quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Estantes Emprestadas [11] - A narrativa e os RPG's [2/2]


Depois de uma fantástica primeira parte, segue aqui a segunda parte da crónica da Leonor, que até me conseguiu ensinar qualquer sobre o Rothfuss. Deliciem-se!

Se forem como eu e gostarem de um certo nível de veracidade nas histórias com que interagem, isto vai implicar criar uma passado para a personagem jogada que faça sentido. Um guerreiro poderá talvez ser um veterano de guerra que não sabe já fazer outra coisa que não lutar. Uma maga poderá estar na demanda por conhecimento ou poder. Um ladrão pode simplesmente não ter tido outra hipótese senão aceitar a missão quase suicida, quando a opção era a prisão... e todo um sem número de possibilidades, mais ou menos clichés; mais ou menos profundas. 

Para mim, a criação deste passado, este background, a criação da personalidade da personagem e depois o jogar de acordo com isto tudo, é uma das partes mais divertidas do jogo. 

É claro que aqui entra um pouco o meu espírito de escritora. Nem toda a gente joga RPGs com o intuito de seguir uma história ou de saber as motivação mais profundas das personagens.

Vamos ser honestos, o explorar de uma masmorra e o bater e derrotar monstros só por si é bastante divertido. E enquanto que está escrito nas regras que ter as bases do passado da personagem pode ser útil, acho que os criadores do jogo não estão à espera que cada jogador apresente páginas de background e contextualização, nem que todos os Game Masters tenham a paciência para as ler. 

Para mim, para além de ser parte da diversão, esta maneira de desenvolver personagens tornou-se numa ferramenta de escrita. Dou por mim a fazer as mesmas perguntas quando escrevo sobre um alguém imaginário do que quando preparo uma personagens que se vai entreter a mandar bolas de fogo a orcs. E funciona. 


Tenho mencionado ao longo texto vários pormenores de RPG muito ligados aos mundo fantástico, e de facto o primeiro RPG (do tipo que estamos a discutir aqui) que foi criado chama-se Dungeons&Dragons, e ia buscar inspiração a todos os cânones de fantasia a que agora estamos habituados e principalmente, claro a Tolkien. Hoje em dia, no entanto, há um sem número de jogos e sistemas de jogo que podem ser adaptados a qualquer tipo de ambiente e realidade. Há jogos que vão buscar aos autores de horror como Call of Chtulhu que surgiu, claro, dos contos de Lovecraft; há  Warhammer, Dark Heresy, para quem gosta de um mundo futurista, negro e muito perigoso; Há Vampire e World of Darkness para quem gosta de aventuras de sobrenatural mais urbano; existe até um jogo baseado em Doctor Who, mesmo ao gosto do nosso mui-whoviano anfitrião. E um sem número de outras possibilidades. 

Menciono isto porque quero focar aquela que acho que é a maior ligação entre RPGs e a escrita, que é no fundo aquilo que me foi pedido fazer: a imaginação. Independentemente do estilo de escrita que alguém queira desenvolver, e independentemente do tipo de ficção que goste, vai ter sempre de recorrer aos seus músculos de imaginação, para além de qualquer ferramenta técnica de escrita. E jogar RPGs é, na minha opinião, uma das melhores maneiras de exercitar esses músculos. 


Termino então, referindo alguns autores que basearam os seus escritos em RPGs que desenvolveram com amigos ou colegas, e um escritor que apesar de não usar os jogos como inspiração directa, os tem bastante presentes. 

O mais claro exemplo é a a saga Dragonlance criada por Tracy Hickman e Margaret Weiss, livros escritos sobre aventuras jogadas em Krynn um mundo ou setting criado especificamente pelos autores para a empresa de jogos TSR, Inc. 

Outro exemplo é a The Dark Elf Trilogy e subsequentes livros escritos por R.A. Salvatore, que foram baseados num outro setting de Dungeons&Dragons – Fogotten Realms. Note-se que este mundo foi criado ainda por outro escritor, Ed Greenwood que também é autor de vários livros passados nesse mundo. 

Estes dois exemplos são dos melhores que encontro em termos de permeabilidade entre escrita e RPG. Não vou comentar a qualidade de escrita de qualquer das duas sagas, apenas dizendo que se enquadram num subtipo particular de fantasia a que chamam sword and sorcery – um estilo leve que foca principalmente acção e o desenvolvimento de um mundo fantástico pleno de magia. Independentemente dessa questão penso que é interessante ter ambos em conta quando se fala da relação entre escrita e RPGs, principalmente quando se vê como a escrita e o jogo se alimentam mutuamente para criar todo um universo de referência sobre o qual as pessoas podem ler, mas no qual também podem participar. 

Por último, menciono Patrick Rothfuss e a a sua Kingkiller Cronicle. Rothfuss cria todo um mundo original e explora a história de Kvothe, ausa personagem principal. Tudo o que ele escreve é original e sem  objectivo de servir de jogo. Afasta-se totalmente do estilo talvez leve dos outros autores que menciono, e os seus livros estão numa categoria completamente diferente de fantasia. No entanto, o autor utilizou um sistema de jogo já existente para explorar o mundo de Kvothe como personagem e usou-o durante anos para jogar com amigos. E afirma que ter feito isso o ajudou a desenvolver a sua história como nunca teria sido possível sem a interacção que o RPG lhe permitiu. 

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá! Sou aluna da FLUL e há uns tempos foi à FLUL um rapaz da Nova a uma conferência em que falou de RPGs. Através deste texto no blog percebi muito melhor o conceito e o processo de criação de uma personagem do que quando o tal rapaz veio à FLUL falar. A comunicação do rapazito pareceu-me um pouco teórica demais e não percebi metade do que ele disse na altura, mas depois pedi-lhe o texto que ele apresentou para ler com mais atenção e ele enviou-me o link por e-mail mais tarde. Pode ser que interesse ao blog: https://www.academia.edu/9396549/Performing_Call_of_Cthulhu_Role-playing_Games_and_Performativity

Btw, dei com este post quando andava a pesquisar mais sobre RPGs depois de ler este texto, para ver se percebia melhor a coisa! x)

Beijinhos,

Sayoko

Anónimo disse...

Wow, reparei agora na data em que isto foi publicado! O rapaz que falou na tal conferência (que era sobre fantasia e sci-fi, btw) fez a comunicação dele exactamente na mesma data em que este post foi publicado. Weird! O.o x)

Sayoko

Leonor Macedo disse...

Olá Sayoko,

pensava que já tinha respondido aos comentários, deve ter havido algum problema a submeter a resposta.

Fico muito contente por ter ajudado a comreender o assunto.
O universo dos RPGs é grande e complexo, mas é uma das coisas mais divertidas que há para fazer e uma óptima maneira de exercitar a imaginação.
e wow ao timing de tudo, mesmo!

Leonor