quarta-feira, 30 de julho de 2014

Ensaio sobre a Cegueira


Autor: José Saramago


Opinião: Este não é um livro que aconselho de ânimo leve. Intenso e perturbador são as duas palavras que mais rapidamente me surgem na mente, para o descrever. Eu já sabia isso, e é exactamente parte da razão para ter tanta curiosidade em lê-lo. Aproveitei o facto de ter começado a Temporada Temática "Lusofonices" para satisfazer essa curiosidade de uma vez por todas.

O que dizer deste livro? Claramente uma das obras-primas de Saramago, não é uma leitura fácil e, além disso, já percebi que ou se adora ou nem se consegue passar das primeiras páginas. Nada de estranho com este autor de escrita peculiar, que se presta frequentemente a tratamentos desses.

A verdade é que o estilo de Saramago custa a entranhar para a maior parte das pessoas, mas revela-se muito em linha com a oralidade e a estrutura do próprio pensamento. Ler Saramago, para mim, é como ouvi-lo a contar uma história para si próprio. É claro que isso leva a uma escrita de aspecto denso, muito boa, mas controversa, no mínimo.

Ultrapassada essa barreira (que para mim já não existe), ainda é preciso ter em conta outra coisa: o livro e a escrita são viciantes, e a vontade imediata é sempre ler mais uma página, mas por muito que se queira, e por muito que se esteja a gostar, é preciso fazer uma pausa depois de se ler um parágrafo que dura três páginas.

Esta escrita dá sempre um ritmo bastante interessante aos livros de Saramago, e este não é excepção. A leitura soa sempre bastante pausada, mas quando em embrenhava mais facilmente me perdia e lia vinte páginas num fôlego, vinte páginas em que o enredo ou a acção avançavam de forma estonteante!

Neste livro em específico, ainda assim, o começo imediato é algo morno, muito diferente de outros começos bastante activos, como é o caso do de As Intermitências da Morte. A premissa é logo apresentada, numa transição de normalidade-estranheza muito típica de Saramago, é bastante interessante e, acima de tudo, simples. Um homem fica cego de repente, mas em vez de ver tudo negro, vê tudo branco. Assim, sem mais nem menos.

O trajecto a partir desse momento começa por ser disperso, talvez demasiado, apresentando diferentes personagens em diferentes situações, todas a cegarem da mesma forma. Todas estas personagens são importantes mais à frente, quando descobrimos que são efectivamente os protagonistas (mais ou menos, mas já lá vou), mas confesso que com este começo, a minha ideia foi outra completamente diferente. Pareciam-me apenas casos aleatórios de personagens que não iam ter importância nenhuma à frente, e que talvez nem nunca mais aparecessem. Uma espécie de panorama geral. Mas adiante.

Com a doença a espalhar-se ao longo das primeiras páginas, tudo descamba muito rapidamente. Os cegos são atirados para quarentena forçada e obrigados a viver em condições deploráveis. O lugar escolhido para o primeiro surto, para onde vão as personagens que o livro acompanha, é um antigo manicómio desactivado, onde vai surgir uma espécie de sociedade de cegos, brutal, nojenta e, o pior de tudo, expectável.

Pois é. Eu garanto-vos que tudo o vos possam dizer sobre este livro, o que para mim foi mais perturbador foi o facto de achar normal, por assim dizer, aquilo que foi acontecendo no manicómio. Ou seja, é como se eu soubesse que pessoas, naquelas condições, fossem reagir daquela forma. É por isso que não fiquei espantado com a ditadura imposta por um grupo de cegos mais agressivos, que têm uma pistola. Ou pela brutal e intensa cena de violação colectiva de um grupo de mulheres, única forma de garantirem alimento para o resto dos cegos.

Isto é um ponto sensível. Ainda não me consegui decidir quanto ao assunto do livro. Será que Saramago quis descrever o que acontece a uma sociedade no fim dos seus dias? Ou sobre a Humanidade no fim dos seus dias? Ambas? É esta uma história sobre o caos que temos à flor da pele e que está à espera de romper e se espalhar por todo o lado? Ou será que Saramago, com todo o simbolismo que lhe é característico, escreveu aqui um verdadeiro ensaio sobre a cegueira, em todas as suas formas, causas e consequências?

Não sei. Só sei que conseguiu descrever e demonstrar o que acontece quando a Humanidade, representada por um grupo de cegos fechados num manicómio, se "vê" confrontada com a sua própria queda. A brutalidade, a crueldade, a frieza, a resignação e o caos são meras consequências. Aquilo que Saramago escreve é uma definição da condição humana por oposição.

O contraste é óbvio e bem visível, mais relevante por ser maioritariamente descrito pelos olhos da única pessoa que não cega, a mulher do médico. Esta personagem, extremamente relevante, torna-se nos olhos do leitor, que nunca se identifica com o narrador. Esse é uma entidade à parte, é uma voz que murmura de forma discreta mas eficaz. A mulher do médico é o nosso último reduto, a nossa última esperança. Nossa e dos cegos.

É por isso que alguns dos momentos mais marcantes deste livro sejam exactamente quando esta personagem, tão fulcral, perde a esperança. O momento em que cai de joelhos à chuva, semi-nua, sem forças para carregar os sacos de comida e chora, é intenso. O cão que lhe vai lamber as lágrimas é um benfeitor, mas é incapaz de apagar o que aconteceu. A mulher do médico viu todos os horrores que aconteceram ao mundo, pessoas a morrerem, pessoas a matarem, pessoas a defecarem onde calhasse, foi violada, espancada, cometeu actos horríveis em nome da sobrevivência, tudo isto enquanto o seu marido e toda a gente à sua volta está cego.

E é só depois, quando tudo parece estar encaminhado para melhorar, que quebra. É um momento forte e muito marcante, que arrepia e que Saramago descreve com a qualidade que lhe é característica.

Como já devem ter percebido, gostei mesmo muito deste livro. Vou ter que deliberar um pouco para decidir se se torna o meu favorito de Saramago ou se não é suficiente para destronar O Evangelho Segundo Jesus Cristo. É bem possível que sim, mais que não seja pelo seu carácter mais geral e de reflexão, em vez do ataque dirigido à religião que é o outro livro. Aqui, Saramago parece que se esqueceu de levantar polémicas e escreveu um autêntico tratado sobre a condição humana, mascarado sobre a forma de um livro intenso e com uma escrita excepcional que não é, definitivamente, aconselhável para pessoas mais sensíveis. Leiam-no e vejam por vocês próprios.

3 comentários:

pedro disse...

Belo texto, Rui. Claro que não resisto a opinar que o autor não descreve nada que tenha a ver com "o fim dos dias". Descreve simplesmente o que acontece, facilmente, em situações mais extremas. O mundo está cheio de exemplos desses e, como disseste, é "normal" e verosímil tudo o que ele descreve.

Ana/Jorge/Rafa disse...

Não podia concordar mais com a tua opinião, a cena da sujeita a chorar à chuva é das cenas que mais me impressionou da literatura em geral; o único livro do Saramago que acho verdadeiramente genial.

Jorge

Rui Bastos disse...

Obrigado a ambos.

Pedro, concordo plenamente contigo. Como vi algures, quem não perceber isso é tão cego como as personagens do livro ;)

Jorge, e essa é apenas uma das cenas mais intensas, há tantas... Como tu, considero este livro genial, mas ainda incluo o Evangelho segundo Jesus Cristo, e quase que incluo tanto o As Intermitências da Morte como O Homem Duplicado!