quarta-feira, 1 de abril de 2015

Muito poucos dedos de conversa sobre cinema de forma quase nada informada [1] - Ficções Distópicas

Distopia. Esse tema sem morada, que ganhou um prefixo do título da obra homónima de Thomas More de modo a referir exactamente o antónimo da sociedade ideal, livre e igualitária da ilha de Utopia. O termo, usado pela primeira vez por Stuart Mill no Parlamento Britânico em 1868 popularizou-se no século XX precisamente com a literatura de crítica aos regimes totalitários que protagonizaram o século.

Destes romances todos conhecemos um ou vários e voltaremos a eles. Gostava de acrescentar em jeito de introdução que a ficção distópica não existe enquanto género, balançando entre as grandes braçadas da Ficção Científica e a imposição do ensaio político ficcional, margem ténue que me levou a duvidar incluir algumas referências ou rejeitar outras. Mas passemos então ao que interessa realmente:

Hollywood foi tomada há coisa de dez anos para cá pela epidemia extremamente rentável do cinema infanto-juvenil virado para um público-alvo estudado, entre a pré-adolescência e a juvenil-adultez. Todos reconhecemos a devastação da fase dos vampiros, que não deixou de ter o seu charme de fim de década, mas a tendência temática atual é algo de surpreendente para os parâmetros hollywoodescos. Parece que a indústria cinematográfica decidiu rir-se dos seus próprios males ao massificar uma crítica mais ou menos deficiente aos media. Falo claro das adaptações de Hunger Games, Divergente e mais recentemente Maze Runner, uma escolha curiosa para alimentar um público que estaria à partida de disposto a receber seja o que for.

The Hunger Games: Mockingjay - Part 1, 2014
Porque Hunger Games é uma distopia com uma dimensão e mensagem política consideráveis, e talvez se trate de um retrato ironicamente auto-detalhado de Hollywood. Talvez o sucesso e aposta neste tipo de ficção possa ser explicado pelo impacto mundial do filme do japonês Kinji Fukasaku, Battle Royale, em que Hunger Games foi inequivocamente inspirado. Na verdade Hunger Games assemelha-se a Battle Royale em quase todos os aspectos a não ser na exploração intensa das personagens e das relações humanas, face a uma extrema configuração política e psicológica, que no primeiro parecem assentar principalmente no já clássico triângulo amoroso.

Battle Royale, 2000
Mas a trama de inspirações em cadeia parece não ficar por aqui. Qualquer pessoa com o mínimo interesse em literatura reconhece nestes dois filmes o espelho de um Nobel: O Senhor das Moscas de William Golding, que por sua vez resume de forma colossal o temas como a sobrevivência individual versus bem comum em prol da civilização. Por sua vez com direito a duas adaptações ao cinema: a primeira e grandiosíssima por Peter Brook em 1963 e uma segunda em 1990 por Harry Hook condenada a viver na sombra da primeira.

Lord of the Flies, 1963
Noutro âmbito, e talvez para alguns esta comparação possa parecer desprovida de motivo, mas é-me muito difícil a dissociação destas ficções distópicas, centradas no sujeito (anti-) heróico adolescente, com filmes como Saló ou os 120 Dias de Sodoma, obra-prima de Pasolini, ainda hoje percursora de polémicas, inspirada na obra de Sade com o mesmo nome, no qual quatro fascistas italianos libertinos sujeitam dezoito jovens rapazes e raparigas a quatro meses de extrema violência e tortura sexual e psicológica dentro perímetro de uma mansão, de modo a satisfazer o prazer sádico e intelectual dos quatro homens. Não sustento que Saló deva ser sequer catalogado de distopia (ou de outra coisa qualquer), uma vez que a realidade arrepiante do filme resulta de uma metáfora pasoliniana para práticas eticamente semelhantes tanto durante a II Guerra Mundial como no presente consumista e capitalista, - mas não podia de deixar de o referir como um marco incontornável de intervenção cinematográfica por um realizador tão grande quanto a sua obra.

Salò, or de 120 Days of Sodom, 1975
Mas foi precisamente a II Guerra que abriu caminho fértil à criação de assustadores panoramas distópicos, e muitos autores ocuparam conscientemente o lugar de profetas. Das mais célebres obras de Orwell e Huxley (considerar a adaptação de Ridley Scott de 1984) a outras que o cinema popularizou, como A Laranja Mecânica de Anthony Burgess (que passou a ter de partilhar pódium com Stanley Kubrick) ou Fahrenheit 451 de Ray Bradbury com uma adaptação feliz por François Truffaut.

Fahrenheit 451, 1966
Tal como Truffaut também Jean-Luc Godard foi um dos percursores do cinema da Nouvelle Vague, e como Truffaut também Godard realizou uma das distopias mais populares do cinema: Alphaville. Algo entre a ficção cientifica e o film noir, a realidade totalitarista de Alphaville combina premonições de vários autores e obras literárias num filme maravilhosamente arrepiante, sondando temas como a perda da linguagem (ou alteração da mesma de modo a servir propósitos de domínio) que nos faz sorrir ao título do seu mais recente filme, Adeus À Linguagem (2014).

Alphaville, 1965
Cerca de meia década mais tarde Tarkovsky realizava Stalker, obra-prima cinematográfica adaptada livremente da obra Roadside Picnic dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky que mistura elementos de ficção científica com dramáticos temas psicológico-filosóficos, no qual um homem arrisca a vida no trabalho ilegal de transportar interessados à área proibida conhecida por “Zona”.

Numa esfera mais recente, a par com a primavera da distopia adolescente, não podia deixar de nomear esta referência uma vez inspirada numa obra que muito admiro; O Congresso Futurológico de Stanislaw Lem - autor de Solaris, curiosamente também adaptado por Tarkovsky -, um romance apocalipticamente surrealista sobre a realidade social do século XXII dominada pelo poder químico, sedada e permanentemente administrada com alucinogénicos. Um livro absolutamente aterrador, adaptado livremente por Ari Foldman em 2013, compreendendo uma inteligente metáfora satírica à evolução da indústria cinematográfica mainstream, que cada vez mais parece tentar administrar sensação ao invés de fruição. Será esta a verdadeira distopia da imagem e também a mais eminentemente possível.

The Congress, 2013
Acabo a referir um dos filmes no género que considero mais belos e misteriosos, que inevitavelmente nos salta à memória quando se fala em panoramas futuristas não desejados; La Jetée de Chris Marker. Num cenário pós-III Guerra Mundial de uma Paris destruída onde os sobreviventes se vêm obrigados a viver no subsolo, um prisioneiro de guerra é sujeito a experiências de viagem no tempo que os cientistas sobreviventes tentam explorar incessantemente na tentativa de enviar mensagens de aviso ao passado. La Jetée, tão próximo do presente como quando foi sublimemente montado, uma história de amor e nostalgia incrivelmente bela condensada em meia-hora, na qual fantasmas políticos se misturam com fantasmas de paixões passadas.

La Jetée, 1962
Na minha óptica, um resumo perfeito do significado de distopia, que desde o início deste texto se tenta definir: a descrição amedrontada de um futuro em que as paixões são permanentemente policiadas.

por Alice Lourenço

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