sábado, 5 de julho de 2014

O que o Filipe Faria sempre quis saber

Ele que me desculpe por usar uma foto dele tão novo...
Depois de uma conversa na Feira do Livro deste ano com um dos meus autores favoritos, Filipe Faria, tive a oportunidade de trocar uns e-mails com ele, para lhe enviar as minhas opiniões e crónicas do mega empreendimento que foi ler As Crónicas de Allaryia de uma assentada.

Aquele que é, realço, o autor de uma das sagas literárias pela qual tenho mais afeição, mostrou bastante interesse e entusiasmo, e respondeu com muita simpatia, que também distribuiu em abundância durante a nossa conversa. É definitivamente um autor que tenciono voltar a encontrar em futuras edições da Feira (ainda tenho seis livros para ele assinar...).

Mas fiz-lhe uma pequena maldade. Uma proposta no mínimo estapafúrdia. Aproveitei-me da boa vontade e da simpatia deste escritor para lhe roubar uma "entrevista" (já explico as aspas). Na troca de e-mails que já referi, consegui suprimir a histeria de estar a falar com a pessoa que criou o melhor vilão que conheço - TEAM SELTOR!!! - e pedi para lhe fazer uma entrevista para publicar aqui no blog. Bem, pedi-lhe para me fazer uma entrevista. Pormenores. O que interessa é que ele acedeu.

O que vão ler a seguir é o resultado. Decidi inverter os papéis e pôr o autor, normalmente o entrevistado, a fazer perguntas ao blogger/fã, normalmente o entrevistador. A ideia era tornar isto mais interessante, quer dizer, qualquer macaco faz uma entrevista a um autor, mas quantas pessoas é que são entrevistadas por autores? Toma!

O Filipe Faria fez assim uma série de questões sobre As Crónicas, às quais respondi enquanto leitor, fã parcial, blogger crítico e gozão incurável. Divirtam-se!

Filipe Faria é autor de As Crónicas de Allaryia, uma saga de fantasia épica, e de Felizes Viveram uma Vez, uma saga de fantasia em construção sobre as personagens dos contos de fadas. Escreveu o seu primeiro livro, A Manopla de Karasthan, com o qual ganhou o prémio Branquinho da Fonseca atribuído pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo semanário Expresso. Já teve incursões pela tradução e pela BD, diz que tem um projecto no forno e continua a escrever de uma forma geral. Podem visitar o seu site oficial aqui.



- Pessoalmente, tenho a convicção de que, boa ou má, uma história triunfa ou claudica consoante a força das suas personagens e o elo que os leitores com elas estabelecem. Como é que me saí nesse capítulo?


Bem, não consigo responder a isto de forma imparcial. Desde a primeira vez que li A Manopla de Karasthan que criei uma ligação com algumas das personagens, como o Babaki e o Worick, por exemplo. Na segunda leitura da saga, há relativamente pouco tempo, notei uma certa empatia com praticamente todas as personagens principais (embora umas me irritassem mais do que outras, não é Lhiannah?), mesmo tendo noção dos defeitos de caracterização com que tinham sido criadas.

Estes defeitos de que falo têm a ver com todas as personagens serem estereótipos muito fortes: todas, ou quase todas, começam como nada mais nada menos do que reciclagens de raças de Tolkien e companhia, mas com nomes diferentes. É que era difícil terem começado mais... genéricas.

No entanto, com o passar dos livros, as personagens tomaram caminhos interessantes e surgiram até algumas que brilharam completamente: Kror, Seltor, Culpa, Tannath... Sim, eu sei, muitos vilões. Acho que foram realmente o ponto forte, em termos de personagens, e conseguiram carregar a saga às costas. Especialmente no caso de Seltor e de Tannath. Kror conseguiu tornar Aewyre interessante, quando este passou pela sua fase complexada, mas Tannath foi causa de surpresa atrás de surpresa, e Seltor... Bem, é o meu vilão favorito, isso diz tudo.


- Certa vez, um leitor disse-me que eu tinha "um gosto bastante saudável por um certo uso do erotismo", mas que o escrevia "com muita graça e moderação", enfatizando a parte da moderação. Com base na tua leitura das Crónicas, em que campo te situarias? 50 Sombras de Allaryia ou Jane Eyreth?

Nem um nem outro. Confesso que a minha reacção à generalidade das cenas mais sensuais da saga é a mesma que a minha reacção às cenas de sexo nos livros do Stephen King: mato-me a rir. E isto é injusto! Mas não consigo tirar da cabeça um Aewyre frustrado a gritar “Mas eu usei a tripa de porco!”, ou a frase mais romântica de sempre, um dos ex-líbris desta saga, “Vamos fazer um bebé.”

Falando mais a sério, não acho que essas cenas estejam exageradas, nem que sejam demasiado leves. Tirando alguns casos pontuais. Talvez dê para situar a saga na média das 50 Sombras de Allaryia e de Jane Eyreth. O que se passa muitas vezes é que acabam por aparecer de forma algo abrupta e, bem, awkward, principalmente no início. Felizmente é algo que, como tudo nesta saga, melhora consideravelmente com o passar dos livros.


- Qual a raça/povo de Allaryia que mais te fascinou ou que achaste mais bem concebida e desenvolvida? Porquê?

Pergunta complicada. A primeira coisa que me veio à cabeça foi “os humanos”. Sim, no meio de tanta coisa, comecei por pensar nos humanos. O Aewyre tem uma boa evolução, embora eu não seja fã da personagem, e acaba por ser uma representação bastante fiel do que é um ser humano. Desde a arrogância e impetuosidade da juventude até à sobriedade e gravidade auto-infligidas, tudo em Aewyre é o que de mais típico se pode ver numa pessoa comum, ainda que levado a extremos ou a interpretações diferentes do habitual.

O povo de Tanarch também tem a sua relevância e papel preponderante nos desenvolvimentos da segunda metade do livro, bem como os wolhynos mas não quero bloquear essa resposta.

Sinto-me tentado a apontar os drahregs, em grande parte graças ao Kror, uma personagem soberba, mas esta associação lembra-me imediatamente de um povo que teve algum destaque e me deixou sempre muito curioso: os Cho Tirr.

Aqueles tipos estranhos dos desertos de neve, montados nos seus cavalos robustos e pequenitos... Criaturinhas fascinantes. E acabam por ter um desenvolvimento muito forte, por contraste com o grupo de protagonistas e com os vilões. Ao situar um grupo reduzido de personagens “estrangeiras” no meio de um acampamento de Cho Tirr, o leitor é empurrado para uma situação de estranheza, em que é possível sentir-se desconfortável perante a familiaridade dos Cho Tirr, que nos é, enfim, estranha. Acho que levam a medalha, sim.

- Combates nas Crónicas: "uau, parece um filme", ou "dasse, estava a ver que nunca mais acabava"?

O nível de detalhe é certamente cinematográfico, se pensarmos em sequências de acção como em 300, em câmara tão lenta que é possível contar o número de gotas de sangue que salpicam o ar. O que não é nem bom, nem mau... É estilo. Gostar ou não, já depende.


As primeiras cenas de luta da saga são exaustivas sem serem propriamente interessantes. Acontece por vezes haver um certo foco em pormenores, sem que a acção principal deixe de decorrer à mesma velocidade. É como se ao ver uma cena duma batalha, estivessemos focados na forma como a luz incide na espada do inimigo, e quando acabamos a nossa reflexão, já a batalha acabou.

Depois há as cenas mais épicas, como a batalha no final de Marés Negras, que achei bem trabalhadas e em que se manteve um bom equilíbrio entre os milhares e milhares de intervenientes e o grupo restrito de protagonistas.

Há ainda um terceiro caso, que tem basicamente só uma instância: a batalha entre Quenestil e Tannath, no vulcão, que muita gente diz que se arrasta demasiado. Eu não acho. Está detalhada, está longa, mas é uma parte tão importante da história, que faz todo o sentido.

- Palavreado das Crónicas: "é tão fixe aprender palavras novas", ou "ó para este, a armar-se aos cágados"?

Definitivamente a primeira opção. Nunca me vou esquecer do significado de "barbacã". Ou de "anátema". Mas eu sou suspeito, que adoro palavras esquisitas. Muitas que chatearam outros leitores, não me fizeram espécie porque já as conhecia, e outras deixaram-me fascinado. Por exemplo, foi a ler a saga que descobri a palavra “gavinhas” e uso-a frequentemente nos meus contos, com algum sucesso, que já tive várias pessoas a repararem na palavra e a gostarem!

- Se tivesses de escolher uma personagem que pudesses apagar em definitivo da história das Crónicas, qual seria? E porquê?

Acho que a Lhiannah. Nunca fui fã desta personagem, que começa como uma menina mimada com a mania que é rebelde, e que mesmo tendo uma evolução positiva não passou de irritante. É verdade que até gostei de a ver separada do grupo (ficou um pouco mais tolerável) mas muitas vezes o seu papel parecia ser o de servir de paixão para o Aewyre.

E é assim, a paciência tem limites. A sua participação envolveu mais do que uma vez reacções questionáveis e ridículas, de menina mimada e histérica, que fazem sentido para o tipo de personagem, mas que são absolutamente insuportáveis. E convenhamos, a Lhiannah é uma personagem que, bem analisadas as coisas, não faz tanta falta quanto isso à narrativa e cujo papel podia facilmente ter sido cumprido pelas outras.

- Por outro lado, qual a personagem que devia ter tido mais protagonismo e capítulos que os que teve?

O meu primeiro impulso foi “SELTOR!”, mas nunca na vida. Enquanto vilão ganha muito mais por aparecer pouco, bem doseado. Cria mistério e aumenta a creepiness em redor da sua personagem. Depois pensei logo “BABAKI!”, mas o final precoce desta pobre personagem peluda foi algo bom para a saga. Obrigou as personagens a crescerem e a consolidarem-se, deu-lhes um trauma real, partilhado com o leitor, o que as tornou mais vívidas e acrescentou gravidade à saga, marcando, para mim, um ponto de viragem: da série inconsequente e juvenil iniciada em A Manopla para a série negra, violenta e de temas pesados acabada em Oblívio.


Pensando no resto das personagens, uma que gostei bastante de acompanhar foi Kror, mas acho que até teve o protagonismo que merecia, com o arco narrativo da Essência da Lâmina e os seus alfanges fascinantes.

Talvez dar mais tempo de antena ao pai de Aewyre não fosse má ideia, que pareceu-me ser uma personagem interessante, mas a sua curta aparição também faz sentido e está bem como está. É uma pergunta complicada, esta. A verdade é que ao longo de sete livros com uma média de 400 páginas, complicado é haver uma personagem com protagonismo insuficiente: há espaço e tempo para toda a gente.

Mas ainda assim... Talvez... Sim, talvez Dilet, o fascinante bobo. E aquele thuragar sem nariz cujo nome não me lembro, e o tipo de boca cosida. Sim, acho que sim. Os arautos de Seltor (menos Tannath, que já foi muito bem utilizado) mereciam um pouco mais de destaque, não só pela importância que têm na história mas também pelas suas particularidades.

- Para terminar, onde se situaria cada companheiro, incluindo os falecidos, num Top 8 elaborado por ti?

Bem, esta pergunta também não é simples. Só há três lugares de que tenho a certeza: Worick em primeiro, Babaki em segundo e Lhiannah no fim. O Worick é uma personagem e pêras, pertencente a uma raça feita a partir do que de pior havia nos humanos, consegue demonstrar um carinho e uma preocupação extraordinária por Lhiannah, e as suas interacções com Taislin são simplesmente hilariantes. Tem uma evolução muito boa e demonstra-se sempre útil e relevante para a narrativa. Mais do que um soldado empedernido, um thuragar maldisposto, ou um companheiro rabugento, Worick revela-se uma figura paternal extremosa e ganha assim, facilmente, o primeiro lugar.

Babaki leva claramente o segundo lugar. O conflito entre a sua natureza amigável e pacífica e o seu legado shakarex é dos arcos narrativos secundários mais interessantes de toda a saga, apesar da sua curta duração. O contraste entre o Babaki que brinca com passarinhos e o Babaki máquina de matar é forte, muito forte, e dá uma grande densidade à personagem desde muito cedo, contrariamente ao resto do protagonistas.


Já Lhiannah não hesito em deixar para o fim. Como já referi é uma personagem irritante e que acho que não se perdia nada se saísse de todo das Crónicas.

Os restantes cinco lugares... Bem, acho que para terceiro atiro o Taislin. É das personagens com uma maior evolução e que adquire um papel cada vez mais relevante com o passar dos livros. No começo parece uma criança chata, no fim está uma personagem madura e importante. Além de que as constantes picardias com Worick proporcionam alguns dos momentos mais hilariantes de toda a saga.

Pensando bem no assunto, acho que consigo ver outro lugar relativamente fácil: o de Slayra, que fica para sétimo lugar. Tem uma evolução pobre e aos soluços, passando de desagradável a amorosa a cabra a novamente amorosa em passos descontínuos. Não é credível e é uma falha de caracterização numa personagem com tanto potencial.

Agora sim, os lugares complicados. Aewyre, Allumno e Quenestil. Não sou particular fã de nenhum dos três: o primeiro é demasiado herói bonitão, o segundo é demasiado sábio estereotipado, e o terceiro é demasiado ingénuo e moralmente rígido.

No entanto acho que Aewyre é quem evolui mais e melhor. As constantes desgraças que o atingem moldam-no muito fortemente, e rapidamente se torna num verdadeiro líder. A demanda da Essência da Lâmina também lhe dá uma vertente interessante, ao fazê-lo interagir com Kror e inclusivamente a ajudá-lo, tratando-o mais como um companheiro do que como um verdadeiro inimigo. O quarto lugar para este homem, se faz favor.

Entre Quenestil e Allumno, a escolha é complicada, mas vou pôr Quenestil em quinto e o Allumno em sexto, só por causa da evolução do eahan e da sua preponderância no final. O mago não é uma má personagem, mas cai facilmente no aborrecimento e ensombra demasiado a personagem de Zoryan, o seu mentor de alma aprisionada na gema que tem na testa.

Ou seja, bem vistas as coisas, fica assim: Worick, Babaki, Taislin, Aewyre, Quenestil, Allumno, Slayra e Lhiannah.

*PUB* E agora mesmo para terminar, porque é que ainda não começaste a ler o Felizes Viveram Uma Vez, e o que pensas fazer a respeito disso? *PUB*

Juro que ando com bastante curiosidade. Até porque da primeira vez que abri o Perraultimato, numa Feira do Livro, me deparei com uma personagem a esventrar outra. Melhor augúrio não podia ter. Mas entre dificuldades económicas que me obrigam a ser muito criterioso com o que compro e não compro, e uma lista de livros a ler maior do que a quantidade livros que vou conseguir ler na minha vida toda, esse tem passado.

Nesta Feira ia lançado para o comprar, mas só tinham a edição com a primeira capa, que não só não é a minha favorita, como iria destoar do resto da colecção, e isso não pode acontecer! Da próxima vez que tiver uma oportunidade, no entanto, não hesitarei.

P.S.: as ilustrações são da autoria do Samuel Santos.

6 comentários:

Morrighan disse...

Apesar de achar que não sou macaca nenhuma, parabéns pela iniciativa, Rui. Ficou giro.

Boas leituras :)

Rui Bastos disse...

Sem querer ofender ninguém, eh :p Obrigado!

Marco Lopes disse...

Em primeiro lugar deixa-me roer de inveja pela bela ideia que tiveste, não sei se é original, mas lá que é diferente é!

Posto isto para fora prossigo revelando que já tinha reparado que o Filipe Faria era um autor que "partilhávamos" como um daqueles que nos marcou bastante e que apesar de todos os defeitos que agora aos nosso olhos de leitores já “batidos” continuará a terá sempre um cantinho especial na nossa estante.

No meu caso a minha ligação com ele começa porque apesar de já ler alguns livros era algo esporádico, embora consumisse BD em doses industriais. E assim dá-se o caso de o primeiro filme do Senhor dos Anéis estreiar e do qual eu gostei bastante, mas que deixou no ar a pergunta: será um livro capaz de transmitir tudo o que vejo no grande ecrã? Claro que a resposta é um enorme sim, mas eu só lá cheguei por causa do livro do Filipe “A Manopla de Karasthan”, claro que em primeiro foi a capa do Samuel Santos que me atraiu ao livro...

Long story made short (como diz o inglês) neste anos todos já reli a “A Manopla de Karasthan” umas três ou quatro vezes, os outros pelo menos duas e apenas o ultimo, “ O Oblivio”, só uma vez (e diga-se que foi o que menos apreciei, mas apenas pelo final que não é final).

O meu personagem favorito também é o Worick, alias foi graças a ele que ganhei o “Marés Negras” com uma excelente dedicatória do Filipe e agora és tu que te deves estar a roer de inveja :D

Fica prometido um post no meu blog ao Filipe e a esta relação especial.

Parabéns ao Rui pela ideia espero que seja para continuar a “desviar” autores do bom caminho e claro ao Filipe por todos os bons momentos que me proporcionou e que ainda proporciona pelas boas memorias.

Um abraço

PS: tanto para dizer, mas fico-me por aqui para não chatear por que se não era um “testamento”

Rui Bastos disse...

Marco, obrigado!

Confirma-se o cantinho especial. Mas nem tudo é parcialidade, eu acho realmente que a escrita e a saga evoluíram bastante, e que a segunda metade já se pode considerar como boa.

Não falemos do final... E sim, damn you! Mas devo dizer que tenho o "Fado da Sombra" e um marcador assinado :D

Quanto a outros autores, vou ver o que se arranja... Era uma coisa porreira para ter continuação :)

Abraço.

100% Fantasy disse...

Em primeiro lugar, tenho que dizer que, concordo perfeitamente quanto ao Filipe ser uma simpatia de pessoa.

Quanto à entrevista, a ideia é muito interessante e está muito divertida.

Rui Bastos disse...

É verdade sim senhor! E muito obrigado :)