Eu já sabia que ver este filme não ia ser fácil. O livro também não é uma leitura fácil. A realidade que é representada pela história de Precious é uma que eu não imaginava de todo. E sim, eu sei que é um livro de ficção, mas também sei que existem casos assim. Vidas assim. Precious, tanto o livro como o filme, são ficção, mas são também um duro retrato da realidade.
Depois de ler o livro e ver o filme, nem sequer acho que seja uma versão romantizada das coisas. É como é. A vida de Precious é a pior possível, acontece-lhe de tudo, e no fim consegue melhorar consideravelmente a sua vida, mas não é um processo fácil. O livro e o filme retratam esse problema de forma excelente. Até diria que o filme o faz melhor.
A vantagem do livro é aproveitar-se da escrita para mostrar como é que a Precious escrevia, e como a sua ortografia, o seu vocabulário e a sua construção frásica vão melhorando ao longo das páginas. É um mecanismo muito eficiente para dar aparência de veracidade ao relato.
O filme não pode fazer isso, mas pode fazer algo melhor: dar uma cara ao sofrimento. Ou neste caso, várias. Sim, porque o sofrimento de Precious não é o único: todas as personagens, sem excepção, são exemplos de sofrimento, em maior ou menor grau. Até a assistente social de voz monocórdica interpretada por Mariah Carey (!), que só consegue ficar cada vez mais desiludida com o que se passa na vida de Precious.
Mas mais do que uma história de sofrimento, Precious consegue ser uma história de esperança. A protagonista enfrenta todas as adversidades e consegue, no final do filme, estar mais do que encaminhada para ter uma boa vida. Toma o controlo, consegue estudar, consegue ter sucesso, consegue dizer que não à mãe abusadora e negligente, e consegue ficar com os filhos.
Aquilo que achei mais interessante no filme foi o seu ritmo. Não tem momentos de acção, nem momentos de grande desenvolvimento; em vez disso prefere investir o tempo num ritmo lento, mas constante, sempre com uma enorme intensidade emocional. Incluindo aqueles que passa na nova escola, com a nova professora e as novas colegas/amigas, todas elas pessoas que lhe vão apresentar conceitos que não deviam ser novos: liberdade, amizade, alegria...
Desde os primeiros momentos, incluindo a sequência honestamente perturbadora de Precious a sair de casa e a comprar um balde de fast-food que enfarda a caminho da escola, e que depois vomita quando lá chega, que todos os pormenores indicam que os assuntos não vão ser abordados de forma leve. Essa mesma sequência do balde de fast-food, podia ter sido uma coisa tremendamente leviana... Mas não. Torna-se assustadora, como marco do ponto baixo a que a protagonista chegou. E também como indicação de mais qualquer coisa...
Mas confesso que apesar da fantástica actuação de Gabourey Sidibe como Precious, tenho que me juntar à crítica e dizer que foi Mo'Nique (raio de nome) que merece todos os aplausos neste filme. Faz um verdadeiro papelão enquanto mãe de Precious! Aliás, a maior parte dos momentos verdadeiramente marcantes só o são por causa da sua presença.
Digamos que a mãe de Precious é uma mulher absolutamente desprezível. Nojenta, até. E o filme não hesita em mostrar-nos várias sequências dos seus actos mais horríveis, desde a negligência completa até ao abuso sexual da própria filha, que deixou que fosse abusada durante anos pelo pai.
E ainda assim, vê-la esparramada no sofá a gritar com a filha é das sequências mais difíceis de se ver em todo o filme. Assim como uma das cenas finais, quando a mãe de Precious revela todo o novelo de abusos e negligência a que submeteu (e assistiu) a filha à assistente social. É um monólogo poderoso e, de certa, forma, horripilante. Mas também um momento que nos permite, finalmente, compreender o que se passa dentro daquela cabeça, que tipo de vida e de problemas é que teve e que acabaram por a levar até àquele estado. Não digo que seja fácil sentir pena, mas não é difícil de compreender o que se passou.
O que depois só dá mais à força à conclusão: uma tomada de decisão de Precious que deixa toda a gente abananada, mãe e assistente social em partes iguais. Porque é neste momento que ela finalmente se apercebe de que não precisa de ajuda. Ou melhor, de que a ajuda que precisa não é a ajuda que ninguém lhe possa dar. A decisão que toma é corajosa e, acima de tudo, desafiadora. E nesta altura do filme, a única coisa em que conseguimos pensar é "bom para ti, Precious, dá-lhe!".
Precious é assim, sem dúvida, um bom filme. Corre o risco, em várias partes, de cair no exagero e na pura vontade de chocar, mas eu acho que consegue balançar bem as várias situações e os vários momentos. O resultado é bom, muito bom, e um daqueles raros casos em que o filme é superior ao livro.
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