Esta não é uma crónica fácil. Já há muito tempo que a tenho na ideia, mas tem-me assustado um pouco a noção de analisar dois livros de Saramago ao mesmo tempo. Chamem-lhe o que quiserem, mas mesmo para mim, com centenas e centenas de opiniões já escritas nos últimos seis anos, ainda encaro um livro de Saramago como algo complicado de descrever. Quanto mais dois.
Mas esta é também uma crónica que precisa de ser escrita. Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, tinha ficado com isso na cabeça, mas agora que também já li o Ensaio sobre a Lucidez, tenho a certeza.
Os títulos são a primeira ligação. Quem conhecer minimamente Saramago e a sua obra sabe que raramente deixa alguma coisa ao acaso. É até bastante meticuloso, e tudo dentro de um livro contribui para a mensagem que quer passar e para a história que quer contar. Esta semelhança de títulos é claramente intencional, especialmente com uma escolha tão cuidadosa de palavras: "cegueira" e "lucidez", opostos simbólicos.
A intriga adensa-se quando se conhecem as premissas dos dois livros. No primeiro há uma súbita cegueira branca que atinge, aparentemente, toda a gente menos uma mulher. No segundo há uma súbita lucidez branca, sob a forma de uma quantidade massiva de votos em branco, que ameaça quebrar o sistema político vigente.
Interessante, não? Então e quando se avança na leitura de Lucidez e se percebe que a cidade atingida pela votação em massa dos brancosos, como são chamados, é a capital do país atingido pela epidemia branca em Cegueira? Ou quando as personagens deste começam a surgir naquele?
E há mais a dizer sobre os títulos. Estamos a falar de obras de ficção que se chama "Ensaio sobre...". Nome mais óbvio para dar a um par de alegorias, só chamar-lhes "Alegorias sobre...". Porque é disso que se trata: estes dois Ensaios são um par complementar de alegorias que revelam muito sobre aquilo que o autor pensava, o é habitual em todos os seus livros, mas especialmente marcante nestes, de tão directo.
A parte óbvia desta análise é ver em Ensaio sobre a Cegueira uma crítica à nossa sociedade, com tantos problemas que quando atacada em massa por uma epidemia inexplicável de cegueira branca, rapidamente degenera numa autêntica distopia horrível e perturbadora; e em Ensaio sobre a Lucidez uma outra crítica, desta vez mais dirigida ao nosso sistema político, com tantos problemas quando atacado em massa por uma epidemia inexplicável de votos brancos, rapidamente degenera numa autêntica distopia incompetente e desesperada.
Dá para ver as semelhanças. E também é fácil de ver um ponto essencial, a questão da escala. Saramago descreveu um país inteiro a cegar, mas apenas uma cidade a ficar lúcida. É curioso que esta mensagem, uma das mais poderosas destes dois livros, tenha ecos tão parecidos com a mensagem religiosa, demasiado simplista, de que o mal é fácil, mas o bem dá trabalho. É mais fácil um país inteiro cegar e degenerar, do que uma cidade erguer a voz contra o governo. O que também se nota no facto de haver uma única pessoa a não cegar, mas serem vários os habitantes da cidade que não votam em branco.
Também a rapidez dos conflitos é completamente diferente. Em Ensaio sobre a Cegueira bastam algumas dezenas de páginas para tudo começar a descambar, enquanto que em Ensaio sobre a Lucidez só mais perto do meio do livro é que tudo começa realmente a ficar mais sério. Mais uma vez a questão da facilidade do bem e do mal, ainda que não sejam propriamente estes os dois lados da questão.
Mas tirando o óbvio, o que mais há para ver? Bem, pouca coisa. Ou melhor, alguma, mas nem óbvia nem subtil, são os pormenores. Se há pecado a apontar a estes livros é que são tremendamente óbvios, como as alegorias normalmente são, e embora exista sempre alguma coisa mais do que aquilo que transparece de imediato, as grandes mensagens passam sem problemas. São os pormenores, uma especialidade de Saramago, que contam o resto da história.
Por exemplo, em ambos os livros acompanhamos a história do ponto de vista de uma ou mais pessoas que não foram afectadas pela epidemia. Num livro, esse ponto de vista é apenas o da mulher do médico, a única pessoa a ver naquela terra de cegos, no outro multiplica-se por mais personagens, mas todas a terem em comum o facto de não terem votado em branco (ou pelo menos isso não fica explícito).
Isto permite uma visão muito mais crítica dos acontecimentos, já que, por exemplo, os cegos vivem num mundo branco, dominado pelos cheiros, pelos sons e pelo tacto, e acabam por perder a noção das coisas. O dia passa a ser barulho e a noite, silêncio. Perdem-se os nomes e ganham-se alcunhas. O conjunto de cegos que acompanhamos até ganha uma nova percepção do mundo, que passa a ser confinado às paredes do manicómio abandonado e vigiado por soldados.
Por outro lado, os brancosos parece que tiveram uma epifania e conseguem ver o mundo através de outros olhos, agindo de forma muito mais racional, afável e bem-intencionada. Ignoram largamente o governo e os problemas do país, para se focarem nas suas próprias vidas e no bem-estar de quem os rodeia.
O que a mulher do médico nos mostra é que os cegos vivem numa estranha ilusão de normalidade à qual rapidamente se adaptaram, um mundo estragado para pessoas estragadas, enquanto os protagonistas de Lucidez nos deixam ter a percepção de como os brancosos são artificiais, quase irreais, tão chocantes para uma sociedade normal como um cego a defecar num corredor dum manicómio o é para uma mulher que vê.
E isto rapidamente nos leva a outra coisa. Os cegos são quase opressivos, sempre presentes, constantemente à volta da mulher do médico, a pessoa cujos olhos usamos para ver aquela história, mas os brancosos são sempre pessoas de quem se fala, mas que nunca se conhecem. Vemo-los à distância, ouvimos falar sobre o que fizeram, mas pouco mais.
Quase como se os cegos fossem uma realidade e os brancosos um sonho.
Podem agora perceber o título desta crónica. Os cegos são uma realidade, aquela que Saramago viu na nossa sociedade, com tudo o que possam imaginar de errado. As mortes, a violência, a sujidade, a cegueira são bem reais, mesmo que mais metafóricas do literais. Já os brancosos são de facto um sonho, aquele que Saramago gostava de ter visto concretizado, uma sociedade com consciência, benevolente, que luta contra o que acha errado. Essa lucidez é tudo menos real.
No fundo estou aqui a falar de dois livros que jogam um com o outro como dois lados do mesmo argumento de que algo de errado se passa. O segundo Ensaio, o da lucidez, funciona quase como uma resposta ao primeiro, como se Saramago dissesse a si próprio "vês, há esperança, a mudança é possível, não temos de viver num mundo de cegos". Mas é também uma consequência, algo que só acontece depois da cegueira, uma linha de raciocínio muito comum em Saramago.
Só que vendo assim as coisas é impossível não nos sentirmos desalentados. O próprio Saramago parece ter noção de que as coisas não são propriamente lineares. A cegueira desaparece de forma tão inexplicável como surgiu, deixando uma esperança que se estendeu para o outro livro, mas os brancosos são violentamente reprimidos, e até esquecidos, com a luta a mudar-se para o bode expiatório, figura central de ambos os livros, a mulher do médico. Tudo a culminar num final violento e inesperado para esta peculiar duologia. Um final que, muito sinceramente, me chocou e mudou completamente a visão que estava a ter das coisas.
Podia ainda dizer muito mais sobre estes dois livros, arrepiantes e intensos como são, mesmo que de formas completamente diferentes. Mas acho que podia escrever vários textos a analisar livros de Saramago e fazer disso vida. Goste-se ou não do homem, ele era uma pessoa e um escritor tremendamente inteligente, capaz de escrever obras marcantes a vários níveis, com várias mensagens, sem nunca perder o fio à meada e sempre capaz de misturar essa vertente com uma sensação pura de contador de histórias.
Um escritor impressionante, sem dúvida, e esta duologia, vista como unidade, é Saramago no seu melhor. Um lúcido em terra de cegos.
2 comentários:
Boas Rui
Acho que poucos autores se podem gabar de terem tantas magnum opus como Saramago,
Mas o teu post está
Soberbo.
O resto é conversa...
Muito bom texto, muito bem estruturado, com os limites paradoxais sempre presentes...
Soberbo...
Continua assim!
Abraço
Francisco Fernandes
É verdade, ele quase que só escrevia grandes obras.
De resto, obrigado!
Abraço
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