sábado, 31 de maio de 2014

Os gostos são para se discutirem

Se há coisa que gosto de fazer, é discutir. Não no pior sentido da palavra, normalmente não tenho qualquer interesse em trocar galhardetes com alguém só porque sim. O que eu gosto é de debater, de trocar impressões, de conversar, no fundo.

Por isso não gosto nada quando estou a falar com alguém, seja pelo que for, e a certa altura sacam do argumento: “gostos não se discutem”. É uma forma simples e eficaz de matar uma conversa e de esse alguém se descartar de uma argumentação. Ou de me aturar.

Se a opção for a última, pronto, é legítimo. Qualquer coisa serve para evitarmos alguém. Mas quando esse “argumento”, que é mais uma sentença do que outra coisa, é usado a meio duma conversa sobre, digamos, livros… Bem, aí está o caldo entornado.

Eu imagino que o propósito dessa sentença seja o que Saramago tinha em mente quando disse que tinha aprendido a não convencer ninguém: não devemos forçar ninguém a pensar de nenhuma forma em particular, e muito menos tentar impingir a nossa forma de pensar. Isso é basicamente opressão.


Mas no entanto nada vejo de mal em tentar convencer o outro, a bem. Não com o intuito de forçar ao que quer que seja, mas de forma leve e amigável, digamos. E mesmo assim, "gostos não se discutem" continua a ser usado para matar conversas. "ah, os livros da Stephenie Meyer são os melhores de sempre", "não são nada, são uma grande bosta", "bem, gostos não se discutem".

Não, não e não. Os gostos discutem-se, claramente! Têm que, por exemplo, estar devidamente fundamentados. Além de que não vejo problema nenhum em tentar perceber o outro, e porque raio está ele a gostar de determinado livro (e onde).

É por isso que eu agradeço que comentem aí pelo blog, ele está cá para essas coisas! Quase tudo o que escrevo para aqui são opiniões, que tento sempre apresentar da forma mais fundamentada possivel, mas podem duvidar de alguma coisa.

E dessa forma é porreiro "tentar-me convencer" do que quer que seja... É pouco provável que me façam realmente mudar de ideias, mas talvez veja as coisas a uma nova luz. Isso é "discutir os gostos". Que, lá está, não prejudica nada...

Agora vejam lá se discutem coisas, e as debatem, e se tentam convencer uns aos outros das mais variadas coisas... Eu cá continuarei a fazê-lo, diga o ditado popular...

sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Jogo da Ratazana e do Dragão

Autor: Corwdainer Smith
Tradutora: Ana Mendes Lopes


Opinião: Este conto foi uma pequena surpresa. Nem conhecia o autor, nem nunca tinha ouvido falar do conto e, ainda por cima, achei o nome vagamente idiota. Mas dei uma oportunidade de mente aberta, porque parvo ou não, o título envolvia a palavra "dragão".

O que encontrei foi uma história bem construída, em que os humanos têm uns Parceiros com quem se unem telepaticamente de forma a chacinar uns "dragões" intergalácticos super destrutivos.

Essa união é feita porque os Parceiros têm uma capacidade de reacção bastante superior à nossa, o que faz deles ideais para usar como co-pilotos que precisam de disparar contra entidades poderosíssimas que se movem demasiado depressa para o nosso gosto.

A parte fascinante é que alguns parágrafos depois do conto começar, se revela que os parceiros são... gatos. Gatos mais ou menos comuns, mas gatos. Fascinante.

E o autor, para mostrar que sabia o que estava a fazer, focou-se bastante na caracterização das personagens sem olhar a distinções: pessoa ou gato, todos eram personagens e todos ficaram muito bem caracterizados, com personalidades próprias e, no caso dos gatos, que até soam a gato.

A descrição da batalha é um bocado confusa e complicada de seguir, mas eu até compreendo, que é suposto ser demasiado rápida para que os humanos acompanhem. Acho que podia estar melhor conseguida, mas tendo em conta a premissa, bem, pelo menos faz algum sentido.

O final é que é um pouco estranho. Ao longo da história acompanhamos uma dupla de pilotos, humano e gata, que funcionam muito bem juntos, e se dão muito bem durante a junção telepática e depois... Enfim, estão a mesmo a ver, não é? Soa bastante peculiar, mas a verdade é que o autor lida bem com isso e consegue dar pormenores ao longo da história que atenuam a estranheza.

Nota final para o facto de não ser um conto de FC convencional, e que funciona muito bem assim mesmo. A visão do autor é curiosa, e não está nada mal explorada. Ou seja, um autor a explorar!

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O Fantasma Inexperiente

Autor: H.G.Wells
Tradutor: Cabral do Nascimento

Opinião: Wells é um autor de ficção científica, não é difícil concordar com isso. Imaginem portanto a minha "surpresa" quando vi que tinha um conto num pequeno livro de fantasmas, acompanhado de Lord Dunsany, Robert Louis Stevenson e Virgina Woolf (outra "surpresa").

Não foi exactamente surpresa porque eu sei que o autor era versátil e que escrevia noutros géneros. Foi mais uma sensação de estranheza, como se visse que o David Soares ia publicar um livro de ficção científica.

Por outro lado, as histórias de fantasma estiveram na moda. Acho que praticamente todos os escritores nascidos no século XIX devem ter tentado pelo menos uma vez.

Falando do conto, o tom é maioritariamente cómico. O título diz tudo: um fantasma com pouca experiência, que tenta aprender a assustar pessoas e a cumprir o seu papel de alma penada. A leveza com que Wells caracteriza o fantasma e o ambiente não conseguem, no entanto, esconder uma certa veia negra que surge em grande plano no final inesperado e que consegue a proeza de transformar uma comédia numa história arrepiante.

A escrita de Wells praticamente não tem defeitos. Não acho que seja um grande portento, mas é boa e relativamente simples, o que permite um maior foco nas ideias do autor, essas sim sempre fascinantes.

O Fantasma Inexperiente é assim um conto que aconselho, especialmente se forem fãs do autor e quiserem admirar a sua versatilidade e competência.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

The Hero of Ages (Mistborn #3)

Autor: Brandon Sanderson


Opinião: Para alguém tão prolífico como Brandon Sanderson, seria de esperar que nem tudo o que escreve é absolutamente fantástico. Mas a verdade é que desde que comecei a ler esta trilogia que a qualidade tem vindo a aumentar (o primeiro foi muito bom, e o segundo foi melhor ainda), culminando nestas 700 páginas de quase-perfeição e que são impossíveis de largar.

Precisei de toda a minha força de vontade para parar de ler e estudar ou fazer o que quer que fosse. Especialmente na segunda metade do livro, embora todo o livro tenha um ritmo alucinante. De desenvolvimento atrás de desenvolvimento, o autor consegue guiar-nos pela sua história e pelo seu mundo de forma magistral.

Sanderson conta a história que quer, como quer. E se haviam dúvidas vindas dos outros livros, este livro esclareceu-as. Todas (ou quase)! Torna-se até um ligeiro lugar-comum, mas é daquelas coisas que só lendo até ao fim é que se percebe a magnitude tremenda daquilo que o autor criou.

O meu problema agora vai ser falar-vos deste livro sem revelar demasiado. Como já disse, neste livro tudo se junta, todas as peças acabam por se organizar e encaixar num todo maior do que a trilogia, por vezes de forma surpreendente, outras de forma mais ou menos esperada, mas sempre, sempre!, de forma pensada e bem contada.

A maior qualidade que vejo em Sanderson é exactamente essa. Sim, as suas personagens são normalmente bastante boas, o sistema de magia é primoroso e as cenas de acção são bem pensadas e ritmadas, mas... A história. O background. Cativantes, interessantes, a primeira é bem contada, o segundo é bem explorado. Dificilmente poderia pedir mais.

E não há grandes artifícios literários nem construções frásicas complicadas. Sanderson marca com a intensidade da narrativa, em vez da intensidade da linguagem, preferindo mostrar do que contar. Consegue fazê-lo mais e melhor do que a maior parte dos outros autores que já li! Os conceitos complicadas e emoções complexas que consegue fazer passar através de um gesto subtil ou de uma expressão facial momentânea ou até de uma hesitação na fala de uma personagem... Muito bom.

Outro aspecto fascinante é a diversidade que Sanderson conseguiu pôr nestes três livros, que ainda são formam um trilogia coesa. Final Empire transmite uma certa sensação de heist movie, mas em grande escala; The Well of Ascension soa a fantasia de política medieval, à là Martin; e este The Hero of Ages é apocalíptico. Ou melhor, uma história de sobrevivência: dos protagonistas, do mundo, dos deuses e da felicidade e esperança.

Com o mundo a acabar, de forma bastante literal, Vin tem que descobrir o que se passa sem que uma força praticamente omnipotente dê por ela, ao mesmo tempo que Elend, recém-tornado Mistborn, tem que governar um império. Acho que a personagem de Vin estagnou um pouco, mas Elend teve uma boa evolução, de chato académico mimado para rei-guerreiro capaz de tomar decisões duras e complicadas.

O resto das personagens também teve uma boa evolução, de uma maneira geral. Sazed e as suas dúvidas, Spook (o antigo nome de Lestibournes era mais fixe) com uma mudança mais radical, para melhorar, a confirmação da personalidade benevolente e complexa de Breeze, as informações sobre a mente dos koloss e dos Inquisitors e dos kandra e e e...

Como já devem ter percebido, fiquei fã. Completamente rendido. Está mais do que aconselhada, esta trilogia, e este autor, embora não lhe tenha lido mais nada. O primeiro livro de Mistborn vai sair em português, pela Saída de Emergência, e o tipo tem mais alguns que me andam a chamar a atenção, nomeadamente The Way of Kings, o primeiro de dez livros de fantasia épica que me parecem ser o tipo de coisa que se vão tornar clássicos, da mesma forma que The Wheel of Time de Robert Jordan, por exemplo (e que o Sanderson, por acaso, acabou de escrever, depois da morte do autor).

Acho que o pior vai ser estar muito tempo sem ler Sanderson. Ainda por cima descobri na sua wiki que a maior parte dos seus livros se passa num mesmo universo partilhado, com personagens em comum e uma história em pano de fundo, subtil, da qual já vi sinais nesta trilogia. Rendo-me!

sábado, 24 de maio de 2014

Feira do Livro 2014

Dá gozo, passear no meio de livros. Mesmo para quem não leia muito, há qualquer coisa de muito interessante a passar-se nas livrarias e nas secções literárias da FNAC, por exemplo. Seguir um simples trajecto que nos obrigue a cruzar estantes e a ler lombadas de livros só para não nos aborrecermos diz-nos qualquer coisa.

Em especial a nós, leitores, claro,

Esta é uma das razões para a popularidade do evento que junta todos os anos uma quantidade enorme de livreiros e editoras, com a programação ainda salpicada com alguns autores.

Mas sabem o que é que eu gosto mesmo da na FL? O facto de ser possível, de forma bastante literal, duas horas a olhar para livros, a folhear e a mexer e a ler sinopses e primeiros parágrafos... Sem mais nada à minha volta, zero de problemas e zero de preocupações.

Mais ou menos como o hakuna matata.

Felizmente, para apimentar um pouco as coisas, tem havido uma certa polémica com esta edição da FL. Desde os pavilhões novos, supostamente comprados em tempos de crise profunda, até à sua realização no Porto. Já vi que não se ia fazer, e depois que afinal se ia fazer, que ia ser clandestina e tal... E agora sinceramente já não sei como é que isso anda.

Há ainda a questão do voluntariado, uma polémica mais discreta mas que está lá a fincar o pé. Parece que a organização gosta pouco de ter que pagar aos seus trabalhadores, então arranja voluntários para trabalharem basicamente de graça, vendendo-lhes o "cargo" como óptimo para o desenvolvimento pessoal e não sei quê.

Eu cá vejo isso como exploração. Cheguei a candidatar-me (sem sucesso) o ano passado, mas este ano aquilo não me entrou muito bem na cabeça. Voluntariado é para ajudar em catástrofes, ou questões sociais. Não para estar na feira do livro a... Nem sei muito bem.

Mas pronto, felizmente nada disto é problema comigo, desde que aquilo continue a abrir dia 29 deste mês e a estar aberto pelo menos duas semanas... Se bem que é uma pena aquelas confusões que já quase são tradição, no Porto.

Por agora nada ma resta a não ser esperar e desesperar ligeiramente, enquanto não chega a altura de chafurdar em livros!

sexta-feira, 23 de maio de 2014

House of M


Argumento: Brian Michael Bendis
Arte: Olivier Coipel

Opinião: Tenho alguns sentimentos contraditórios relativamente a este livro. Tenho acompanhado o trabalho de Bendis nos X-Men que têm saído por cá desde Fevereiro, e embora não o ache tremendo, não tenho ficado desapontado.

Mas aqui falta qualquer coisa. Talvez a arte esteja demasiado sóbria, com expressões faciais um pouco estranhas e mais músculos do que outra coisa, por todo o lado, mas qualquer coisa não liga bem com o argumento de Bendis.

Só que depois... Bem, a história em si é magnífica. Consegue lidar com uma das mutantes mais aberracionalmente poderosas de sempre, Scarlet Witch, irmã de Quicksilver e filha de Magneto. Os seus poderes de alterar a realidade são monstruosos. Bem vistas as coisas, se ela aparecer em batalha, mais vale desistir e cortar a própria cabeça.

Scarlet Witch, Wanda, consegue manipular a realidade. Literalmente. De tal forma que esta história é essencialmente sobre a vida alternativa que ela cria, transformando Magneto num rei/imperador dos mutantes, a governar numa zona idílica que parece ser o centro de atenção de todo o mundo, que está repleto de mutantes sem medo de mostrarem os seus poderes.

É claro que teve de se passar dos carretos antes disto e, pelo que percebi, já que não li nada anterior, a tipa teve um acesso de loucura e matou uma data de gente. Agora, como tinha de ser, está mais para o lado da insanidade do que outra coisa.

Numa altura destas, quando pressionada... Bem, digamos que qualquer coisa que envolva uma mutante tão poderosa como Wanda, nada interessa.

O mundo alternativo criado é perturbador, se se souber bem o que se está a passar: há personagens que parecem ter voltado dos mortos, ligações estranhas entre outras personagens, enfim, uma data de diversões.

Estou é a dispersar-me. Vejamos. A história é magnífica. O conceito de criar uma realidade alternativa em que toda a gente vê os seus desejos mais íntimos cumpridos é utópico. E completamente fazível para esta pessoa.

A forma como Wolverine desencadeia uma reacção em cadeia que "desperta" uma série de personagens para o que se está a passar, é muito boa, assim como o consequente confronto com Magneto e o resto dos vilões-que-agora-são-os-fixes.

Mas a história tem um ritmo lento. Só de vez em quando é que tem uns acessos de rapidez, atira para a mistura umas cenas de acção com montes de coisas a acontecer ao mesmo tempo, e depois volta ao seu ritmo lento e pausado, de suspense e tensão estupidamente crescente.

Felizmente esta tensão crescente tem uma finalidade bem definida e que dá uma série de conclusões finais muito interessantes para este livro. Desde a descoberta do que realmente se passou até a um final absolutamente pitch perfect com uma conversa entre Magneto e a filha, há ainda tempo para uma perturbadora visita ao Cerebro, em busca de mutantes pelo mundo fora.

E é assim que Bendis me mostra que é um autor a seguir, embora a história deste House of M tenha ficado um pouco aquém. Pelo menos com os X-Men que andam a sair actualmente parece ter aprendido a lição.

Livro mediano, história magnífica, autor interessante. Poucas foram as vezes em que me senti tão confuso relativamente ao que dizer sobre um livro. A prova de que uma boa história pode fazer um bom livro? Gosto de pensar que sim.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os Vingadores #4


Argumento: Jonathan Hickman
Arte: Steve Epting
Tradução: José H. de Freitas

Opinião: Eu não me quero queixar da direcção cósmica e épica que este comic está a tomar, mas... A coisa não está a funcionar como devia.

Neste número em particular, que tem a conclusão do primeiro arco narrativo dos Novos Vingadores, um dos maiores problemas é mesmo que toda esta ideia dos Illuminati, uma equipa secreta de elite composta por membros de uma série de outras equipas (mais ou menos) secretas de elite, é um bocado idiota.

Mas ignorando isso, há outros problemas por aqui. Por exemplo, o Capitão América simplesmente deixa de aparecer, por alguma razão. A sua ausência não é propriamente um defeito, mas a sua ausência inexplicável é.

Depois, e embora basicamente todas as personagens sejam muito, mas muito interessantes, a sensação é a de uma história demasiado grandiosa, tão incapaz de deixar os heróis brilhar como de se fazer perceber na totalidade.

E porque é que isso acontece? Por causa da mitologia. Ou melhor, da quantidade da mitologia e do ritmo a que ela é introduzida. É que lá está, eu não me vou queixar de a certa altura aparecer uma espécie de deusa com cara de Cthulhu, mas a verdade é que ela, juntamente com outras duas e tantos outros conceitos, aparece um bocado do nada.

Não é possível assimilar tudo e ficar situado na história. Logo, não é possível perceber completamente a história. As personagens estão tranquilas, que já estão todas fartas de saber estas coisas, mas o leitor perde-se completamente, especialmente, parece-me, se não tiver acompanhado o Universo Marvel até aqui.

Estou curioso para ver o que acontece no próximo número, que já regressa aos Vingadores normais, pois fiquei desiludido com esta equipa, apesar de, como já disse, achar estas personagens muito mais interessantes e dignas de tempo de antena.

Não posso é deixar de notar em algo bastante... interessante. Os membros desta equipa são os seguintes: Namor, Doctor Strange, Black Panther, Iron Man, Reed Richards, Raio Negro, Fera e Capitão América. Dois deles têm franchises cinematográficas lançadas e incorporadas na continuidade do universo de filmes da Marvel, outro tem aí um reboot a aparecer, outros dois são mais ou menos o centro de vários rumores relativamente a serem os próximos heróis a passarem a filme, outro ainda anda a aparecer em filmes, também, e só sobram Namor e Raio Negro, sendo que já vi a probabilidade do segundo a aparecer algures mais pequena...

Esperar para ver!

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Que as citações nos caiam em cima [51]


"Um planeta inteiro de mundos e nem um deles - um único - tem alma. Vagueiam pela vida separados e sozinhos, incapazes de comunicar salvo através de grunhidos e sinais: como se a essência de um pôr-do-sol ou de uma supernova pudesse ser contida numa qualquer sequência de fonemas, em alguns traços lineares de preto sobre branco. Nunca conheceram a comunhão, só podem aspirar à dissolução. Sim, o paradoxo da sua biologia é espantoso, mas a escala da solidão, a futilidade destas vidas deixa-me estarrecido."


As Coisas
Peter Watts

As Coisas

Autor: Peter Watts
Tradutor: Luís Santos


Opinião: A primeira impressão que tenho deste conto é que é altamente confuso. Interessante, mas confuso. Só depois de pensar um pouco e de me distanciar da leitura é que consigo perceber mais ou menos o que estive a ler.

A causa desta confusão é o narrador. Primeira pessoa, muito íntimo, mais uma transcrição de pensamentos do que uma narração propriamente dita, o estilo acaba por ser bastante peculiar.

E confesso que acabei por não perceber a história na totalidade. O narrador é... algo, que assume o controlo apenas vagamente consciente de uma série de pessoas (e um cão) e vive através delas.

Entre momentos estranhos e confusos, o narrador assume-se como uma personagem, e depois outra, e outra, e várias ao mesmo tempo, e tem consciência de ser uma e outra, mas elas parecem ter uma certa medida de livre arbítrio.

A história passa-se numa base na Antárctida, no meio de um nada gelado, e o ambiente é o perfeito para histórias de terror e suspense: misterioso, negro, lento e creepy.

Mas o que é que aconteceu exactamente? Gostava de saber, a sério que gostava. As personagens parecem desconfiar que algo estranho se passa, e o narrador parece ser algum tipo de extraterrestre em missão de sobrevivência.

Não tenho a certeza se se perdeu muita coisa na tradução, mas acho que é o mais provável. O facto de não ter lido o conto duma assentada deve ter ajudado à minha confusão, mas o próprio estilo do conto, ainda que seja interessante, foi a principal causa.

Talvez devesse tentar ler a versão original, mas por agora não fiquei muito fã.

sábado, 17 de maio de 2014

Novo projecto a seis mãos

Eu sei, eu sei... Isto de me pôr a fazer demasiadas coisas já deve ser patológico. Mas não dá para resistir! Estava a precisar de um blog de escrita. De um sítio onde publicar os meus devaneios literários. Além disso, ando a precisar de desafios de escrita.

Os impostos pela Oficina de Escrita funcionam bem, mas é diferente, são contos, e é mais sobre aprender e melhorar do que simplesmente entrar em modo de loucura e ver o que sai. Precisava de algo assim, ainda mais experimental, onde tenha total liberdade para escrever uma linha e dar o dia por terminado.

Foi assim que nasceu o Entriangular. Assim e com o convite à Alice e à Beki, a minha amiga louca de Artes (e co-fundadora deste mesmo blog!!) e a minha amiga louca de Letras. Aceitaram sem hesitar.

A ideia é estranho. Entre desafiarmo-nos uns aos outros e completarmo-nos uns aos outros, nem sei bem por onde começar. O melhor que têm a fazer é espreitar... Já há uma introdução e as apresentações também andam por lá.

Sigam! Comentem! Opinem! Refilem! Dêem ideias! Mas, acima de tudo, leiam.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

X-Men #4


Argumento: Brian Michael Bendis
Arte: Chris Bachalo
Tradução: José de Freitas e Filipe Faria

Opinião: Esta capa é muita porreira. O Ciclope assim vestido é simplesmente perturbador, e ver o Magneto completamente de branco, com um capacete e esconder-lhe a cara por completo... Muito bom!

Agora deixem-me só passar ao fim por uns instantes.Demorei um pouco a aperceber-me do que se estava a passar, mas fiquei bastante satisfeito quando o entendimento me banhou na sua gloriosa lucidez. Se alguém ainda não tiver lido e quiser fazê-lo, fica já avisado que vou revelar coisas relativamente essenciais sobre o enredo... Bem, o momento de lucidez fez-me perceber que o final desta revista é exactamente o final da revista anterior.

Fascinante. Eu já devia estar à espera que numa história que brinca com viagens no tempo se fossem pôr com estas brincadeiras, mas isto foi muito bem feito. Estive a leitura toda a pensar em como é que esta história ligava com a revista anterior!

Mas não estou a ser muito claro, vamos por partes. À semelhança da revista dos Vingadores, esta também vai ter duas revistas originais a conviver, neste caso os X-Men e os Uncanny X-Men. Os mais ou menos bons e os mais ou menos maus, se quiserem. E depois de três números a seguir única e exclusivamente os primeiros, esta e a próxima vão acompanhar os segundos.

Isto cria-me um problema. Não sei sinceramente que grupo prefiro. Ok, não é bem um problema, uma vez que posso acompanhar os dois, mas não sei por qual torcer! Se por um lado tenho os misfits, jovens, adoráveis, esperançosos e lutadores, do outro tenho os anti-heróis, sem medo de combaterem a autoridade por aquilo em que acreditam, e que ainda por cima são indiscutivelmente mais badass.

Além disso, ambas as linhas narrativas são interessantes. Ou melhor, ambas as perspectivas da linha narrativa são interessantes. O que me agrada bastante é o facto de, ao contrário dos Vingadores, aqui se estar basicamente a seguir ambos os lados da disputa. Acho que isso no futuro vai ter repercussões interessantes... Aliás, já tem, com estas duas revistas a decorrerem basicamente em paralelo!

Em termos de personagens, o que tenho a dizer é que não sou fã do Ciclope mas ele está no bom caminho. Mais implacável, mais frio, corre o risco de se tornar realmente perigoso. O Magneto, por sua vez, não sei bem... Fascina-me, a personagem. Ele já há muitos anos que não é exactamente mau (na sua génese era um arquivilão típico), e aqui cimenta essa posição dúbia, sendo provavelmente a personagem com a qual é mais fácil o leitor identificar-se. Durante a maior parte do tempo, pelo menos.

O resto das personagens são-me relativamente indiferentes, mas não posso negar que a espada gigante e mágica da mutante Magia é porreira, e que os dilemas da Emma Frost ainda vão dar muita bodega à qual mal posso esperar por assistir!

Agora é esperar pelo próximo mês, mas estou a gostar bastante desta minha aposta de acompanhar os X-Men!

quarta-feira, 14 de maio de 2014

"Repent, Harlequin!", said the Ticktockman


Autor: Harlan Ellison

Opinião: Com um título no mínimo curioso e boas recomendações, este conto foi uma leitura rápida e agradável. É apenas a segunda coisa que leio do autor, depois de um fantástico I Have no Mouth and I Must Scream, mas confesso-me ligeiramente rendido.

Harlan Ellison é um contador de histórias como eu gosto de ler, subversivas, interessantes e ligeiramente caóticas. Pelo menos tendo em conta estas duas, o que é pouco, claro.

Se querem que vos diga, por estes contos eu diria que Ellison é uma espécie de versão intelectual do Stephen King. O que escreve não é nenhum portento literário, embora seja bom em termos técnicos, gosta de fazer experiências a nível de estrutura, tem um certo dom para caracterizar personagens e é fantasticamente malévolo.

A diferença é que Ellison é mais intelectual, mais... brainy.

Esta história, por exemplo, é uma distopia contada de forma não linear. Eu repito. Distopia contada de forma não linear. O que é que pode haver para não gostar?

Estranho a todos os níveis e durante toda a leitura, "Repent, Harlequin!", said the Ticktockman tem um ditador chamado Ticktockman, de tal forma obcecado com o tempo que os atrasos são crime. Crime!

Para compensar, a certa altura surge o Harlequin, uma personagem que é quase o negativo do Ticktockman, um anarquista mascarado cujo objectivo de vida parece ser causar o caos quebrando e estraçalhando todas as regras impostas pelo ditador. Desde avisar que vai aparecer num certo dia a certa hora e atrasar-se, a causar uma onda massiva de atrasos por libertar toneladas de jelly beans pela cidade, o Harlequin luta contra a opressão.

É interessante ver o desenrolar desta luta, e a forma como o Harlequin lida com a sua vida dupla e o seu desejo de sair da norma e de lutar. Só que depois tudo acaba, num fim ligeiramente reminescente do 1984 de Orwell, mas sem deixar de lado um pequeno pormenor que de certa forma dá a vitória ao Harlequin, mesmo que ele seja completamente esquecido.

Por estas e por outras, podia usar "estranho" e "provocador" para descrever este conto. Faz-nos pensar sobre aquilo que andamos a aturar no nosso país, por exemplo. Juro que pagava para ver alguém a despejar camiões de gomas à porta do Parlamento, ou algo desse estilo.

O facto de ter sido escrito de rajada, numas míseras seis horas, apenas o torna mais impressionante. Tem uma história sólida e bem contada, com duas personagens centrais bastante boas e uma escrita agradável e poderosa em imagens. Um autor a seguir!

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Que as citações nos caiam em cima [50]


"Pensei: «Chega-se a um momento na vida em que da gente que se conheceu são mais os mortos que os vivos. E a mente recusa-se a aceitar outras fisionomias, outras expressões: em todos os rostos novos que encontra grava as velhas feições, para cada uma arranja a máscara que melhor se lhe adapta»."


As Cidades Invisíveis
Italo Calvino

O Polvo

Autora: Rita Fernandes


Opinião: Há um limite para o nível de lirismo que eu aguento. A discussão sobre as razões de eu não gostar de poesia é longa, velha, e acaba por ser inútil e pouco relevante. Pelo menos para esta opinião. O que interesse é que já há algum tempo que eu não lia algo com uma escrita tão poética e que me agradasse tanto.

A história é curta, não chega para encher duas páginas da revista, e é simples. Pouco mais do que uma metáfora para um velhote em fim de vida ser uma espécie de polvo. Mas a beleza da escrita afoga (pun intended) a possível palermice da premissa e tira-me qualquer hipótese de não gostar deste conto.

Imaginem um homem idoso com um dia-a-dia cansado da vida que apenas consegue ser abrilhantado pela chegada do filho de meia-idade e do neto jovem e saltitante. Juntos, o primeiro e o último usam a imaginação para viajar aos recantos mais escondidos dos mares, perante a desaprovação ao mesmo tempo paternal e filial do segundo, sempre condescendente e símbolo de uma fase da vida demasiado séria.

Avô e neto vivem aventuras nas suas mentes que lhes parecem mais reais do que a própria realidade. O velho ganha vitalidade a olhos vistos e o rapazito é verdadeiramente feliz naqueles momentos em que conversa com o avô e o leva a viajar.

Agora imaginem tudo isto com uma escrita belíssima, pausada, simples, poética... As curtas descrições fizeram-me ver o dia-a-dia do velhote com poucas palavras, e deixaram-me observar as duas gerações entretidas debaixo das águas das suas imaginações como se os visse através de um vidro de aquário.

Foi assim que a autora, Rita Fernandes, me convenceu. Um conto intenso, bem escrito, bem contado e bem desenvolvido, com um final forte, mas suave, de certa forma expectável mas não menos triste por isso. Em suma, uma grande descoberta que fica mais do que aconselhada!

sábado, 10 de maio de 2014

Estantes Emprestadas [5] - A nossa literatura vista de fora



Se há coisa de que me orgulho é de ter um bom manancial de amigos e amigas completamente loucos da cabeça. No melhor sentido da expressão, claro. Fascinantes talvez seja o termo mais correcto. A autora da crónica de hoje é uma dessas pessoas: chama-se Rebeca Bonjour, também conhecida por Beki, e é mais ou menos muita coisa - jornalista, skater, curiosa, portuguesa, francesa, polaca por afinidade, ligeiramente louca e mais uma série de coisas.

Apenas três frases e já consegui chamar-lhe louca duas vezes. Desculpa Beky. Não duvidem de que gosto muito dela, a verdade é que conheço poucas pessoas de letras com quem me dê tão bem. E além de gostar das suas perguntas sobre Ciência, embora já não mas faça há uns tempos, também gosto bastante da sua forma de pensar. E da sua escrita. A sério, já vão ver, é muito boa. Aprocheguem-se, aprocheguem-se!



Quando o Rui me pediu para escrever uma crónica para o blogue dele, abordou-me com umas palavras que equivalem mais ao menos a um “ah e tal, tu que és muito internacional…”, pelo que não posso começar esta crónica sem falar um bocadinho de mim.

Digamos que fui projectada em avanço no espírito de nacionalidade europeia que cada vez mais se ergue. De mãe portuguesa e pai francês, nasci na terra dos croissants e mudei-me para a dos pastéis de nata aos cinco anos, onde cresci, não deixando no entanto de alimentar cá dentro o bichinho viajador. Por altura da maioridade mudei-me durante um ano para a Polónia e, fazendo jus ao lema de que quem sai uma vez do seu país não consegue parar, mudei-me o ano passado para Paris, onde vivo actualmente. Posto isto, a ideia do Rui era aproveitar-se da minha internacionalidade e fazer-me escrever sobre como a literatura portuguesa é vista lá fora, o que me fez logo pensar em duas ou três coisas que quero partilhar. 

Comecemos então por falar da Polónia. Quantos de vocês conseguem, sem olhar para um mapa, dizer a localização deste país? Aposto que 90% não consegue – fica demasiado longe, tanto a nível geográfico como a nível de importância no panorama nacional. Da mesma forma, a maioria dos polacos não sabem muito sobre o nosso país. Sempre que me anunciava portuguesa tinha que explicar às pessoas que não, não falávamos espanhol, que temos uma língua própria. E aqueles que nos conheciam era mais pelo emblema do nosso país lá fora: o Cristiano Ronaldo, mais famoso do que o galo de Barcelos. 

A par do desconhecimento do nosso país, a Polónia tem um atrofio cultural, que pode ser explicado pelo facto de ter passado toda a História a defender a sua identidade, e pela passagem dos nazis e da destruição que causaram às obras judias, sendo que os judeus formavam uma grande parte da população antes da II Guerra Mundial. A produção cultural polaca é portanto bastante recente, assim como as suas preocupações a este nível. Mesmo assim, acabei por descobrir, na cidade em que vivia (Poznan, uma cidade de estudantes equiparável a Coimbra e que fica na mesma linha de Berlim), um bar português, onde o Instituto Camões (que, para quem não sabe, é responsável pela divulgação da cultura e língua portuguesas no estrangeiro) organizava todos os meses uma noite portuguesa. Para além de terem disponíveis iguarias nacionais e vinho do Porto, nestas noites falava-se em português, partilhava-se tradições e liam-se textos escritos pelos participantes ou de autores conhecidos. O mais espantoso nestas soirées é que havia tantos polacos quanto portugueses, falantes da nossa língua e amantes da nossa cultura. Uma minoria da população que estava efectivamente interessada em estudar e conhecer mais sobre o nosso país! Do outro lado da Europa! O Mistura Bar foi mais tarde substituído por um bar coreano, mas sei que as actividades do Instituto Camões prosseguiram noutros lugares.

Em Paris a história é totalmente diferente. Com um milhão de habitantes portugueses – quase tantos como no Porto, de onde venho – estão fartos de saber quem nós somos (muitas das vezes com uma ideia deturpada, mas isso dava outra crónica). Além disso, a França, e Paris particularmente, são locais culturais por excelência, onde tudo o que seja arte borbulha pela cidade. Quem é que gosta de literatura e não se sente absolutamente fascinado pela ideia de viver em Paris nos anos 20, onde escritores de todas as partes se encontravam aos magotes nos cafés e esplanadas? Ainda hoje se sente a sua presença, por exemplo no Quartier Latin, povoado por dezenas de alfarrabistas. Não são, como ganhei o hábito de apelidar os alfarrabistas portugueses, cemitérios de livros, com obras a cheirar a mofo que mais ninguém quer ler. Além disso, os nossos espécimes nacionais cada vez mais propõe preços que competem com os de uma Fnac, o que arruína por si só a ideia de alfarrabista. Ora nas lojas parisienses sugerem títulos relativamente recentes e interessantes (já apanhei Oscar Wilde, Primo Levi, ou os Harry Potters, por exemplo) a preços tão irrisórios como um ou dois euros. Cheguei mesmo a encontrar livros a vinte cêntimos. Vinte cêntimos!!!! E o mais interessante é que entre estas pechinchas se encontram versões francesas de livros portugueses (muitas das vezes do género Paulo Coelho, que os franceses apreciam muito – diz o meu amigo Lucas, que é brasileiro, que isto é proporcionado pelo facto de o autor traduzir ele mesmo os seus livros, excepto em francês, língua que não fala, pelo que teve de deixar isso para outra pessoa, que conseguiu melhorar a escrita o suficiente para que os livros se tornassem suportáveis – mas às vezes também Saramagos e Pessoas, e até já cheguei a deparar-me com Os Maias escrito na sua língua-mãe. 

Da própria!
Além dos alfarrabistas temos as Fnacs. Num dos cinco andares da minha preferida (há aí umas dez Fnacs em Paris), encontrei uma estante inteira de literatura portuguesa traduzida. Devo dizer que havia autores, nesta estante, que eu própria não conhecia. Podemos ainda falar, neste campo da divulgação da nossa literatura, na Gulbenkian parisiense, que consiste numa biblioteca enorme com livros em português, como é claro, e numa galeria onde se expõem obras lusófonas. Este organismo propõe ainda palestras e outros tipos de actividades para a promoção da nossa cultura. 

Já vimos, portanto, que não faltam em Paris oportunidades para dar a conhecer a literatura portuguesa, mas será que isso tem uma influência nos nativos franceses? Quando cheguei a Paris, em conversa com um colega de trabalho, disse-lhe que era portuguesa, e ele falou-me logo de um escritor que tinha tentado ler há pouco tempo, um psiquiatra… Lobo Antunes?, perguntei. Esse mesmo! Tentou lê-lo mas não conseguiu, era uma leitura pesada, complicada. No meio da minha surpresa genuína confessei-lhe que ainda não lera este autor, mas que sempre me disseram que as suas crónicas eram mais fáceis de digerir. Ele respondeu-me que não conhecia, mas que tinham uma amiga que era louca por Lobo Antunes, que tinha os livros todos, e que lhe ia pedir emprestado. Ora quantos portugueses é que vocês conhecem que tenham lido todos os livros do Lobo Antunes, a sério? E isto alarga-se para outros campos: já vi franceses a ouvir os Táxi, e não há nenhum que não saiba o que foi a Revolução dos Cravos. 

Sem me querer alongar demais, não posso acabar esta crónica sem olhar para dentro. E nós? Como é que vivemos a cultura estrangeira? Quantos filmes franceses ou polacos chegam às nossas salas de cinema? Quantas secções de livros provenientes de algum país existem nas nossas livrarias e bibliotecas? Nada que se compare às parisienses, com estantes para literatura chinesa, espanhola, japonesa, persa, hindu, russa, etc. Na maioria dos casos quase parece Portugal fica mais perto dos Estados Unidos do que da Europa, factor agravado por uma insuficiência de educação para a cultura - a dos outros e a nossa. Mas isso fica para outra crónica.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

As Cidades Invisíveis


Autor: Italo Calvino


Opinião: Li exactamente um livro de Calvino. Duas vezes, com um intervalo de quatro anos. Da primeira vez escrevi uma opinião que dizia pouco, mas que deixou bem claro o que eu achei do livro: uau.

Vou dar um desconto ao meu eu de dezasseis anos, que ainda não se expressava como deve ser. A verdade é que gostava de falar com esse eu para discutir este livro. Talvez soubesse o que dizer. É que eu, agora, não sei.

Todos nós, leitores, encontramos muita coisa ao longo das nossas vidas: livros maus, livros excelentes, livros hilariantes, livros terríveis, enfim, de tudo um pouco. Mas de vez em quando lá surge um livro que não só quebra as expectativas como as estilhaça completamente. Um livro de tal forma inclassificável e que nos impressiona com tanta intensidade que ficamos, literalmente, sem palavras.

Acho que raramente aconselhei este livro a alguém. Pouco ou nada falo dele. Mas lembro-me dele com frequência. Das conversas filosóficas e metafísicas entre Kublai Khan e Marco Polo e da imaginação prodigiosa deste último, obtida directamente da fonte: o grande Calvino.

Sim, este livro fascina-me. Sim, este autor fascina-me. E não consigo explicar o porquê, é uma atracção irresistível, quase irracional, que sinto por este livro, o que até é estranho, tendo em conta que As Cidades Invisíveis não tem praticamente nada daquilo que mais gosto de ver num livro: uma boa história, personagens bem desenvolvidas, coerência, sangue e tripas...

É um livro especial. Nele, Calvino usa a personagem de Marco Polo como veículo para descrever cinquenta e cinco cidades, algumas realistas outras impossíveis ou deslocadas do seu tempo, mas todas fascinantes e com nome de mulher.

As cinquenta e cinco descrições são curtas, e não há qualquer tipo de história: nada liga as histórias entre si, nem com Polo ou Kublai para além de serem os sítios por onde o primeiro supostamente viajou e que o segundo supostamente governa. A escrita não está nada de especial, suspeito que por causa da tradução, mas mesmo assim o livro fascina-me.

Os curtos trechos de conversa entre Kublai e Polo raramente têm algo de realmente útil para o desenvolvimento da "história", servindo apenas como momentos de discussões filosóficas. Conversas essas que, surpreendentemente, não aborrecem.

Mas tudo isto é completamente irrelevante face às cidades que Polo descreve. "Tudo isto" também inclui o que quer que seja que estejam a fazer. A sério. Vocês não querem perder isto, é pura e simplesmente demasiado bom. E ainda por cima o livro lê-se num par de horas, que é pequeno!

E para além das descrições belíssimas das cidades, cada uma encerra um simbolismo muito próprio e é um pouco "um monstro por si só". No melhor dos sentidos possíveis, acreditem.

Talvez a melhor forma de descrever este livro seja chamar-lhe surreal. Ou surrealmente brutal. Qualquer coisa desse género. As descrições intricadas contidas em meia dúzia de parágrafos ajudam à sensação de deslumbramento, e os vários tipos de cidades com as suas sociedades perfeitamente ajustadas não são nada menos do que absolutamente fascinantes!

Calvino, para mim, e como já devem ter percebido, mais do que um autor a ler é um autor a reter. Vale a pena, este tipo, e tenho a certeza que o resto dos seus livros não me vão desapontar. Pode acontecer e eu ficar tramado, mas acho sinceramente que não. É demasiado bom!

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Soul Survivors (The Stand #3)


História: Stephen King
Adaptação: Robert Aguirre-Sacasa
Arte: Mike Perkins


Opinião: Comprei esta BD há uma série de anos, numa Feira do Livro, por menos de metade do preço. Foi mesmo um daqueles momentos "ok, não vou resistir a isto". Por acaso acho que já tinha o livro original, mas ainda não o tinha lido, o que significa que este volume ficou a apanhar pó nas minhas estantes.

Mas no Verão passado lá li as mil e trezentas páginas do The Stand, adorei, e disse para mim próprio que esta BD tinha que marchar.

Nove meses depois... Lá peguei nele. O "problema" de ter muitos livros em lista de espera é que há uns que vão sempre sendo atirados para o fim da lista, ou que são constantemente ultrapassados e pronto. Mas agora já está!

O que tenho a dizer é que gostei da adaptação. Em termos de argumento isto ficou muito bom. Consegue captar o tom do Stephen King, seja nos momentos mais calmos, nos mais violentos ou nos mais perturbadores, sempre fiel ao livro original.

A arte, por seu lado, embora consiga acompanhar minimamente, é o ponto fraco do livro. Não se deixa intimidar por cenas mais sangrentas de cabeças a serem esmagadas de forma bastante explícita, é certo, mas sofre de excesso de detalhe.

São daqueles desenhos que tentam ser o mais realistas possíveis e acabam obcecados com os pormenores. Isto leva a expressões faciais ridículas, mais músculos do que é normal, super-ultra-definição completamente irrealista nalguns objectos... Uma pena.

Mesmo assim fiquei curioso para ler o resto da colecção (ninguém achava que um livro do King se ia dividir em menos de seis livros, pois não?). Este volume é o terceiro, o que não me fez particular espécie por já conhecer a história, o que significa que não perdi nada e entrei de imediato na narrativa, sem grandes problemas, mas que pode trazer problemas a outras pessoas. Só que pronto, é óbvio que não vão começar pelo terceiro volume, não é?

Não é que percam muito... Mas há cenas aqui que só têm o seu efeito total quando devidamente contextualizadas. Os grupos ainda estão todos separados e começam aqui a encontrar-se, já perto de metade da história, que caminha para um ponto de viragem importante. Como tal, esta parte é mais calma e lenta, ainda que cheia de tensão e repleta de momentos marcantes e essenciais, como o "acordar" de Harold e uma cena particularmente poderosa em que uma velhota (a boazinha) é rodeada por bichos à mercê do Dark Man (o vil... acho que não preciso de explicar) e consegue repeli-los.

Para terminar, uma nota positiva para a arte, que mesmo sendo, na minha opinião, o ponto fraco do livro, consegue capturar muito bem alguns momentos, especialmente os mais violentos e uma ou duas situações em que aparece o Dark Man.

Tenho que ver se consigo encontrar o resto, embora não tenha achado isto fantástico o suficiente para precisar de encontrar o resto...

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Simpsons #1


Autor: Matt Groening
Tradutor: Nuno Moreira Santos

Opinião: Aproveitando a onda de lançamentos da Goody, que parece estar a relançar a moda da banda desenhada (juntamente com a Panini/Marvel), comprei este primeiro número dos Simpsons.

Os desenhos, como podem ver, são os típicos da série, simples e icónicos até mais não. Lá dentro, as histórias são também o esperado, dentro do espírito a que estamos habituados, cheias de piadas visuais e humor (mais ou menos) inteligente.

Infelizmente tenho quase a certeza que as primeiras duas histórias, pelo menos, são as mesmas que vinham num comic que acompanhava a fantástica edição de The Simpsons Futurama Crossover Crisis e que eram medianas.

Quer dizer... A primeira, com um Homer a ficar gigante, é claramente abaixo da média, sem grande interesse. A segunda é mais porreira, dentro do estilo de terror, com Homer no papel de um coleccionador de BD que se torna inútil sem o seu empregado, e que tem um fim previsível. A história está bem contada, mas não é nada de extraordinário.

Já o mesmo não pode ser dito da terceira história, Bart, o Presidiário, que li como se estivesse a ver um episódio da série de televisão. Inconsequente no melhor sentido possível da palavra, recheado de nonsense e de momentos engraçados, já gostei bastante de ler esta história.

Por fim uma historieta curta e da qual nem desgostei, mas que não é nenhum portento. É uma situação inverosímel típica, envolvendo a mente demasiado imaginativa de Marge e de uma das irmãs, o desespero da outra irmã, e o amor de Homer por... comida.

Como balanço geral, posso dizer que fiquei agradado e que pondero comprar o próximo número, se depois de lhe dar uma vista de olhos ficar satisfeito. Resta esperar que a Goody continue tão activa!

sábado, 3 de maio de 2014

O livro favorito não existe



Antes que comecem a chover acusações do quanto eu gosto de me contradizer, reparem naquele "subjectivamente" e lembrem-se que as pessoas têm direito a mudar de opinião, ainda que não seja bem esse o caso.

Sim, se alguém me perguntar qual é o meu livro favorito, eu provavelmente ainda digo que é o Terrarium, esse épico da ficção científica portuguesa escrito a quatro (talentosas) mãos. Mas tenho noção de que isso é uma mera simplificação. Uma forma de responder sem me perder em deambulações sobre os milhentos livros que já li, apontando falhas e pontos positivos.

Corria o risco de deixar de responder à pergunta, e a passar a tentar convencer alguém de que certos e determinados livros são fantásticos, e a incitar à sua leitura. E não é esse o objectivo. Portanto digo apenas "é o Terrarium, 600 páginas de ficção científica portuguesa escrita por dois dos nossos melhores autores". Chega.

Mas qual é a verdade? Bem, sou de facto um grande fã desse livro, mas é o meu favorito? Depende. Não consigo dizer que gosto mais dele do que da minha edição lindíssima do Kalevala, por exemplo. É impossível compará-los de forma subjectiva, são demasiado diferentes, cada um um campeão na sua área.

Podia fazê-lo objectivamente, mas não quero. Não quero ser objectivo na escolha do meu livro favorito, porque isso destrói à nascença o conceito de favorito. Eu posso achar um livro brilhantemente bem escrito, como os do Mia Couto ou aquele que é para mim um dos expoentes máximos da língua Portuguesa de sempre, o Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira, mas não os considerar para livros favoritos.

Também posso encontrar um livro com uma estrutura narrativa e um enredo primoroso e pensado até à exaustão, como o O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o The Green Mile ou o Cem anos de Solidão, e ainda assim não os considerar para livros favoritos.

É preciso mais do que ser objectivamente bom para ser o meu livro favorito. Acho que falo por todos os leitores, quando digo isso. Quantos de nós não leram já um livro que sabemos claramente não é tão bom quanto isso, mas que nos fascina de alguma forma? Vejam as minhas muitas opiniões sobre livros do Filipe Faria.

Estão a ver o problema? Não digo que todos os leitores sejam assim, mas a minha primeira aposta é que um leitor assíduo mais rapidamente dá uma lista de vinte livros favoritos, do que diz qual é o seu livro favorito de sempre. Não é fácil escolher. E na minha opinião, é impossível.

Um livro pode deixar-me impressionado com a sua abordagem visceral ao horror e a forma como consegue tornar sangue e tripas num objecto literário, e outro pode fazer-me sentir uma empatia tremenda pelos protagonistas na sua demanda épica, enquanto outro ainda me faz esquecer a história que contêm, de tão bem escrito que está. Ao fim do dia, se me perguntarem de qual gostei mais, a minha vontade é dizer os três títulos ao mesmo tempo.

E já nem falo do quão voláteis podem ser estas escolhas de livros favoritos... E se eu amanhã ler um livro que acho superior a tudo o que já li? Muda-se a lista toda. E se ler outro depois de amanhã que me faz pensar "é este! é este!" e depois me lembrar de outro que tenho a meio da lista e que é parecido? Muda-se a lista toda. Isto acontece, e com mais frequência do que aquilo que se possa pensar.

Por essas e por outras, se me perguntarem qual o meu livro favorito, eu respondo que é o Terrarium. Ou o Kalevala. Ou o Flatland. Ou... Ou... Ou...

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A Conspiração dos Abandonados

Autor: António de Macedo


Opinião: Li há relativamente pouco tempo outro livro de contos deste autor, do qual fiquei com a melhor das impressões. Antes disso li um conjunto peculiar de peças de teatro que me impressionou de certa forma. E como é público, tenho António de Macedo de pedra e cal no meu panteão de pessoas a idolatrar/venerar. Aliás, gostava de aproveitar esta opinião para vos incitar a dar um empurrão ao documentário sobre a sua obra cinematográfica. Podem ver os detalhes no link.

Por isso é com pena que digo que este livro é meramente mediano. Os contos ("Neogóticos", como diz na capa) são seis e têm o ponto a favor de terem um elo de ligação bem claro, salvando este livro do marasmo de livros-de-contos-só-porque-sim que grassam por essas prateleiras fora.

Fã de contos como sou, confesso que este pormenor me deixa bastante satisfeito. Se há coisa que gosto de ler é um livro destes, de contos, mas com um tema central. Os contos não precisam de estar directamente relacionados, nem sequer precisam de ser do mesmo género, mas se existir esse ponto em comum... Oh!

Aqui, ele existe. Infelizmente isso é a melhor característica do livro, juntamente com as ocasionais passagens de fazer cair o queixo. Nenhuma das histórias é particularmente boa e estão recheadas de inconsistências ou, pelo menos, de pormenores que quebram a "suspensão da descrença" (suspension of disbelief, no original).

Os diálogos artificiais e excessivamente expositivos são apenas um desses pormenores, que nem sequer são bem pormenores: acabam por se tornar problemas graves. As personagens com reacções pouca naturais, os acontecimentos em catadupa sem as consequências normalmente expectáveis, e toda uma sensação geral de... falso.

Sim, toda a ficção é falsa, por definição, mas não é isso. Ler ficção, para mim, consiste em acreditar numa série de mentiras como se a nossa vida dependesse disso, depois de sabermos que são mentiras. "Suspensão da descrença". Um sinal de que um livro é bom, e de que um autor fez bem o seu trabalho, é quando se fala das personagens como se fossem pessoas, ou se discutem eventos da narração como se fossem as mais recentes notícias.

Em A Conspiração dos Abandonados, e apesar da mestria de Macedo (em tudo o que faz), isso não acontece. Eu bem tentei, mas a esta sensação a falso não me largou nem por um segundo. Nunca me consegui ligar às personagens, nunca consegui relacionar nada com os acontecimentos e nunca senti estas histórias da mesma forma que sinto uma boa história.

O primeiro conto ainda é capaz de ser o melhor contado, e foi uma boa abertura, com direito a plot twist nas últimas linhas. A partir daí foi mais ou menos sempre a descer, e embora nenhuma conto seja propriamente mau, também não são propriamente bons. Nota-se sempre um tom quase académico. Demasiado académico! A narrativa não flui naturalmente e as histórias não se desenvolvem como deveriam: a trama avança aos solavancos, com duas páginas de descrições secundárias seguidas de um parágrafo a avançar o enredo.

No entanto é uma leitura agradável. Não tão agradável como poderia ser, e com problemas gritantes não só a nível das histórias, como da escrita (já lá vou), mas agradável e interessante.

Agora, antes que me esqueça, eu não sei se foi tudo escrito às três pancadas, ou se os revisores estavam todos de folga, mas a pontuação deste livro está má. Muito má. Nem sequer é uma questão subjectiva de "acho que ficava melhor sem essa vírgula", mas sim uma constatação do mais objectiva possível.

Ultrapassando isso, só é preciso deixarmos que Macedo nos guie nas suas histórias sobrenaturais, que roçam frequentemente a ficção científica e que fazem algo que me deixa fascinado. O autor consegue dar dicas de ficção científica no meio de uma história repleta de magia e de fantasia afim, sem nunca dar a entender o que se está realmente a passar. Seres incorpóreos de outro plano de existência, ou aliens? Era bom saber, não era?

Enfim. Digamos só que aconselho a leitura, mas com calma, moderação e espírito crítico. Provavelmente é mais fácil ignorarem um pouco a pontuação e lerem como se sentirem melhor. Mas podem ter a certeza que aconselho!