, bípedes, com todo o aspecto de serem pessoas, que são consideradas mais ou menos como gado dispensável. Os humanos aqui são uma espécie de cavalos que não sente qualquer remorsos em matar as criaturinhas ridículas durante a gravação do filme, para adicionar realismo à coisa. No meio disto tudo há algumas partes mais confusas, que não deixaram perceber bem alguns dos pormenores, mas tirando isso... muito bom!

Série convergente, por seu lado, é um conto todo ele extremamente confuso. Não percebi nem metade. Apenas consegui captar uma ideia geral do enredo, a existência duma femme fatale, tipos enganados, um golpe informático e uma explosão que não conseguiu salvar a história. A estrutura é demasiado confusa e acaba por se perder demasiado nesses meandros.

Depois vem Também há Natal em Ganimedes, um título curioso para um conto curto e optimista, mas sem grande história. Ou melhor, sem grande acção. Há, isso sim, o vislumbre de um mundo maior e mais interessante, que gostava de ter conhecido. Os Andarilhos, criaturas gigantescas criadores de atmosfera, são interessantes, mas não o foco deste conto essencialmente... natalício.

Quase a chegar ao fim, lá apareceu um conto de que não gostei mesmo nada, A última tarde. Muita construção do background e pouca história, que ainda por cima avança sempre de forma demasiado subtil.

O penúltimo conto, felizmente, é fantástico. Criança entre as ruínas é triste, muito triste, mas está tão bem escrito que até dói. É sem dúvida um dos melhores contos que li, e em que a FC toma um papel relativamente e provavelmente enganadoramente secundário, para  que a história de Artur, e a de Liliana, sejam realçadas. Gostei.

Por fim lá aparece aquele toque de experimentalismo e loucura que me deixou de pé atrás. Ala anima é mais ou menos poesia, acho eu. As únicas coisas de que tenho a certeza é que é muito estranho e que não me agradou.

Durante a leitura foi fácil de captar ideias e raciocínios que reconheço como sendo típicos do LFS. Em A última tarde foi o processo: porque não fazer?, porque é que alguém não faz?, porque é que eu não faço?, e que é interessante encontrar aqui de forma tão explícita.

Outra coisa em que reparei, e que é muito mais interessante, é que o estilo é parecido ao de João Barreiros em termos de poder de síntese e da soberba imaginação. A capacidade de construir um mundo num parágrafo e de o explicar nos detalhes e nos pormenores, de forma subtil, mas eficaz.

A diferença é que se Barreiros é duro, seco, sarcástico e IN YOUR FACE, o LFS é calmo, pacífico, sensível e até subliminar. A essência é a mesma que a de Barreiros, mas com mais... diplomacia.

Como se deve ter percebido, foi uma leitura de que gostei e que fiz de rajada. A curiosidade para ler algo do LFS era muito e ficou satisfeita. Apesar dos percalços que encontrei pelo caminho, tenho que classificar este livro como bastante bom e andar à procura de mais coisas para ler. Já tenho alguns contos debaixo de olhos, e que não perdem pela demora.

Por agora é tudo. Não posso dizer muito mais, apenas que na comunidade portuguesa de fãs de Fantástico, por entre quezílias e discussões académicas que descambam invariavelmente em combates de “eu sou mais metafísico que tu, toma toma toma”, acho que as pessoas andam a perder o objectivo inicial, que é ler e escrever coisas decentes. Como é o caso deste livro. Se alguém ainda não leu, que o procure, pois é uma antologia daquele que é, definitivamente, um dos mestres da FC portuguesa.

4 comentários:

Marco Lopes disse...

Olá Rui

Também li este livro e também eu gostei bastante e de modo geral tenho de concordar com a tua opinião. Quanto as "diferenças" entre o LFS e o Barreiros concordo, mas acrescenteria que o Barreiros é o lado negro e o LFS a luz, no Barreiros não existe redenção ou esperança, já o LFS é isso mesmo esperança especialmente neste "O Futuro à janela".

Ainda me lembro de o ter descarregado do Tecnofantasia (onde também encontrei muitos outros contos) e tenho de dar os parabéns ao LFS por disponibilizar este livro gratuitamente, não há muitos escritores a dar o seu trabalho assim, a imprimir e claro a ler tudo de uma vez. Claro que já o voltei a ler numa leitura conjunta que "impingi" no Forum Bang!

Neste intervalo de tempo já encontrei o livro e agora só falta que ele me autografe a minha edição.

Nisto tudo só tenho pena que quer os autores portugueses não escrevam mais e as editoras não publiquem mais, ficamos todos a perder.

Um abraço

Rui Bastos disse...

Boas,

Concordo contigo! Essa dualidade entre eles os dois foi o que tão bem funcionou no Terrarium.

Abraço!

Barreiros disse...

Já agora, para se divertirem um pouco mais com a dictomia entre mim e o LFS, experimentem ler o CAÇADOR DE BRINQUEDOS que foi publicado pouco depois do FUTURO À JANELA.

Rui Bastos disse...

Se isso fosse fácil de encontrar!