Título: Divina Comédia
Autor: Dante Alighieri
Tradutor: Professor Marques Braga
Opinião: Parece que afinal as minhas previsões até acertaram. Depois de no post do Inferno dizer que ainda devia demorar um mês a acabar de ler o livro, demorei exactamente um mês a acabá-lo (acabei ontem...)!
Agora vou despachar já o ponto negativo mais negativo numa obra tão grandiosa como esta. Eu até já falei disto, em 2 dos 3 posts anteriores: as notas. Não me lembro de ler um livro com notas de tradução tão estupidificantemente exaustivas. Houve um excelente trabalho a nível de tradução do texto, mas a nível das notas... Enfim, a certa altura desisti de ler as notas.
De volta à parte boa do épico, a divisão em 3 partes tem lógica e está perfeitamente bem definida, com o ambiente a mudar radicalmente de parte para parte. Os 100 curtos cantos estão praticamente distribuídos de igual forma pelas 3 partes, tirando o facto (curioso) da primeira parte, o Inferno (a minha favorita!), ter 34 cantos, contra os 33 das outras duas. Eu sei que 100 não se divide por 3 como deve ser, e que haveria um canto extra que teria que caber em algum lado, mas acho interessante que tenha caído na parte em que caiu, a que está repleta de pecadores e avisos...
Como já devem ter percebido, não sou nada imparcial no que toca às 3 partes deste épico. Tenho uma clara preferência pelo Inferno, renegando para último lugar o Paraíso, com o Purgatório ali metido no meio, numa posição meio acinzentada. Pode-se dizer que, se calhar, tem a ver com as minhas preferências pessoais, já que toda e qualquer religião me incomoda um bocado. Ou seja, quando Dante sai do Inferno e se começa a aproximar da redenção e da graça divina, a mensagem da obra começa entrar por um olho e a sair pelo outro.
Mas também tem a ver com o próprio teor de cada parte. O Inferno está repleto de sangue e de vísceras, de castigos excruciantemente imaginativos e horripilantes e tem um ambiente carregadíssimo, super denso, praticamente palpável. O próprio Inferno parece contribuir para os castigos aplicados com a sua atmosfera negra e macabra. É também a parte mais focada na imagem mais geral, com descrições do Inferno, das almas que lá habitam, dos demónios que vigiam e castigam as almas, dos castigos aplicados a tipo de pecador...
É que depois, ao chegar ao Purgatório, a obra começa a evoluir para uma espécie de propaganda religiosa, muito mais focada nas almas e nos seus castigos e consequente redenção do que no sítio em si, pouco ou nada descrito, especialmente se se comparar com o Inferno. É um sítio mais "luminoso", repleto de adoração a Deus e de arrependimento pelos males feitos. Agradou-me menos porque a partir daqui as personagens que vão aparecendo parecem cada vez mais interessadas em passar uma mensagem de redenção, o que até faz sentido, tendo em conta que estão no Purgatório, mas que, no fundo, não me agrada.
E tudo piora quando Dante chega ao Paraíso e encontra almas cada vez mais luminosas e bem-aventuradas, cada uma com uma mensagem cada vez mais repleta de esperança e de louvores a Deus, o que, mais uma vez, faz todo o sentido, mas que não me agrada. A história a que me prendi, no início, foi-se esmorecendo, dando lugar a mensagens cada vez mais explícitas sobre quão espectacular é o Cristianismo, e como se deve adorar a Deus, etc.
Ou seja, achei o Inferno muito mais interessante, porque tinha um certo fio condutor, que me agradou e que me permitiu manter-me muito mais interessado no que nas outras duas partes. Mas atenção que gostei de todas! Apenas gostei muito mais da primeira...
O problema que tenho neste momento, é que ainda podia dizer muita coisa, mas não me quero alongar assim tanto. Vou tentar focar só o essencial do que falta, como a luta entra a Razão, representada por Virgílio, e a Fé, representada por Beatriz. Sendo uma luta quase tão antiga como a própria existência dos seus intervenientes, a forma como Dante aqui a simboliza é muito particular. A começar pelas personagens escolhidas: Virgílio, o poeta preferido de Dante, que habita no Limbo, por ser anterior ao Cristianismo e, por isso, não ser baptizado. Segundo os ideais cristãos, os antigos não tinham propriamente fé, e eles próprios, acreditando em vários deuses, davam uma grande importância à razão. Do outro lado há Beatriz, uma alma pura, que supostamente morreu jovem, sendo por isso uma espécie de mártir, como convinha ao símbolo da Fé.
É interessante ver como Virgílio, a Razão, só consegue acompanhar Dante até ao cimo do Purgatório, onde, para entrar no Paraíso, tem que ser guiado por Beatriz, a Fé. É demasiado óbvio que o poeta está a dizer que para entrar no Paraíso é preciso ter Fé, e que a razão nos leva ao Inferno, podendo até mesmo fazer-nos chegar ao Purgatório, se nos arrependermos, mas que é incapaz de nos fazer ascender ao Paraíso...
Tenho ainda que dizer uma coisa em que reparei. O oportunismo das almas. Aquelas que estão no Inferno pedem a Dante para falar delas no mundo dos vivos, para que rezem por elas e as suas penas sejam atenuadas. No Purgatório pedem-lhe a mesma coisa. No Paraíso não há uma única referência de qualquer alma ao mundo dos vivos. Serei o único a reparar que as almas no Inferno e no Purgatório pediam atenção dos vivos em proveito próprio, para conseguirem atingir o céu, mas que uma vez que lá chegam, as almas deixam de se importar com os familiares e amigos que têm vivos? Curioso...
Confesso que já tenho saudades de ler prosa convencional, e sei que esta opinião se estendeu mais do que é normal, mas uma obra desta magnitude merece isso mesmo. Ficam aqui as minhas impressões sobre este belo épico, que não aconselho a toda a gente. É uma leitura difícil, especialmente o Paraíso, com as suas metáforas e alegorias completamente descontextualizadas... É, no entanto, e sem sombra da dúvida, uma epopeia (moderna), uma história verdadeiramente épica, com tudo o que essa designação implica.