sábado, 1 de novembro de 2014

Entrevista a Joel G. Gomes

O Joel é um bocadinho maluco, no melhor dos sentidos possíveis. Tem milhentas facetas/profissões relacionadas com a escrita, e parece incapaz de estar sem fazer alguma coisa.

Escreve isto, escreve aquilo, prepara lançamento, faz um vídeo-convite, auto-promove-se, arranja tempo para comparecer (de vez em quando!) à Oficina de Escrita de que também faço parte, e sei lá mais o quê!


Recentemente, e a pedido dele, li-lhe o Um Cappuccino Vermelho e o A Imagem, livros que fazem parte de um todo maior mas que se conseguem ler de forma independente, e que são bons. Especialmente o segundo.

Depois da leitura terminada, convidei-o para uma entrevista por e-mail, e o resultado está à vista: muito interessante. Divirtam-se e acompanhem as próximas obras deste (ia dizer jovem, mas jovem sou eu, não tu!) autor que ainda tem muito para contar!


Depois de ter lido Um Cappucino Vermelho e A Imagem em (relativamente) pouco tempo, gostava de começar pela pergunta mais óbvia: que tipo de obsessão tens tu com café?

Há uma ligeira imprecisão na tua pergunta. É verdade que em Um Cappuccino Vermelho o café está bem presente, mas em A Imagem, eu diria que a bebida mais predominante é o chá. Quanto à questão da obsessão, a resposta é não tenho. Diariamente tomo café ao pequeno-almoço e depois de almoço, porém, ao contrário de um dos meus personagens, sou capaz de passar um dia inteiro sem tomar um único café.

Para um começo mais sério, sei que escreves de tudo um pouco, incluindo guiões de curtas-metragens, mas como é que evoluíste até escritor independente?

Nunca estive dependente de ninguém para escrever (às vezes posso depender de outras pessoas para concretizar certos projectos, nomeadamente guiões), mas no caso de contos ou romances, dependo essencialmente de gerir bem o meu tempo e de disciplinar-me. A independência provém sobretudo da não necessidade de interrupção para ir trabalhar todos os dias. Nesse sentido, como a escrita, infelizmente, ainda não me paga as contas, não sou independente.

Algo que me desperta curiosidade são os teus esforços hercúleos de auto-divulgação. Parece que estás em todo o lado, sempre a promover qualquer coisa. Como é que conjugas isso com a tua escrita (e sanidade mental)?

Eu não tenho uma editora, estou a publicar por conta própria (e não a pagar para me publicarem – completamente diferente), a gastar dinheiro do meu bolso. Não tenho grandes dificuldades em conjugar as duas coisas, mas se tivesse, que hipótese teria senão tentar encontrar uma solução? Muitos autores descuram a promoção em detrimento da escrita. Não estão errados. Não vale a pena promoverem os seus trabalhos se estes não forem bons. O que eu quero dizer é que ter trabalhos bons não chega: é preciso saber fazer chegar essa informação aos leitores. Tenho algumas noções de marketing, adquiridas tanto em ambiente escolar como por outros meios, o que me ajuda. Procuro ler muito sobre marketing, blogging, self-publishing; oiço podcasts sobre o tema. No fundo, é apenas outra forma de criação.

E que tipo de feedback tens obtido?

De Um Cappuccino Vermelho as críticas foram, em geral, boas. Como já o publiquei há dois anos, hoje em dia não é tão falado como era antes. De vez em quando ainda recebo uma crítica ou outra, particularmente do Brasil. Sobre A Imagem, como só foi publicado há poucos dias ainda não tive muitas opiniões, mas as poucas que recebi têm sido positivas.

Falando nisso, como é que correu o lançamento de A Imagem?

Correu bem. A casa esteve composta. Não encheu como eu gostaria, mas não esteve mal. Comecei agora a contactar bibliotecas para fazer apresentações. Vamos ver como corre. Já tive algumas respostas positivas. É só questão de agendar. Em 2014 já não deve haver grande coisa, porque o calendário de programação já fechou, mas 2015 ainda está aberto.

Deixa-me aproveitar para falarmos como deve ser dos teus livros. Primeira coisa: levas pontos pelo carácter meta de ambos. Segunda coisa: como é que fazes para não te perderes nos enredos? Ambos dão voltas atrás de voltas, mais A Imagem que o outro, e são tudo menos lineares...

Não me posso dar ao luxo de me perder. Bem ou mal, tenho de arranjar uma maneira de manter os enredos todos em mente. Confesso que eu próprio me perderia se não fizesse esquemas e mais esquemas. Desconstruíndo um pouco o processo, para mim funciona assim: há um enredo principal, geralmente conduzido por um ou dois personagens, e depois há os sub-enredos relativos a cada um dos outros personagens. Não há nada de inovador aqui. Limito-me a traçar linhas na folha e a interseccioná-las, sabendo que não há causas sem efeitos, nem efeitos sem causas.
Quanto à questão do carácter meta, eu cresci com as revistas da Marvel e da DC, nas quais cada herói (ou equipa) faz parte de um universo comum. As aventuras de cada um, mesmo quando isoladas, surtem consequências nas aventuras de outros. Ainda antes de começar a escrever Um Cappuccino Vermelho já pensava em ter personagens a circular de história para história. Aliás, quando inseri o Ricardo em A Imagem não era minha intenção que ele viesse a ter um papel tão activo. Nem ele, nem o João, nem o Luís. Nem sequer era para haver um Alexandre. As coisas acontecem.

Já reparaste que tens relativamente poucas personagens femininas?

É verdade que em Um Cappuccino Vermelho há só uma. Em A Imagem está um pouco mais equilibrado, mas ainda assim a balança pende mais para o lado masculino. No entanto, posso adiantar que os próximos dois volumes, A Voz e O Quarto Vazio, irão ambos ter como foco principal duas personagens femininas, uma já conhecida, outra ainda não (embora faça um breve cameo em A Imagem).

Acho que é seguro dizer que a tua experiência enquanto guionista te ajudou a escrever estes livros, pois tens passagens muito cinematográficas, mas gostava de saber como é que “visualizas” uma história. Como é que elas te surgem? Como imagens de um filme que depois descreves, ou de forma mais abstracta e racional, e tens que fazer um esforço para lhes dar aquele carácter tão visual?

Nenhuma história se escreve à primeira. As minhas primeiras versões são quase sempre só esqueleto (às vezes incompleto), depois dou-lhe órgãos internos, carne e um trapinho ou outro para cobrir as vergonhas. A cada vez que se pega no manuscrito acrescenta-se alguma coisa, retira-se outra. Não há nenhum esforço envolvido senão o de tentativa e erro.

Consegues identificar-te com alguma das tuas personagens, ou são todas criações completamente independentes e sobre as quais tens total controlo?

Há sempre qualquer coisa do autor que perpassa para as personagens que cria. É inevitável. Quanto ao controlo, digamos que se o tivesse, a história do João Martins e do Ricardo Neves teria sido completamente diferente. Talvez nem houvesse A Imagem.

Duas das principais (e melhores) características da tua escrita, é o humor peculiar, de que muito gosto, e uma vincada “portugalidade”, algo relativamente raro em autores portugueses mais recentes. São duas marcas que tentas activamente pôr num texto, ou são coisas que simplesmente passam?

É a minha forma natural de ser. Estou constantemente a fazer apartes parvos, a fazer piadas com tudo e mais alguma coisa. Há uma sequência em A Imagem na qual o protagonista, Lucas, é visitado por um fulano que diz estar ali para o ajudar, mas tudo o que faz é ficar sentado no sofá. Mais tarde, durante uma discussão com outro personagem sobre como libertar alguém que está preso, o mesmo fulano queixa-se por ter tão pouco que fazer. Ao que Lucas responde: “Deve haver um sofá algures onde se sentar”. Admito que alguns trechos só possam ser percebidos na sua plenitude por quem me conhece (às vezes nem isso), mas não consigo evitá-los.

Eu sei que A Imagem já não era propriamente uma sequela de Um Cappuccino Vermelho, mas desta vez não me parece que tenhas deixado muito espaço para uma continuação, e no entanto já prometeste mais dois livros. O que é que se pode esperar deles? E de outros projectos futuros, já agora!

O próximo volume irá chamar-se A Voz. Quem se der ao trabalho de visitar o meu site e clicar onde diz PROJECTOS FUTUROS encontrará lá uma breve descrição da história que irei contar nesse livro. Será a história de uma mulher que ainda está a tentar lidar com a morte do marido, ocorrida cerca de um ano antes. O marido era locutor de rádio, fazia um programa nas madrugadas e deixou várias cassetes com programas seus gravados. Como forma de o manter vivo, ela passa o tempo a ouvir essas cassetes. Até que há uma noite em que ela o ouve dizer qualquer coisa que a leva a crer que ele sabia exactamente quando e como iria morrer. Como é que isto depois se encontra com o universo de Um Cappuccino Vermelho e de A Imagem é algo que ainda não posso revelar.
O quarto e último volume intitular-se-á O Quarto Vazio e será uma história sobre as contrariedades da natureza humana. Houve algumas pontas que deixei soltas nos dois trabalhos anteriores (algumas de propósito, outras não) que espero deixar devidamente aparadas neste último trabalho.
Quanto a outros projectos, estou a trabalhar em várias prequelas, todas elas para o mesmo projecto, que será uma sequência de pequenas novelas em formato episódico, tipo série. 

Para terminar, gostava que dissesses algumas palavras sobre o actual panorama literário português. Há quem diga que estamos ligeiramente estagnados, com autores já estabelecidos que simplesmente não evoluem, e outros emergentes muito direccionados para nichos, especialmente na área do Fantástico, em que parece que ninguém se esforça muito para atingir mais do que um grupo específico de pessoas. No entanto começa a aparecer alguma mudança, com obras de qualidade a surgirem com mais frequência e uma cada vez maior abertura a outros públicos. Tu vais claramente nesta direcção, com obras dentro do Fantástico e um esforço em atingir um público abrangente, mas o que é que achas?

Eu acho que uma coisa não deve excluir a outra. Lá porque um género é mais de nicho do que outros, isso não é razão para só escrever para meia dúzia de pessoas. Eu gosto de escrever dentro do género do fantástico, mas não me obrigo a escrever só nesse género. É conforme a história que quiser contar. Repetindo o que já disse em cima, sou eu que estou a pagar pelas minhas edições. Se eu escolho escrever assim e pagar por isso, então tenho de procurar chegar ao maior número possível de leitores. Caso contrário, mais vale abrir a janela e deixar as notas voarem.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ainda não li nada deste autor, mas tenciono em breve.


Francisco Fernandes

Rui Bastos disse...

Aconselho vivamente, acho que vais gostar... Mas atenção que entre o primeiro livro (Um Cappuccino Vermelho) e o segundo (A Imagem) a escrita e a forma de contar uma história evoluem bastante...