Autor: José Saramago
Opinião: As expectativas para este livro eram elevadíssimas. Depois de ler o Ensaio sobre a Cegueira, e ter adorado da forma que adorei, não podia ser de outra forma. Infelizmente este segundo Ensaio não cumpre, em parte pela simples razão de que estava à espera de demasiado deste livro.
No entanto não foi só isso. Acho que este livro este realmente abaixo da qualidade que Saramago costuma ter. Atenção, o livro é bom, até muito bom, mas não é genial. Não está tão bem construído nem explora tão boa ideia de base.
Em termos gerais, e demasiado simplistas, este livro é uma grande paródia/crítica/sátira (todas as variantes têm o seu momento) à burocracia e aos salamaleques políticos do mundo em que vivemos. Basta ler as descrições das reuniões entre ministros, com diálogos enormes e praticamente vazios de conteúdo, para se perceber como é que esse mundo funciona.
Aliás, o próprio narrador tem um certo exagero da eloquência, narrando a história com frases muito compridas e complexas mas que não dizem assim tanto quanto isso. É fantástico, porque não é aborrecido, e tem um objectivo muito bem definido, que é cumprido. Se há algo que não se pode apontar a José Saramago, é que escrevesse mal.
A situação que representa, no entanto, podia ter sido mais desenvolvida. Ou melhor, podia ter sido explorada de forma mais directa. É uma premissa fantástica, ter uma eleição, de repente, em que setenta por cento das pessoas vota em branco, fazer nova eleição e ver essa percentagem subir para os oitenta e três. Oitenta e três por cento de votos em branco! Sabem o que isto é?
Uma rebelião! Uma a sério, bem feita, como deve ser. Não são pessoas que fazem greve todos os dias (válido, mas pouco eficaz e até contra-produtivo), ou que se queixam de como recebem pouco e têm demasiado trabalho enquanto fazem horas extra, sem serem pagas, de livre e espontânea vontade.
É sempre mais complicado do que aquilo que eu acabei de dizer, mas o relevante é que Saramago apresenta aqui uma cidade que decide usar o sistema para lutar contra o sistema. E funciona! É até extremamente eficaz.
O governo, organizado e completo controlo do país, fica de repente completamente paralisado pelos acontecimentos. Embora uma quantidade massiva de votos brancos seja algo efectivamente possível e abrangido pelo sistema, este não está minimamente preparado para lidar com a situação. A única coisa que o governo consegue fazer, numa série de acções mais ou menos directas que se estendem até ao final do livro, é provar que "democracia" é apenas um nome bonito e essencialmente demagógico.
Qual é a reacção? Isolar a cidade, retirar o governo e todas as forças de segurança, tirar-lhe o estatuto de capital do país, infiltrar agentes com o objectivo de descobrir o foco do problema e organizar uma série de investidas ideológicas agressivas para reformatar as pessoas. Tudo serve, incluindo arranjar um bode expiatório insuspeito, ainda que bastante conveniente.
Inacreditável? Sim. Faz sentido? Também. O que é que se faz quando uma ferida gangrena? Tenta-se parar o progresso do problema e, em último caso, corta-se o braço, ou o perna. Neste Ensaio sobre a Lucidez, Saramago descreve essencialmente isso. A máquina bem oleada, mas negligente, que é o governo, encontra um percalço e entra em pânico. Isola o problema. Tenta acabar com ele. Simples.
Já se poderiam tirar muitas considerações só com isto, especialmente em termos políticos, mas não acho que sejam muito relevantes. Quer dizer, é fácil de perceber que o autor diz que "democracia" é um conceito abstracto que apenas serve como aperitivo para as pessoas. "Democracia? Isso é aquilo da liberdade, quero disso!", quando a realidade é muito mais complicada do que isso.
Mas depois o livro não leva esta exploração às últimas consequências, acabando por se perder no envolvimento com o Ensaio sobre a Cegueira, que surge muito cedo, de forma muito subtil. As comparações entre ambos, ainda que relevantes, não eram o ponto mais importante a transmitir neste livro. Há ali muito potencial para falar de tanta coisa... E Saramago acaba por se restringir a algumas coisas específicas, sem se estender como habitualmente se estende.
Não deixam de ser comparações interessantes. As próprias personagens as fazem, ao dizerem que esta onda de votos em brancos é também uma forma de cegueira, ainda por cima branca, como a anterior. Estão certos, mas não da forma que pensam. As cegueiras têm um pormenor que as torna bastante diferentes: enquanto que a primeira fez com que as pessoas passassem a "ver melhor" as coisas, a segunda é por causa das pessoas "verem melhor" as coisas.
É complicado. Mas enquanto o Ensaio sobre a Cegueira é óbvio e explícito, o Ensaio sobre a Lucidez é subtil e abstracto. Acho que funcionam muito bem os dois enquanto unidade, embora haja um claramente melhor do que o outro.
O final é extraordinário! Ou melhor, a parte final. Extremamente intenso e inesperado. Fiquei honestamente chocado com algumas coisas. E embora não seja o melhor que Saramago alguma vez escreveu, é sem dúvida um excelente livro!
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